segunda-feira, 10 de março de 2025

MEMÓRIAS JUVENIS DE TEMPOS SOMBRIOS - PARTE 1

Aproveitando a luz dos holofotes que o filme "Ainda estamos aqui" jogou sobre uma das tragédias que aconteceram nos chamados "porões" do regime militar, resolvi contar minhas lembranças sobre aquela época sinistra. Creio já ter escrito algo sobre isso aqui no blog, mas não consegui localizar. Por isso, aí vai mais uma peça de lego do meu quebra cabeça particular. E vou começar com um caso provocado pelo auê em torno do filme do Walter Salles. Bora lá.
 
Há alguns dias tomei conhecimento de um diálogo entre duas senhoras idosas (provavelmente na minha faixa etária), em que uma delas, irritada com a excessiva badalação do filme, disse não ter havido tortura no Brasil, que isso não tinha acontecido. A amiga, puta da vida, reagiu asperamente:
- Fulana, como você pode mentir assim? Você deve se lembrar de que todos os dias nós duas passávamos ao lado do DOPS e muitas vezes ouvimos os gritos de presos sendo torturados! A quem você quer enganar?
E a amiga apenas abaixou a cabeça em silêncio.
 
Agora, voltando no tempo: nasci em junho de 1950, o que significa que tinha treze anos quando aconteceu o golpe militar (que minha família ultra católica apoiou, diga-se). Mesmo assim, apesar de favoráveis ao pé na bunda do Jango, ninguém ficou vacilando. Lembro-me nitidamente de meu pai nos dizendo para nunca falarmos com estranhos nem para comentar nada sobre o momento político/policial em que vivíamos.
 
Por ter sido criado nessa família conservadora, ultra católica e de direita, desde sempre eu fui anticomunista - mesmo que nem soubesse exatamente o que isso significava. E, para que fique registrado, continuo sendo. Mas, naquela época e com toda aquela juventude, “Esquerda” para mim era sempre sinônimo de “comunismo”. Apesar disso e graças aos governos militares pós 1964, eu nunca me preocupei em rever esses conceitos, justamente por não me interessar por política, um assunto que me orientaram a nunca discutir com ninguém.
 
Talvez por isso, as lembranças que carrego daquela época não tenham densidade suficiente para um roteiro de filme ou história a ser contada. Mesmo assim tentarei resgatar o que minha mente de jovem alienado e medroso guardou. Para isso, darei títulos aos pedaços de memória que consegui recuperar.
 
- Caindo a Ficha
Uma das primeiras coisas que chamaram minha atenção foi o fato de que, de repente, os postos-chave de várias empresas e órgãos públicos eram agora ocupados por pessoas sempre com "tenente", "capitão", "major" e outras patentes antes do nome próprio. Teria sido sempre assim? Obviamente não, mas nunca gastei meu tempo tentando entender isso. Aos poucos, muito devagar, fui percebendo que os militares que tinham livrado o país da ditadura do “comunismo ateu” apenas criaram outra forma de ditadura, pois perseguiam, puniam e até torturavam quem se atrevia a manifestar-se contra o governo.
 
- Sete de Setembro de 1965
Um evento que até mereceu um post nesta bagaça foi a participação de TODOS os colégios de BH no glorioso desfile de sete de setembro de 1965. E o motivo do post foi eu ter esfolado os dedos dos pés em um par de sapatos usados e um número menor do que usava, descartado por um de meus primos ricos. Para quem se interessar, o título do post é “Prego no Sapato”.
 
- Grade Curricular
Uma coisa que encheu meu saco foi a inclusão de mais uma matéria à grade escolar: a chatíssima “Educação Moral e Cívica”, substituída depois pela igualmente chata “Organização Social e Política do Brasil” – que chamávamos de OSPB. À boca pequena, diziam que um dos professores era dedo-duro do DOPS.
 
- CCC
No início de 1966, ao ser aprovado em processo de seleção, comecei a estudar no Colégio de Aplicação, um colégio espetacular, que funcionava como laboratório de novas técnicas pedagógicas da FAFICH - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. A faculdade ocupava um prédio moderno ao lado do casarão antigo onde funcionava o Aplicação. Para chegar ao colégio, localizado na zona sul, eu tinha de pegar dois ônibus. Nesse trajeto comecei a ver muros pichados com a sigla CCC. Em alguns havia a explicação para essas letras: “Comando de Caça aos Comunistas”. Vendo aquelas pichações comecei a ficar com um pouco de medo, apesar de sempre anticomunista. Pessoalmente eu não tinha nenhum motivo para ter medo, mas tinha.
O Marechal Castelo Branco, primeiro presidente militar pós 1964, disse esta pérola de agudeza política: “Eu os identifico a todos. E são muitos deles, os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do Poder Militar.” Segundo o dicionário, vivandeira é “Mulher que vende ou leva mantimentos, seguindo tropas em marcha". Mas o mesmo dicionário informa o sentido figurado da palavra (e talvez o mais usual). "Vivandeiras" "São políticos e empresários que tentam seduzir os militares para que enveredem nos descaminhos da aventura política”. E esses eram os descaminhos trilhados pelos radicais do CCC e de outros grupos de extrema direita.
 
- O Pau Comendo
Nos anos de 1966 e 1967 eu estudava no turno da manhã. Nessa época a FAFICH era frequente palco de manifestações contra o regime, motivando a presença da Polícia Militar para controlar os ânimos. Eu saia quietinho, sem dar nem um pio, recusando os panfletos que alguns alunos do colégio e da faculdade distribuíam. Pelo medo orgânico sempre sentido e pela total apatia política, jamais participei de manifestações, jamais gritei palavras de ordem contra ou a favor de nada.

 
 
Como este texto está muito grande, será publicado em duas vezes.

14 comentários:

  1. Interessante pauta.
    Eu nasci em 65, logo, não vivi o período mais duro do regime. Só tomei consciência política lá pelos dez anos quando li uma matéria da revista Seleções intitulado "O País que Salvou-se a Si Mesmo" - acho que era isso. o texto comentava como os militares desarticularam um golpe revolucionário comunista. Hoje sei que havia exageros no texto.

    Por meu pai ser militar e por eu mesmo abraçar a carreira em 1982 ainda no final do período militar, sempre li muito sobre o período. Li autores tanto de esquerda quanto de direita e devo admitir que:

    A narrativa vencedora oficial foi a da esquerda. Guerrilheiros que mataram, roubaram bancos, sequestraram, entraram para a história como heróis da "resistência democrática" e os generais no poder como os malvadões torturadores. Isso é uma meia verdade.

    Os militares não tiraram Jango do poder, o Congresso o tirou, e ele nem no país estava.

    Não houve tortura durante os 21 anos de governos militares, e nem dá pra chamar os 4 anos de Figueiredo de "ditadura" e nem os 4 anos do governo Geisel.

    Ou seja, houve sim os anos de chumbo, mas eles não duraram 21 anos. Os Generais que mais fecharam os olhos para a prática foram Costa Silva e Medici.

    Quem elegeu Castelo Branco presidente foi o Congresso através do Colégio Eleitoral, influenciado sim pelos militares e apoiado pela maioria da população e dos empresários.

    Jango deixou o poder com um país em crise, instável, dividido, economicamente falido, umas 5 vezes pior do que o segundo governo Dilma.

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    1. Eu imaginei que este texto mexeria com você e acho difícil comentar o seu comentário. Concordo com muito do que disse, discordo outro tanto, mas não tenho conhecimento que embase minhas opiniões. Ao contrário de você, os únicos livros que eu li sobre os governos militares pós 1964 são os cinco livros escritos pelo Elio Gaspari. Afora esses, li reportagens em revistas semanais e nos jornais O Globo e Estado de Minas. E os artigos escritos pelo Paulo Francis no Pasquim. Mas, como disse, política nunca foi assunto que me interessasse.
      Jamais chamaria de heróis as pessoas que partiram para a luta armada contra o regime e que acreditaram conseguir reverter o golpe de 1964. Para mim eram idiotas sonhadores, idealistas míopes, quixotes sem Sancho Pança. Eu jamais arriscaria a minha vida para defender minhas ideias, minha ideologia, pois sempre fiz parte do “bloco do eu sozinho”.
      Sempre tive pelo Castelo Branco a maior simpatia que poderia devotar a um militar. Odiei os presidentes que o sucederam, com exceção para o Geisel. Infelizmente, fiquei com péssima impressão dele depois de ler o Gaspari. O único general que admirei foi o Golbery, pois já disse que só tenho respeito pela inteligência. Nem todos foram radicais, só uma minoria de psicopatas e sádicos torturou. Mas o apreço dos generais pelos políticos era próximo de zero (na minha opinião), servindo apenas para dar respaldo aos verdadeiros donos do poder.
      Mas acho bizarro você dizer que não existiram torturas no período. Jura mesmo que acredita nisso? Todos os relatos de sevícias e atrocidades sofridos pelos presos e presas políticas são invencionices? E discordo da afirmação “A narrativa vencedora oficial foi a da esquerda”. Será mesmo? Sei lá, o que nos diferencia é o fato de você ter seguido carreira militar e eu ter corrido disso como o diabo foge da cruz, Como disse no texto, sou e sempre fui anticomunista, ma s não ligo a mínima para o fato de alguém ser de esquerda. Acho o Chico Buarque um idiota por defender ou aplaudir o governo de Cuba. Mas abomino qualquer manifestação de autoritarismo, venha ele de onde vier, tenha essa ou aquela cor, seja chamado ou não de ditadura. Nunca aceitei que alguém queira impor na marra sua visão de mundo. Não reclamo, não reajo, mas estou na linha do Galileo Galilei ao renegar o heliocentrismo (“e, no entanto, se move”). Para mim Lula e Bolsonaro são a mesma farinha embalada em sacos diferentes, mas chega de falar abobrinhas.

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    2. Eu não disse que "não houve tortura", claro que houve, o que eu disse é que a prática da tortura não foi algo de durou 21 anos. Se você leu a coleção do Gaspari já está ótimo, talvez seja a melhor sobre o período. eu ainda não a li toda. No mais concordamos em quase tudo. E eu acho isso muito chato, concordar....rs

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    3. "Só vou te contar um segredo": sempre respeitei a PM de Minas pois a considero merecedora de elogios, etc., mas sempre tive medo da polícia civil, com aqueles investigadores das antigas, bigodão, barrigudos, camisa aberta no peito, etc. Esse pessoal sempre me passou a impressão de descer porrada em quem eles pusessem a mão. Mas concordo com você, sobre tortura. Para mim, só sádico e psicopata se presta a uma coisa dessas. E ficamos assim: concordamos em discordar. Ou o inverso disso.

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  2. OSPB, eu achava um porre. EMC, eu gostava bastante.
    Na faculdade, na USP aqui em Ribeirão, em 1985,86, tive EPB, Estudo dos Problemas Brasileiros, mas nem tínhamos aula, só entregavámos trabalhos, era só pra inglês ver
    Mas que há uma falta de civismo (não confundir com ufanismo) atualmente, isso há.

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    1. Eu tenho muita dificuldade de conviver com esses conceitos. Eu gosto muito do Brasil e torço muito pelo povo brasileiro, mas quando ouço falar de maracutaias praticadas por políticos que posam de homens sérios eu sinto um cansaço real, pois percebo que precisamos de uns trezentos anos ou mais para que este país mereça ser amado por sua população. Não precisamos discutir ou disputar qual a melhor ideologia, o que realmente precisamos é de caráter, moralidade, honestidade. Gosto muito de uma frase do genial Millôr Fernandes que diz "Ser brasileiro me deixa sempre um pouco subdesenvolvido". E, para mim, esse subdesenvolvimento é sobretudo moral, ético.

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    2. E, principalmente, é um subdesenvolvimento planejado, muito bem conduzido.
      Nem 300 nem 3000 anos. Nunca seremos diferentes disso.

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  3. Creio que um FATO deva ficar claro de uma vez por todas : as células terroristas de esquerda não surgiram como reação ao golpe dos militares, elas se intensificaram em número e atuação depois dele, é claro, mas desde o início da década de 60 que já se organizavam e agiam, com Leonel Brizola, inclusive, como o líder da principal delas.
    Na verdade, o golpe dos militares é que foi uma reação ao início da atividade terrorista da esquerda, e não o contrário.
    Enviei um livro para você em seu e-mail. O assunto golpe militar começa na página 204. Dê lá uma olhada.

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    1. Acredite, eu concordo com você. Eu só lamento que não tenham largado o osso mais cedo. Vou ler.

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    2. Depois de escrever minha resposta fui ver o livro. Eu já li e ainda o tenho aqui em casa!

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    3. Só um comentário para terminar: eu detesto radicais!

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    4. Deixando claro que os radicais a que me refiro são os que acreditaram pode resistir com armas e também aqueles que só desejavam endurecer ainda mais o regime.

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  4. É um bom livro, faz a gente pensar um tanto a respeito da História que sempre nos foi passada como a real e única.

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