Dizem que toda
pessoa possui um anjo da guarda para chamar de seu. Pode ser, mas algumas pessoas vivem de forma tão descuidada tão displicente que talvez fosse necessário um anjo da guarda sobressalente, de estepe. Conheci um
cara assim, tantas as
roubadas em que entrou ou nas quais se viu envolvido sem querer. Como não
pretendo fazer um levantamento das inúmeras pisadas no tomate que cometeu, vou
me dedicar apenas à sua interação com automóveis.
E tudo o que
aconteceu talvez seja consequência das penalidades impostas por São Cristóvão (o padroeiro dos motoristas),
puto com a “falsidade ideológica primal”
cometida pelo Pepeu (esse era seu apelido). E qual seria essa falsidade? Por
ser mais míope que um rinoceronte, quase tão cego quanto um morcego, Pepeu
pediu ao irmão mais velho para fazer o exame de motorista por ele, à época em
que as barrigas de cerveja dos dois ainda eram semelhantes. E deu certo!
Já trabalhando
como professor, Pepeu comprou um Opala usado que estava impecável por dentro e
por fora. A primeira coisa que cismou de fazer foi pintar o interior do carro
de preto. E a forração original na cor marfim recebeu tinta látex preta
aplicada com trincha ou pincel. O resultado ficou simplesmente horrível.
Depois disso, foi destruindo o carro aos poucos. Creio que bateu ou foi batido,
resolveu trocar os amortecedores com a ajuda de um amigo, sem nenhum
equipamento adequado. O melhor resultado foi ter o dedo polegar esmagado por
uma martelada do ajudante. Só sei que, quando vendeu o carro, as portas eram
amarradas com fio de cobre, pois tinha conseguido estragar até as fechaduras. E
ali, sem que ninguém conseguisse prever, surgia um transformador de carros em
sucata, um destruidor de automóveis. Para ser sincero, de relacionamentos
afetivos também.
Tempos depois, já
com uma situação financeira mais confortável, comprou um Chevette zero
quilômetro, utilizado para uma viagem ao Nordeste, na companhia de dois ou três
amigos, professores e cachaceiros como ele. Rodaram mais de dez mil
quilômetros. Chegando a BH, guardou o carro na garagem da casa da família. Um
dos irmãos notou que saía um silvo do carro, como se um dos pneus estivesse
esvaziando. Deu um pequeno chute em um dos pneus e, para espanto geral, o motor do carro
começou a pegar fogo. Sem entenderem o que estava acontecendo, empurraram o carro
para fora de casa, mas até a chegada dos bombeiros não havia mais nada a
salvar. Que fazer? A garantia era válida até dez mil quilômetros, quilometragem
já superada pela viagem ao Nordeste. Pepeu e um primo desconectaram o cabo do
odômetro/velocímetro, acoplaram a ponta a uma furadeira na opção de desparafusar
e foram voltando a quilometragem até chegar a nove mil e poucos quilômetros.
Conseguiu assim um novo carro — que depois bateu algumas vezes antes de vender.
Por não enxergar
quase nada e sempre perder ou quebrar os óculos que mandava fazer, capotou
algumas vezes, bateu outras tantas, mas um dia São Cristóvão abusou da punição:
voltando uma noite da faculdade, o sinal amarelou e Pepeu achou melhor não
tentar atravessar a larga e movimentada avenida transversal. Estava parado no meio das duas pistas, quando surgiu um carro dirigido por um motorista bêbado que bateu em sua
traseira sem sequer pisar no freio. O impacto foi tão grande que a colega que
estava com ele desmaiou. E o carro “voou” uns dez metros para a frente, com a
traseira completamente destruída.
Pepeu trabalhava
como um cavalo, fumava como uma chaminé, bebia como um gambá e, bem apessoado e com apetite de garanhão, traía a esposa com quem desse mole para ele — alunas,
amigas e conhecidas — pouco importando se eram solteiras, noivas ou casadas.
Embora pai de quatro filhos, seu prazer era dar aula de manhã, à tarde e à
noite, de segunda a sábado, e encher a cara com os amigos no resto do tempo
disponível.
Talvez vocês
pensem que essa vida desregrada afetou negativamente o casamento e a educação
dos filhos, correto? Nota máxima para quem disse “sim”! Um dia Pepeu foi
encontrado completamente bêbado dormindo dentro do carro, estacionado em local proibido, em uma das
avenidas mais movimentadas de BH. Não me lembro do que aconteceu depois.
Mas algumas das
melhores histórias aconteceram quando ainda era solteiro. Antes do Chevette
incendiado, comprou um fusquinha usado (que também tinha uma porta amarrada com
fio de cobre quando foi vendido). Na primeira história, parou em um posto de
combustíveis para trocar um pneu furado. Feita a troca, pegaram a estrada
novamente, quando a irmã sentada no banco de trás exclamou:
— Olha, eu vi um pneu passando aqui do lado! Caiu naquele mato ali atrás.
Era o pneu mal trocado, com parafusos mal apertados.
A outra história,
bem mais interessante, tem a ver com a função de “motelmóvel” que dava a
todos os carros que possuiu. Um dia, logo na saída de BH, perdeu o controle da
direção e capotou o fusquinha em uma curva acentuada da estrada que vai para o
Rio. Até aí, nada de mais — exceto o fato de estar acompanhado da namorada. E
os dois estavam nus. Dá para imaginar a cena?
Profissional
irrepreensível, vida pessoal levada de forma egoísta, amadorística e irresponsável (casou-se com uma moça conhecida dois meses antes), Pepeu
viveu como quem não conseguiu “apertar
corretamente os parafusos” da sua própria vida louca. E pagou um alto preço
por isso.
— Olha, eu vi um pneu passando aqui do lado! Caiu naquele mato ali atrás.
Era o pneu mal trocado, com parafusos mal apertados.
Não precisa publicar.
ResponderExcluirVeja o ponto a que chega o deboche dessa gente :
https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202503/em-toda-a-minha-vida-publica-nao-lembro-de-um-momento-com-numeros-da-economia-caminhando-tao-bem-afirma-simone-tebet
Rapaz...Pepeu ainda está vivo? Eu acho que seu anjo da guarda era muito bom apesar de tudo para mantê-lo vivo depois disso tudo. Deve ser uma lenda para os conhecidos.
ResponderExcluirNão, morreu "afogado no seco", com enfisema em último grau. Não creio que seja lenda para ninguém, pois para ele amor pelos filhos era medido pelo conforto material que podia lhes oferecer. Teve comportamentos desprezíveis e inacreditáveis com os filhos, chegou ao ponto de ameaçar pedir exame de DNA dos quatro, deixou explícita sua preferência por um deles e provou isso com presentes diferenciados – deu para o predileto uma carroça e um cavalo e um cachorro para o que menos gostava e por aí. Separou-se da primeira esposa de forma traumática, cada um movendo pelo menos uns quatro processos contra o outro, os filhos preferindo ficar com a mãe, etc. Comecei a escrever um texto sobre ele, contando os fatos que talvez tenham moldado sua personalidade, mas apaguei, deixando só este texto. Era um egocêntrico digno de pena. Um profissional excepcional, mas deixava muito a desejar como ser humano.
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