sexta-feira, 28 de março de 2025

ANJO SOBRESSALENTE

Dizem que toda pessoa possui um anjo da guarda para chamar de seu. Pode ser, mas algumas pessoas vivem de forma tão descuidada tão displicente que talvez fosse necessário um anjo da guarda sobressalente, de estepe. Conheci um cara assim, tantas as roubadas em que entrou ou nas quais se viu envolvido sem querer. Como não pretendo fazer um levantamento das inúmeras pisadas no tomate que cometeu, vou me dedicar apenas à sua interação com automóveis.
 
E tudo o que aconteceu talvez seja consequência das penalidades impostas por São Cristóvão (o padroeiro dos motoristas), puto com a “falsidade ideológica primal” cometida pelo Pepeu (esse era seu apelido). E qual seria essa falsidade? Por ser mais míope que um rinoceronte, quase tão cego quanto um morcego, Pepeu pediu ao irmão mais velho para fazer o exame de motorista por ele, à época em que as barrigas de cerveja dos dois ainda eram semelhantes. E deu certo!
 
Já trabalhando como professor, Pepeu comprou um Opala usado que estava impecável por dentro e por fora. A primeira coisa que cismou de fazer foi pintar o interior do carro de preto. E a forração original na cor marfim recebeu tinta látex preta aplicada com trincha ou pincel. O resultado ficou simplesmente horrível. Depois disso, foi destruindo o carro aos poucos. Creio que bateu ou foi batido, resolveu trocar os amortecedores com a ajuda de um amigo, sem nenhum equipamento adequado. O melhor resultado foi ter o dedo polegar esmagado por uma martelada do ajudante. Só sei que, quando vendeu o carro, as portas eram amarradas com fio de cobre, pois tinha conseguido estragar até as fechaduras. E ali, sem que ninguém conseguisse prever, surgia um transformador de carros em sucata, um destruidor de automóveis. Para ser sincero, de relacionamentos afetivos também.
 
Tempos depois, já com uma situação financeira mais confortável, comprou um Chevette zero quilômetro, utilizado para uma viagem ao Nordeste, na companhia de dois ou três amigos, professores e cachaceiros como ele. Rodaram mais de dez mil quilômetros. Chegando a BH, guardou o carro na garagem da casa da família. Um dos irmãos notou que saía um silvo do carro, como se um dos pneus estivesse esvaziando. Deu um pequeno chute em um dos pneus e, para espanto geral, o motor do carro começou a pegar fogo. Sem entenderem o que estava acontecendo, empurraram o carro para fora de casa, mas até a chegada dos bombeiros não havia mais nada a salvar. Que fazer? A garantia era válida até dez mil quilômetros, quilometragem já superada pela viagem ao Nordeste. Pepeu e um primo desconectaram o cabo do odômetro/velocímetro, acoplaram a ponta a uma furadeira na opção de desparafusar e foram voltando a quilometragem até chegar a nove mil e poucos quilômetros. Conseguiu assim um novo carro — que depois bateu algumas vezes antes de vender.
 
Por não enxergar quase nada e sempre perder ou quebrar os óculos que mandava fazer, capotou algumas vezes, bateu outras tantas, mas um dia São Cristóvão abusou da punição: voltando uma noite da faculdade, o sinal amarelou e Pepeu achou melhor não tentar atravessar a larga e movimentada avenida transversal. Estava parado no meio das duas pistas, quando surgiu um carro dirigido por um motorista bêbado que bateu em sua traseira sem sequer pisar no freio. O impacto foi tão grande que a colega que estava com ele desmaiou. E o carro “voou” uns dez metros para a frente, com a traseira completamente destruída.

Pepeu trabalhava como um cavalo, fumava como uma chaminé, bebia como um gambá e, bem apessoado e com apetite de garanhão, traía a esposa com quem desse mole para ele — alunas, amigas e conhecidas — pouco importando se eram solteiras, noivas ou casadas. Embora pai de quatro filhos, seu prazer era dar aula de manhã, à tarde e à noite, de segunda a sábado, e encher a cara com os amigos no resto do tempo disponível.
 
Talvez vocês pensem que essa vida desregrada afetou negativamente o casamento e a educação dos filhos, correto? Nota máxima para quem disse “sim”! Um dia Pepeu foi encontrado completamente bêbado dormindo dentro do carro, estacionado em local proibido, em uma das avenidas mais movimentadas de BH. Não me lembro do que aconteceu depois.
 
Mas algumas das melhores histórias aconteceram quando ainda era solteiro. Antes do Chevette incendiado, comprou um fusquinha usado (que também tinha uma porta amarrada com fio de cobre quando foi vendido). Na primeira história, parou em um posto de combustíveis para trocar um pneu furado. Feita a troca, pegaram a estrada novamente, quando a irmã sentada no banco de trás exclamou:
— Olha, eu vi um pneu passando aqui do lado! Caiu naquele mato ali atrás.
Era o pneu mal trocado, com parafusos mal apertados.
 
A outra história, bem mais interessante, tem a ver com a função de “motelmóvel” que dava a todos os carros que possuiu. Um dia, logo na saída de BH, perdeu o controle da direção e capotou o fusquinha em uma curva acentuada da estrada que vai para o Rio. Até aí, nada de mais — exceto o fato de estar acompanhado da namorada. E os dois estavam nus. Dá para imaginar a cena?
 
Profissional irrepreensível, vida pessoal levada de forma egoísta, amadorística e irresponsável (casou-se com uma moça conhecida dois meses antes), Pepeu viveu como quem não conseguiu “apertar corretamente os parafusos” da sua própria vida louca. E pagou um alto preço por isso.

 


3 comentários:

  1. Não precisa publicar.
    Veja o ponto a que chega o deboche dessa gente :
    https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202503/em-toda-a-minha-vida-publica-nao-lembro-de-um-momento-com-numeros-da-economia-caminhando-tao-bem-afirma-simone-tebet

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  2. Rapaz...Pepeu ainda está vivo? Eu acho que seu anjo da guarda era muito bom apesar de tudo para mantê-lo vivo depois disso tudo. Deve ser uma lenda para os conhecidos.

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    1. Não, morreu "afogado no seco", com enfisema em último grau. Não creio que seja lenda para ninguém, pois para ele amor pelos filhos era medido pelo conforto material que podia lhes oferecer. Teve comportamentos desprezíveis e inacreditáveis com os filhos, chegou ao ponto de ameaçar pedir exame de DNA dos quatro, deixou explícita sua preferência por um deles e provou isso com presentes diferenciados – deu para o predileto uma carroça e um cavalo e um cachorro para o que menos gostava e por aí. Separou-se da primeira esposa de forma traumática, cada um movendo pelo menos uns quatro processos contra o outro, os filhos preferindo ficar com a mãe, etc. Comecei a escrever um texto sobre ele, contando os fatos que talvez tenham moldado sua personalidade, mas apaguei, deixando só este texto. Era um egocêntrico digno de pena. Um profissional excepcional, mas deixava muito a desejar como ser humano.

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