terça-feira, 11 de março de 2025

MEMÓRIAS JUVENIS DE TEMPOS SOMBRIOS - PARTE 2

Gás Lacrimogêneo
Foi em 1969, quando estava fazendo curso preparatório para o vestibular da UFMG, que conheci o gás lacrimogêneo, ou melhor, os efeitos dele. O cursinho (que depois se transformou na maior empresa da área educacional do Brasil) funcionava em um sobrado antigo localizado nos limites da área central e a uma quadra da Faculdade de Direito da UFMG, outro “ninho” de manifestantes contra o regime. Para pegar o ônibus, eu precisava passar na região onde as manifestações eram mais exaltadas e barulhentas. E a reação da polícia mais intensa. Foi assim que senti o cheiro irritante (no sentido literal) de gás lacrimogêneo utilizado para dispersar manifestações.
 
- O DOPS
Para mim, o DOPS - Departamento de Ordem Política e Social era a única face conhecida dos órgãos de repressão policial, pois nem sonhava com a existência de endereços clandestinos onde os presos eram “moídos” por sádicos e psicopatas. Em BH, o prédio ficava dentro da área delimitada pela Avenida do Contorno, em um cruzamento de avenidas um pouco afastado do centro. A entrada ficava na principal avenida de BH. Quando, por qualquer motivo, tinha de passar perto daquele lugar sinistro de tantas histórias macabras já ouvidas, eu preferia atravessar a avenida e passar do outro lado, pois cagava de medo de alguém me abordar. Um desses casos escabrosos era sobre o interrogatório de um estudante universitário, que depois de negar dezenas de vezes a acusação de ser comunista, acabou se cansando e dizendo que era comunista.
- E por que você é comunista?
- Porque meu pai é comunista, meus vizinhos são comunistas, meu cachorro é comunista...
- Ah é? E se sua mãe fosse puta, o que você seria?
- Eu seria agente do DOPS.
Dizem que teria sido tão espancado que ficou retardado. Embora seja um bom retrato da época, duvido de sua veracidade. Quem teria tornado pública essa história? O preso? O policial? Ninguém?
Foi nessa época em que fiquei sabendo da prisão e exílio de músicos, atores, jornalistas e todo tipo de gente que tinha a audácia de escrever, compor músicas ou encenar peças que contivessem críticas aos detentores do poder.
 
- Convocação
Em 1970 aconteceu um caso engraçado. O presidente Medici pediu para que o Dario, artilheiro do Atlético mineiro, fosse convocado para a seleção que disputaria a copa do mundo no México. O técnico João Saldanha recusou, pois, apesar de goleador, o Dadá Maravilha era considerado perna de pau. Resultado: o Saldanha perdeu o posto de técnico da seleção e o Dario foi convocado. Mas como era reserva do Pelé, não jogou nem meio minuto.
 
- Jornaleco Filho da Puta!
O Pasquim era um jornalzinho semanal da imprensa alternativa, que chegou a vender mais de 200.000 exemplares por tiragem. Fazia oposição aberta à ditadura militar, mas usando o humor e o sarcasmo para driblar a censura. Suas sátiras políticas acabaram provocando a prisão no final de 1970 de praticamente todos os colabores. Apesar disso (e provável desgosto e irritação dos militares), continuou a ser vendido, tendo Millôr Fernandes como editor e a colaboração de artistas, cartunistas, escritores e intelectuais de todo tipo. Seu sucesso incomodou tanto o regime que grupos de extrema-direita partiram para a destruição de bancas de revistas que o vendiam, numa tentativa destemperada de quebrar financeiramente o jornal e de calar a oposição.
 
- Atentados a Bomba
Uma das coisas mais odiosas promovida pela ala mais radical da ditadura foi o uso de explosivos para silenciar os opositores do regime. Apesar da truculência própria dessa atitude, os atentados usavam métodos sofisticados. Um deles foi a utilização de cartas-bomba. Uma delas, endereçada ao presidente da OAB do Rio de Janeiro explodiu nas mãos de sua secretária, que veio a falecer.
 
- Queimando Bancas de Revista
Lá pela década de 1980, em uma das empresas onde trabalhei, fui colega de um senhor idoso, afável e muito simpático, tratado por todos como “Major”, sua última patente militar antes de ser reformado. Puxa-saco juramentado que sou, chamava-o de “Coronel”, patente adquirida automaticamente após a reforma.
Apesar da afabilidade e modos corteses, mantinha sobre sua mesa a guisa de peso de papeis, um protótipo de sua autoria (segundo ele!) para uma granada de mão – na prática, um cilindro de ferro oxidado de uns doze centímetros de altura e sete de diâmetro, oco por dentro, todo ranhurado externamente e com tampa de rosca – e pesado pra caramba. Buona gente, já se viu. Tinha trabalhado na área de inteligência do exército e foi ele que me contou esta história.
Com o objetivo de impedir a propagação de reportagens e artigos contra o regime, grupos radicais realizaram mais de 30 atentados contra bancas de jornal que vendiam publicações contra o regime. E as bancas, sem que ninguém soubesse como, começavam a pegar fogo e ficavam destruídas. Segundo o então major, ele foi designado com outras pessoas para descobrir o que estava acontecendo. Depois de algum tempo e provável interrogatório de prováveis autores, chegaram à conclusão de que o artefato incendiário (fabricado por quem entendia do assunto) era feito de alguma substância explosiva ao entrar em contato com o ar, envolta em cera de abelha. Colocadas sobre o telhado das bancas ou locais estratégicos, ficavam “hibernando” até que a cera fosse derretida pelo calor do sol. E o bicho então pegava. Infelizmente não me lembro dos detalhes corretos contados com um sorrisinho malicioso nos lábios, mas é algo assim.
 
- Inseguro
Em resumo, mesmo continuando anticomunista, mesmo sendo super inofensivo e inocente, mesmo podendo andar “em segurança” pelas ruas, eu me sentia como o protagonista do livro 1984, pois tinha mais medo da polícia que de eventuais bandidos.
Talvez tenha sido nessa época que comecei a perceber que se havia radicalismo extremado tanto na esquerda quanto na direita, também poderia existir moderação, uma "esquerda boa" e uma "direita boa". Talvez tenha sido a partir daí que eu entendi ser a “pista do meio” o melhor lugar para mim. E estas lembranças de tempos sombrios agora chegaram ao fim. 
 

6 comentários:

  1. Muito bom o relato das suas lembranças da ditadura. Eu nunca fui um militar caxias. Aliás, eu poderia ter sido qualquer outra coisa, acabei militar por influência do meu pai e talvez por um gosto por aventuras. Nunca defendi os crimes dos governos militares. Até gosto de Gil, Chico e Caetano...lembro bem do Pasquim nas bancas, apesar de eu não comprar, eu era adolescente, estava na fase de gibis e revistinhas de mulher pelada.
    Mas há uns anos eu comprei uma coleção em dois volumes das melhores edições do Pasquim.
    Como eu disse, culturalmente a esquerda ganhou. Os milicos ficaram muito preocupados com os comunistas da ação e se esqueceram dos comunistas das redações, das universidades, do cinema, etc. Se eles quisessem de fato dominar todo o cenário político e cultural, deveriam ir em cima de quem pensava e não de quem atirava. Não que eu quisesse que isso acontecesse, estou falando em tese.

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    1. Eu prefiro pensar que a maioria daqueles que muitos chamam de comunistas era apenas de esquerda ou apoiadores de algumas bandeiras da Esquerda. Comunistas mesmo eu poderia citar o Niemeyer, o Jorge Amado, um ator da Globo muito engraçado que dizia "Eu sou normal!". É claro que devem existir muitos mais, mas eu tenho esse registro. Creio que o Ferreira Gullar foi, mas pulou fora. Eu acho uma bitola horrorosa ser a favor de regimes totalitários, venham de onde vierem. E os relatos partem apenas da percepção que tinha daquele momento. Tudo o que eu queria era fica longe disso. O que eu queria mesmo era ser guitarrista de banda de rock e seduzir todas as menininhas.

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    2. "Eu sou normal"!!! era um personagem da Escolinha do Raimundo, o ator é Benvindo Siqueira, e sim, ele ainda hoje é um ferrenho comunista, continua acreditando e esperando a realização da utopia socialista.
      Muitos comunistas brasileiros históricos entraram em crise quando viram o comunismo soviético prendendo, matando e socializando a pobreza enquanto os burocratas do partido iam se tornando a nova elite econômica. Uma grande contradição. Eles largaram o comunismo soviético mas não largaram a utopia de um mundo em todo mundo fosse igual - algo para mim irrealizável como mostrou a prática. Sem falar que é impossível tentar implantar tal coisa se não for via autoritarismo sanguinário.
      O próprio Marx e Engels escreveram que não dava para fazer a revolução sem muitas mortes mas que depois, tudo se estabeleceria na calmaria da igualdade...tá bom.
      Ah, eu também era fissurado em música, cresci com música, aprendi meus primeiros acordes no violão aos 15 anos, tocava na igreja, tive grupo musical, tive grupo de teatro...viu, eu sou um militar fake. Uma tristeza para meu querido pai Caxias

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    3. Essa é realmente a grande utopia, acreditar na igualdade das pessoas. Sinceramente falando, mesmo sendo totalmente anticomunista, eu hoje curto muito o capitalismo praticado na China comunista. E justamente por ser capitalista! O Mao deve se revirar tanto no túmulo que poderia até ser usado como motor para ventilador.

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  2. Correção: Eu NÃO tenho esse registro

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    1. A propósito, quem tinha esse bordão no programa "Viva o Gordo" era o falecido Francisco Milani. E a ele que eu me referi.

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