sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

VEM, NÃO DEIXE PRA DEPOIS - VERSÃO INTEGRAL

 Como tenho o costume de fazer, sempre que escrevo um texto que gaste mais que duas páginas A4 em arial 12 ele é publicado em dois ou mais posts, pois acho a leitura de textos longos na tela do computador um pouco enfadonha. E se penso assim, imagino que o mesmo possa acontecer com os eventuais leitores desta bagaça. Depois da publicação do texto fracionado (como também é meu costume), publico o texto em um único post, como é o caso deste. Então, som na caixa!


Como não sou de visitar ninguém, fico anos sem encontrar pessoas das famílias de meu pai ou de minha mãe. Mesmo assim, depois de saber de um piripaque sofrido por um parente com quem sempre tive mais contato, resolvi criar vergonha na cara e fazer a ele uma visitinha relâmpago.
Encontrei-o absorto, sentado em uma cadeira de rodas. Ao me ver, abriu o maior sorriso:
 
- Olha o Zé! Devo estar morrendo para você me visitar!
- Para com isso, você está bom que nem coco!
- Acho que você esqueceu o acento circunflexo...
- Deixe de bobagem! Que anda fazendo? Tudo bem com você?
- Como pode ver, eu não ando fazendo nada, eu rodo fazendo alguma coisa.
- Putz, que trocadilho horroroso!
- Mal de família...
- E o que você tem "rodado fazendo" ultimamente?
- Estou escrevendo um texto sobre minhas lembranças de carnaval.
- Efeito do carnaval que não aconteceu neste ano?
- Não, essa vontade surgiu depois de ler um conto lindo do Veríssimo. Aquilo revolveu minhas lembranças lá do fundo, me dando vontade de contar um pouco da minha história.
- "Recordar é viver", como dizia uma marchinha carnavalesca.
- Há controvérsias quanto a esse "viver", tá certo? Ainda estou escrevendo, talvez termine amanhã ou depois. Claro, se conseguir acordar respirando. Quer ler a parte que está pronta?
- Lógico!
- Pegue para mim o notebook que está naquela mesinha ali.
- Peguei!
- Bom menino! Já tem direito a ganhar sobremesa.
- Sem comentários...
 
Enquanto meu parente ligava o computador, fiquei examinando sua aparência. Vejo que foi bom eu ter vindo, pois se o humor continua o mesmo, o aspecto frágil e debilitado indica que talvez não "rode" mais por muito tempo.
 
- "Toma, pega aqui o notebook, o texto já está aberto". Comecei a ler.
 
 
                                           VEM, NÃO DEIXE PRA DEPOIS
 
Primeira infância
Quando eu tinha uns cinco ou seis anos (talvez um pouco mais) minha mãe nos levava ao centro da cidade para ver o movimento de carnaval. Em cada cruzamento de ruas da área central encontravam-se barraquinhas que vendiam todo tipo de badulaque para quem quisesse se equipar: colares de havaianas, quepes de comandante de navio e boinas de marinheiro do tipo usado pelo Popeye, máscaras diversas, óculos de acetato, apitos, sacos de confete, serpentinas e lança-perfumes Rodouro (que tinham um cheiro maravilhoso).
 
Ao longo da avenida alto-falantes instalados para a ocasião alternavam marchinhas de carnaval com publicidade de produtos diversos e empresas. O movimento era intenso, com gente andando para lá e para cá, mas, para minha decepção, quase ninguém fantasiado. Dessa época, além das poucas lembranças, tenho guardado um retrato em que eu e meu irmão aparecemos fantasiados. Eu devia ter uns três ou quatro anos e estava vestido com uma roupa tipo "gênio do Aladim". Um dia minha mãe parou de nos levar ao centro para ver o carnaval.
 
Final da infância
Quando eu tinha uns onze ou doze anos e ficava perambulando pelo bairro onde morava, surgiu a brincadeira do "sangue do diabo". Segundo meu pai, era uma mistura de "amoníaco e fenolftaleína", mas nunca me preocupei com isso, pois era ele quem preparava o "sangue" para nós. Essa solução era acondicionada em bisnagas de plástico cujo formato imitava as já proibidas lança-perfumes.
 
Era divertido ver o susto das pessoas que recebiam um jato do líquido avermelhado, pois as roupas ficavam imediatamente manchadas - manchas que sumiam assim que o líquido se evaporava. Claro que existia o risco de ganhar uns cascudos, mas normalmente só acontecia um princípio de esporro, logo atenuado pelo desaparecimento da mancha. A molecada promovia verdadeiras batalhas com aquilo. Um dia essa brincadeira passou também, talvez pegando carona no final da nossa infância.
 
Início da adolescência (e o texto terminava ali)
 
- Que achou?
- Gostei, principalmente do título e da última frase. Consegui me lembrar nitidamente daquele tempo. Quando vou ler o resto?
- Bom, como eu sei que você não virá aqui só para ler o texto, te mando por e-mail assim que acabar.
- Beleza. Vai falar do primeiro namorado que arrumou?
- Deixe de ser ridículo, não é sua biografia que estou escrevendo!
 
                                                               xxx
 
Por estar aposentado, não tenho mais o costume de abrir diariamente o Outlook. Às vezes fico uma semana ou mais sem me preocupar com isso, pois praticamente só recebo spam, ofertas de produtos e pesquisas de opinião sobre compras on line. Por isso, já tinha até esquecido a história, quando recebi um e-mail com o final do texto que meu parente estava escrevendo quando fui visitá-lo. E este é o final, o complemento do texto que li em seu notebook.
 
Início da adolescência
Creio que foi ao entrar na adolescência que descobri - terrível descoberta! - que eu era feio, desengonçado, narigudo, magricelo. E sem queixo. Essa aparência desfavorável aliada a um medo paralisante e a uma timidez nível "hard" me deixava totalmente sem ação ao estar perto de uma menina. O resultado imediato e previsível é que eu não era notado por ninguém. E se fosse, não saberia como me aproximar, como proceder.
 
 
Foi nessa época de trevas, quando devia ter não mais que quatorze anos que me sugeriram ir a uma matinê de carnaval em um clube próximo de nossa casa. Fiquei sem saber se ia, pois nunca tinha visto antes um "baile de carnaval". Mas acabei cedendo à insistência de minha mãe e fui. Meio a contragosto, mas fui.
 
Naquela época carnaval bom era carnaval de clube. Por isso,até as matinês carnavalescas ficavam cheias de gente. O salão tinha sido dividido em dois, creio que com utilização de cadeiras. De um lado ficavam os adultos e adolescentes mais velhos, girando e marchando em torno de um círculo imaginário. Do outro lado ficava o pessoal da minha faixa etária formando uma grande roda, todos de mãos dadas, fazendo uma espécie de ciranda. E no meio os mais desinibidos e as meninas que às vezes escolhiam algum garoto para puxar para o meio da roda. Ficavam ali "puladançando" um ou dois minutos e logo o menino era despachado para o anonimato de onde saíra.
 
Acho pertinente dizer que as músicas executadas eram em sua maioria marchinhas compostas especialmente para os festejos "momescos". Por isso, ninguém exibia dotes de passista de escola de samba, todo mundo "marchava". Cadenciadamente nas músicas mais lentas ou pulando  animadamente nas mais aceleradas.
 
E ali estava eu, mais deslocado que penetra em velório de desconhecido. Apesar da timidez e da total falta de traquejo eu estava pronto a me apaixonar por qualquer menina que olhasse na direção de onde eu estava. Nem precisava ser muito bonita, bastava que não fosse feia (afinal, de feio já bastava eu). E "ela" me olhou. E fez mais, puxou-me para o centro da ciranda.
 
Eu não sabia exatamente o que fazer, mas fiquei extasiado com aquele projeto de deusa à minha frente. A fantasia que usava era de índia americana, tinha cabelos pretos presos por uma tira ou cocar de duas penas, os olhos verdes estavam maquiados e na boca estava depositado um batom vermelho ou coisa parecida. Usava colar e brincos, provavelmente feitos de miçangas. Esqueci de dizer que era linda. E eu ali, desenxabido, sem graça, esperando ser despachado de volta ao "espaço exterior", o que aconteceu no tempo "regulamentar". Não sei se continuei no salão depois dessa overdose de felicidade ou se fui embora, pois sabia que não entraria novamente na órbita da índia.
 
Na matinê seguinte (só havia matinês aos domingos e terças feiras) nem precisei ser incentivado. Fui logo me encaixando na roda dos "mendicantes", à espera de ser novamente puxado para o centro pela deusa, mas não foi o que aconteceu. Não sei se ela não foi ou se ignorou minha presença e meu olhar de enamorado. E assim terminou minha primeira festa de carnaval.
 
Fiquei apaixonado durante um ano, paixão que foi amortecendo até o carnaval seguinte. Também não sei se ela estava ou não presente nas matinês, mas isso já não importava, pois em um domingo qualquer, quando voltava da missa, descobri onde morava. Conversava no portão de uma casa, mas não tinha a beleza estonteante que julguei que possuísse. E, pior, já estava namorando - um sujeito mais velho, mais alto, mais bem aparentado e mais forte que eu.
 
 
Estava nesse ponto da história quando fui convocado a fazer compras no supermercado e obrigado a interromper a leitura do e-mail, pois ainda havia um trecho grande daquela história para ler. E confesso que estava curioso por saber que outras revelações meu companheiro de juventude tinha se animado a fazer.
 
                                                               xxx
 
Depois de guardar as compras de supermercado, a primeira coisa que fiz foi religar o computador e acessar o Outlook. Lá estava o e-mail que já tinha começado a ler, com aquele "assunto" (subject) convidativo - "Vem, não deixe pra depois".
 
Desde o dia em que fui à casa de meu companheiro de juventude e peguei o notebook para ler o trecho inicial da história, estranhei a necessidade de títulos no meio do texto, mas depois entendi o motivo. Meu velho amigo estava registrando blocos de memória cujo único ponto de contato era o carnaval. Mesmo assim, reli rapidamente os trechos já conhecidos e encarei o que imaginava ser a reta final da história.
 
 
Final da adolescência
Eu continuava tímido, bobo e inseguro no final da adolescência, era quase uma máquina programada para não me arriscar, para não me aventurar nunca. O medo de parecer ridículo me fazia ficar estático, paralisado perto de meninas que me atraiam. Naquela época eu já tinha abandonado o bairro onde nasci e frequentava um bairro próximo, mais civilizado, pois me tornei sócio de um clube fuleiro que existia na região. Assim, tinha acesso às horas dançantes super sem graça que aconteciam nas noites de sábado. Só mesmo o carnaval para mudar um pouco - só um pouco - essa situação. Em fevereiro aconteciam quatro bailes noturnos de carnaval, bastante cheios e movimentados. Para animar a festa havia uma pequena banda (que naquela época era chamada de "conjunto") formada por trombone, piston, clarineta, bateria e mais alguma coisa, tudo isso regido pela batuta (ou baqueta) do maestro e baterista Serrinha.
 
Com o salão já cheio de foliões e os músicos a postos em seus lugares, o piston anunciava o início da festa na hora marcada: TARÁ TARÁ TARÁ TATÁ , TÁ TÁ RÁ TÁ TÁ TÁ!!! e a banda atacava "Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é..."  Imediatamente surgia um carrossel de pessoas marchando, "puladançando" a girar pelo salão, uma "Via Láctea" em miniatura, formada pelos casais pré-existentes, por grupos de foliãs desacompanhadas e por novos pares que iam surgindo, à medida que os mais desinibidos colocavam a mão na cintura ou no ombro da primeira moça que viam. Enquanto isso, um "cinturão de asteroides" (fiquei tentado a escrever um cinturão de testosteroides) formado por homens semi-estáticos e desacompanhados demarcava os limites da "galáxia". Aquele era o meu lugar.
 
Pois bem, não sei se foi na segunda ou terceira noite que notei um olhar diferente, de significado desconhecido, vindos de uma menina que mesmo não sendo linda era muito atraente. E tinha belos olhos. Aguardei ansioso que passasse sozinha novamente e avancei. E ficamos girando abraçados pelo salão, sem sair de nossas bocas uma só palavra que não fosse a letra cantada de uma das marchinhas tocadas. Não sei mais quanto tempo ficamos juntos, não perguntei seu nome nem tentei beijá-la (procedimento inimaginável naquela época). Só sei que estava feliz, muito feliz.
 
Na noite seguinte, talvez a última daquele carnaval, lá estava ela de novo. Exibiu um leve sorriso quando coloquei novamente a mão em seu ombro e lá fomos nós. Apesar de ser carnaval, se na época eu conhecesse a música, teria cantado para ela "Fly me to the moon" ("and let me play among the stars"), pois era assim que eu me sentia. Mesmo não sendo essa, havia músicas de carnaval que apertavam meu peito e me faziam sonhar, (ainda mais abraçado inocentemente com ela). Uma dessas músicas dizia assim:
 
A noite é linda nos braços teus,
É cedo ainda pra dizer adeus
Vem, não deixe pra depois, depois
Vem, que a noite é de nós dois, nós dois...
 
Não sei a culpa era dessa letra ou se o motivo estava na melodia, talvez uma mudança de um tom maior para um menor ou o inverso disso, sei lá. Só sei que quando executada, essa música me fazia amargar a sensação de que eu deveria ter me aventurado mais, ter aproveitado mais, pois "agora, só no ano que vem".
 
No ano seguinte, já com dezessete mal vividos anos, lá estava eu de novo naquele clube, um pouco mais falante, um pouco mais desinibido, mas sempre solitário. A música começou a tocar e ela surgiu, mas abraçada com alguém. Passou por mim com um ligeiro e irônico sorriso, deixando-me ainda mais desalentado. Entretanto, na segunda volta já estava sozinha, fazendo-me novamente abraçá-la e sonhar, sonhar, sonhar enquanto girávamos pelo salão.
 
Hoje, tantos anos depois, não me lembro mais se brincamos e pulamos juntos todas as noites. Não sei quais palavras trocamos nem se me disse seu nome - ou se disse e eu o esqueci. Só sei que tentei sem sucesso obter seu endereço ou coisa semelhante. Mas imagino talvez ter descoberto pelo menos um dos motivos para a recusa: seu pai estava ali pertinho, vigilante. Creio que ela era filha do maestro Serrinha.
 
Mais um ano se passou,  eu tinha acabado de ser corneado por uma (ex) namorada e, por já não ser mais sócio daquele clube, deixei de ir a seus bailes de carnaval. Não sei dizer - e adoraria saber - que fim levou aquela menina de olhos sonhadores a quem só encontrava em duas ou três noites por ano, noites de carnaval. Mas a história não acaba assim, pois naquele mesmo ano, em outro clube, em outro baile carnavalesco, conheci a mulher da minha vida, a menina mais linda com quem eu poderia um dia sonhar.
 
                                                               FIM
 
 
Percebi que estava com um ligeiro e involuntário sorriso de aprovação ao terminar a leitura. E fiquei ali um pouco, pensativo, meditando sobre como pode ser curiosa a vida. O texto de meu "parça" que acabara de ler era uma reação, tinha sido motivado por um conto do Luis Fernando Verissimo. Desconsiderada a qualidade literária de um e de outro, a história de meu amigo fez com eu também mergulhasse no meu passado e me lembrasse da minha juventude, tão próxima à que acabara de ler, que o texto parecia ter sido  inspirado não só na vida de meu velho companheiro mas também na minha.
 

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