quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

AS COISAS QUE ESCREVO

Meu pai sempre dizia que Tio Chiquinho, um de seus irmãos mais velhos, escrevia muito bem, tendo sido inclusive colaborador de um jornal de Ponte Nova, onde moravam. Entretanto, em algum momento, no fim da vida, antes de adoecer para morrer, rasgou e queimou toda sua papelada.

E aqui cabe uma pergunta: de que ele tinha receio? Ele era solteirão, como se dizia (metade dos irmãos de meu pai morreu solteira). Será que ele temia os comentários póstumos dos irmãos ao ler seus escritos? Pode ser. Imagino uma de minhas tias dizendo algo como “Gente, ele não era sistemático nem esquisitão como nós, ele era normal”!

Tá bom, admito que essa piadinha é meio cruel, principalmente por todos já terem morrido (aí, não tem nem sentido falar que “eu perco os tios, mas não perco a piada”). Mas, mesmo tendo convivido muito pouco com eles, eu sentia – e sinto – um enorme carinho por todos eles. A questão é que eu sempre tive a sensação que eles não viviam no século XX, pois eles conseguiam ser modernos e antiquados ao mesmo tempo. Para mim, eles viveram em um século só deles, algo como século 19,7 ou 20,3.  Essa, a razão da piadinha.

Mas, voltando ao tema inicial, devo dizer que também meu pai gostava de escrever seus textos, “catando milho” em uma velha máquina de escrever. Uma vez, mostrou-me um soneto muito legal, manuscrito em um papel com um aspecto de estar guardado havia muito tempo. Percebendo uma letra muito parecida com a sua, perguntei quem o tinha escrito e ele só deu um sorriso meio irônico, meio misterioso. Perguntei se era ele, mas não me respondeu. Apenas pegou o papel de volta e o guardou. Nunca mais reli esse poema. Para seguir o exemplo do irmão mais velho, um belo dia queimou tudo ou quase tudo. Depois que morreu, creio que meu irmão se encarregou de queimar os papéis que sobraram. Deve ser uma espécie de Karma familiar.

Então, não seria nada demais eu também gostar de escrever. Só que eu nunca quis seguir essa sina da família, de apagar rastros, de “salgar a terra”. No duro, no duro, o que talvez me faça escrever é o medo de ser esquecido. E, vamos deixar de hipocrisia: é indiscutível que eu quero que as pessoas leiam o que eu escrevo e, pior, gostem e elogiem o que leem.

O problema é que, relendo o que já escrevi, percebo que a criatividade e originalidade, geograficamente falando, estão em um fundo de vale, enquanto a presunção está lá no alto da montanha. Fazer o que, não é mesmo?

Voltando a falar sério, creio que foi depois de fazer cinquenta anos que a vontade de registrar reflexões pessoais e lembranças aumentou consideravelmente. Cheguei até a pensar em escrever um livro, mas desisti, por dois motivos, sendo o primeiro a constatação de que escrever muito é chato demais. Sério! O outro tem um pouco de desalento: em um livro de psicologia eu descobri que essa ânsia de deixar algum tipo de lembrança é comum em pessoas que estão mais velhas, ou seja, há um desejo meio inconsciente, meio depressivo de perpetuar-se, de permanecer vivo na lembrança das pessoas, mesmo depois de falecido. Depois dessa informação, desisti do projeto original.

Por isso, fazendo um parêntese, devo aproveitar para fazer um alerta aos jovens de hoje:
Jovens (vocativo): a Velhice é uma droga, mas, como diria o Tim Maia, grande especialista em processos químicos e agricultura alternativa, é uma droga que não dá “barato”, só “bode” (os termos “barato” e “bode” eram usuais na década de 70. Não sei como é hoje. Talvez precise me atualizar...). 

Por falar em originalidade, devo dizer que admiro muito os escritores que criam enredos mirabolantes, criativos, sensacionais, pois o máximo que consigo fazer é juntar lembranças, reflexões, opiniões e citações de terceiros, numa salada só. Normalmente, as citações e transcrições são a melhor parte do resultado que obtenho. Sinceramente, não consigo escrever de outra forma, mesmo se tentar. Está aí a receita de meus textos.

Mas descobri que tenho um predecessor (ilustríssimo) nessa forma de escrever, que é o Mário de Andrade. Verdade! Bom, e o que tem esse cidadão a ver com as coisas que escrevo? Ou, melhor ainda, o que o tem o jegue aqui com um escritor badalado como Mário de Andrade? Para o bem do modernista, a resposta é “nada”, ou quase isso.

Antes de concluir, mais um parêntese: lá pelos idos da década de 70, sem desconfiar até então da existência de um livro com esse nome, eu assisti o que considero um dos melhores filmes brasileiros já produzidos, que é justamente “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade, baseado na obra homônima de Mário de Andrade. Não entendo nada de cinema, muito menos de filmes “de arte”, normalmente muito herméticos e chatíssimos. Então, sou suspeitíssimo para fazer qualquer tipo de avaliação. Apenas sei que gostei pra caramba desse filme que, embora considerado “de arte”, é divertidíssimo (com interpretações sensacionais do Paulo José e do Grande Otelo). Por isso, quando li alguns trechos do livro (preciso confessar que nunca li o livro na íntegra), fiquei surpreso ao constatar que o filme tinha sido extremamente fiel ao texto original, que é cheio de fábulas, lendas e ditos populares, o que foi reproduzido com muito humor no filme. Fecha-se o parêntese.

Alguns anos atrás, ao folhear uma apostila de vestibular de um dos meninos, encontrei um trecho de “Macunaíma”, juntamente com uma análise desse livro. Segundo a apostila, o Mário de Andrade, que era um grande conhecedor de música, teria chamado sua obra de “rapsódia”, pela semelhança construtiva com as peças musicais que têm essa designação. Em música, segundo meu amigo Guga (para os íntimos, para os demais é Google mesmo), rapsódia é uma peça “formada a partir de trechos, temas ou processos de composição das canções tradicionais ou populares de uma região ou de um país”.

Ou seja, “rapsódia” é uma colcha de retalhos, uma verdadeira salada de frutas literária (no caso de “Macunaíma”) ou musical. Então, eu também poderia (modestamente!) chamar os textos que escrevo de rapsódicos. O problema é que as saladas que eu faço são do tipo jerimum, jiló, chuchu e cagaita, sendo esse último ingrediente uma referência indireta aos resultados que alcanço. Mas aí já é outra história!


Texto originalmente publicado em 26/06/2014.


Um comentário:

  1. "Escrevo sem pensar, tudo o que o meu inconsciente grita. Penso depois: não só para corrigir, mas para justificar o que escrevi." Mário de Andrade Qualquer semelhança é mera coincidência! hahaha....

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