Por só ter um texto ainda inédito e não estar com espírito para escolher e mover algum dos textos antigos já publicados, nem pensava em postar nada hoje. Estava com o pensamento distante, passei o dia meio melancólico, angustiado e sem lugar. Até agora à noite. Mas tive a sorte de ler um “conto de verão” do Luis Fernando Verissimo que mudou tudo, até o estado de espírito. Hoje é segunda feira de Carnaval, época do ano que sempre mexeu comigo por inúmeras razões que não vale a pena agora comentar. Só posso dizer que o conto do meu ídolo Verissimo revolveu minha mente e trouxe à superfície muitas lembranças. Espero que gostem (e talvez até se emocionem) tanto quanto eu. Olhaí.
Ele: tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.
Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.
Só no terceiro Carnaval se falaram.
— Como é teu nome?
— Janise. E o teu?
— Píndaro.
— O quê?!
— Píndaro.
— Que nome!
Ele de legionário romano, ela de índia americana.
Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.
— Ah.
Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do “Bandeira branca”, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse “Até o Carnaval que vem” e saiu correndo.
No baile do ano em que fizeram treze anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:
— Me dá alguma coisa.
— O quê?
— Qualquer coisa.
— O leque.
O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.
No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera?
— Você vomitou a alma — disse a mãe.
Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela. Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube — e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.
— Sei lá. Bávara tropical — disse ela, rindo.
Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.
— E aquela bailarina espanhola?
— Nem me fala. E o toureiro?
— Aposentado.
A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse “Píndaro?!” e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos trinta, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi “pelo menos o meu tirolês era autêntico” e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar “Bandeira branca” e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo “não vale, você cresceu mais do que eu” e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.
Encontram-se de novo quinze anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse: “Quase não reconheci você sem fantasias”. Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe dissera fora “preciso te dizer uma coisa”, e ela dissera “no Carnaval que vem, no Carnaval que vem” e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara...
— O que você ia me dizer, no outro Carnaval? — perguntou ela.
— Esqueci — mentiu ele.
Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil... E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, “Bandeira branca”, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos trinta, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrareo. Pôncio. Ptolomeu...
Olá Jotabê, tudo bem? Costumo ler seus textos, mas não cheguei a comentar em nenhum. Cheguei neste recanto através do blog do Neófito, dele fui para o Marreta, e depois para cá. Gosto bastante da forma que escrevem vocês três. Gosto mais ainda dos temas, que várias vezes invocam o cotidiano, como faziam os cronistas antigamente.
ResponderExcluirGosto bastante das crônicas do Verissimo. Não sou aficionado, mas, vira e mexe, leio algo. Essa crônica me lembra uma outra, O encontro, de um casal que, depois de casado, se separou e voltam a se encontrar num mercado. Ambos querem dizer que não conseguem se esquecer um do outro, mas têm vergonha, por acharem que o um está vivendo melhor sem o outro (festas, namorados, bebedeiras, entre outros). Conversam banalidades, sempre naquele "falo ou não falo" e acabam indo embora.
Nossas vidas são cheias destes momentos, mas poucos andam escrevendo sobre isso, talvez por ser algo meio triste e melancólico, que mexe com o que temos de mais íntimo, com nossas memórias. A quantidade de coisas que deixamos de dizer, simplesmente por achar que não deveríamos dizer, é muito grande. Hoje ainda mais, já que aparentemente, todos vivem uma vida fantástica na internet. Quem se importaria com "esse é o melhor momento da minha vida"?
Um abraço!!.
Que comentário pertinente e bem vindo! Obrigado por acessar este blog desconjuntado e mais ainda por se dispor a comentar sobre este post. Acho que você disse tudo sobre a forma como tento escrever. Eu era muito travado para escrever, embaraçava-me tentando alcançar a elegância formal dos verdadeiros escritores, tropeçava nas palavras que não faziam parte frequente do meu cotidiano, etc. Em algum momento consegui desencanar desse desejo pretensioso de produzir boa literatura e comecei a escrever exatamente como falo, cheio de gírias já em desuso, com palavrões sendo utilizados mais a título de exclamação e expressões coloquiais do tipo "tá vendo só?" Isso possibilitou que eu me libertasse para contar casos, escarafunchar lembranças e falar do dia a dia, cheios "destes momentos, mas (que) poucos andam escrevendo sobre isso, talvez por ser algo meio triste e melancólico, que mexe com o que temos de mais íntimo, com nossas memórias", como você bem definiu. Obrigado mais uma vez pelo comentário. Abraços.
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