quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

VEM, NAO DEIXE PRA DEPOIS - FINAL


Depois de guardar as compras de supermercado, a primeira coisa que fiz foi religar o computador e acessar o Outlook. Lá estava o e-mail que já tinha começado a ler, com aquele "assunto" (subject) convidativo - "Vem, não deixe pra depois".

Desde o dia em que fui à casa de meu companheiro de juventude e peguei o notebook para ler o trecho inicial da história, estranhei a necessidade de títulos no meio do texto, mas depois entendi o motivo. Meu velho amigo estava registrando blocos de memória cujo único ponto de contato era o carnaval. Mesmo assim, reli rapidamente os trechos já conhecidos e encarei o que imaginava ser a reta final da história.
 
Final da adolescência
Eu continuava tímido, bobo e inseguro no final da adolescência, era quase uma máquina programada para não me arriscar, para não me aventurar nunca. O medo de parecer ridículo me fazia ficar estático, paralisado perto de meninas que me atraiam. Naquela época eu já tinha abandonado o bairro onde nasci e frequentava um bairro próximo, mais civilizado, pois me tornei sócio de um clube fuleiro que existia na região. Assim, tinha acesso às horas dançantes super sem graça que aconteciam nas noites de sábado. Só mesmo o carnaval para mudar um pouco - só um pouco - essa situação. Em fevereiro aconteciam quatro bailes noturnos de carnaval, bastante cheios e movimentados. Para animar a festa havia uma pequena banda (que naquela época era chamada de "conjunto") formada por trombone, piston, clarineta, bateria e mais alguma coisa, tudo isso regido pela batuta (ou baqueta) do maestro e baterista Serrinha.
 
Com o salão já cheio de foliões e os músicos a postos em seus lugares, o piston anunciava o início da festa na hora marcada: TARÁ TARÁ TARÁ TATÁ , TÁ TÁ RÁ TÁ TÁ TÁ!!! e a banda atacava "Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é..."  Imediatamente surgia um carrossel de pessoas marchando, "puladançando" a girar pelo salão, uma "Via Láctea" em miniatura, formada pelos casais pré-existentes, por grupos de foliãs desacompanhadas e por novos pares que iam surgindo, à medida que os mais desinibidos colocavam a mão na cintura ou no ombro da primeira moça que viam. Enquanto isso, um "cinturão de asteroides" (fiquei tentado a escrever um cinturão de testosteroides) formado por homens semi-estáticos e desacompanhados demarcava os limites da "galáxia". Aquele era o meu lugar.

Pois bem, não sei se foi na segunda ou terceira noite que notei um olhar diferente, de significado desconhecido, vindos de uma menina que mesmo não sendo linda era muito atraente. E tinha belos olhos. Aguardei ansioso que passasse sozinha novamente e avancei. E ficamos girando abraçados pelo salão, sem sair de nossas bocas uma só palavra que não fosse a letra cantada de uma das marchinhas tocadas. Não sei mais quanto tempo ficamos juntos, não perguntei seu nome nem tentei beijá-la (procedimento inimaginável naquela época). Só sei que estava feliz, muito feliz.

Na noite seguinte, talvez a última daquele carnaval, lá estava ela de novo. Exibiu um leve sorriso quando coloquei novamente a mão em seu ombro e lá fomos nós. Apesar de ser carnaval, se na época eu conhecesse a música, teria cantado para ela "Fly me to the moon" ("and let me play among the stars"), pois era assim que eu me sentia. Mesmo não sendo essa, havia músicas de carnaval que apertavam meu peito e me faziam sonhar, (ainda mais abraçado inocentemente com ela). Uma dessas músicas dizia assim:
 
A noite é linda nos braços teus,
É cedo ainda pra dizer adeus
Vem, não deixe pra depois, depois
Vem, que a noite é de nós dois, nós dois...
 
Não sei a culpa era dessa letra ou se o motivo estava na melodia, talvez uma mudança de um tom maior para um menor ou o inverso disso, sei lá. Só sei que quando executada, essa música me fazia amargar a sensação de que eu deveria ter me aventurado mais, ter aproveitado mais, pois "agora, só no ano que vem".
 
No ano seguinte, já com dezessete mal vividos anos, lá estava eu de novo naquele clube, um pouco mais falante, um pouco mais desinibido, mas sempre solitário. A música começou a tocar e ela surgiu, mas abraçada com alguém. Passou por mim com um ligeiro e irônico sorriso, deixando-me ainda mais desalentado. Entretanto, na segunda volta já estava sozinha, fazendo-me novamente abraçá-la e sonhar, sonhar, sonhar enquanto girávamos pelo salão.

Hoje, tantos anos depois, não me lembro mais se brincamos e pulamos juntos todas as noites. Não sei quais palavras trocamos nem se me disse seu nome - ou se disse e eu o esqueci. Só sei que tentei sem sucesso obter seu endereço ou coisa semelhante. Mas imagino talvez ter descoberto pelo menos um dos motivos para a recusa: seu pai estava ali pertinho, vigilante. Creio que ela era filha do maestro Serrinha.
 
Mais um ano se passou,  eu tinha acabado de ser corneado por uma (ex) namorada e, por já não ser mais sócio daquele clube, deixei de ir a seus bailes de carnaval. Não sei dizer - e adoraria saber - que fim levou aquela menina de olhos sonhadores a quem só encontrava em duas ou três noites por ano, noites de carnaval. Mas a história não acaba assim, pois naquele mesmo ano, em outro clube, em outro baile carnavalesco, conheci a mulher da minha vida, a menina mais linda com quem eu poderia um dia sonhar.
 
FIM


Percebi que estava com um ligeiro e involuntário sorriso de aprovação ao terminar a leitura. E fiquei ali um pouco, pensativo, meditando sobre como pode ser curiosa a vida. O texto de meu "parça" que acabara de ler era uma reação, tinha sido motivado por um conto do Luis Fernando Verissimo. Desconsiderada a qualidade literária de um e de outro, a história de meu amigo fez com eu também mergulhasse no meu passado e me lembrasse da minha juventude, tão próxima à que acabara de ler, que o texto parecia ter sido  inspirado não só na vida de meu velho companheiro mas também na minha.

2 comentários:

  1. Achei que não publicaria a continuidade. Bela história.

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    1. Obrigado! Para arrematar, amanhã sairá a compilação das três partes (mania pessoal). Depois disso, vou aceitar um desafio do Scant: durante "três" meses (a verificar!) só publicarei os textos movidos do início do blog e que possuam carimbo de "imprimatur" (na minha cabeça, lógico)

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FOLHA DE PAPEL

  De repente, sem aviso nenhum, nenhum indício, nenhum sinal, você se sente prensado, achatado, bidimensional como uma folha de papel. E aí....