domingo, 20 de setembro de 2020

BESTA-FERA


Este texto foi escrito em 27/08, em um dia de expiação de culpas antigas (mas não adiantou).

O Blogson sempre foi para mim um lugar de descarte, de descarga, de desabafo, de muro das lamentações. Isso está intimamente vinculado à sua origem, pois os primeiros duzentos posts (algo em torno disso) foram resgates de e-mails que mandava a torto e a direito. Talvez por isso, peguei a mania de falar (mal) de mim mesmo, até quando faço piadinhas e trocadilhos infames. Talvez por excesso de soberba, vaidade e egocentrismo eu acredite que meus strip teases emocionais possam servir de comparação para aqueles que acessam o blog. Em outras palavras, tal como em uma terapia de grupo, o que eu digo de mim pode servir de gatilho para que o leitor reflita sobre si mesmo (e dê graças a Deus por não ser parecido comigo).

Essa goma indigesta serviu para que eu fale de meu pai, de culpa e de arrependimento (estou sentindo que a goma ficará ainda mais indigesta). Quando eu nasci meu pai tinha 39 anos. Quando meu primeiro filho nasceu eu tinha 26 anos (hoje tenho 70). Talvez por ter me tornado pai tão novo sempre conversei com meus filhos de forma bastante livre e relaxada (ao contrário das conversas que tinha com meu pai). Além do mais, sempre gostei de quadrinhos, discos, livros, shows, exposições, cadernos B e todo tipo de coisa que permite ter um panorama geral do que eu chamo de “cultura pop”. Hoje, graças a esse relacionamento que estabeleci com meus filhos, são eles que me alimentam com novidades (ou “velhidades” que eu não conhecia). Há pessoas que são pragmáticas, focadas em suas profissões. Eu nunca fui assim, sempre gostei de cultura inútil. Mas nem todo mundo tem esse interesse difuso e sem utilidade prática. E muitos conhecidos reais não entendem as piadas idiotas que faço, fazendo com que eu me sinta um ET.

Apenas digo que esse comportamento descontraído e pensamentos descolados servem para camuflar o ogro que existe em mim. Porque meu pai, mesmo nascido em uma época inimaginavelmente remota e tendo 39 anos quando eu nasci nunca foi o carrasco sádico em que eu me transformei depois que nossos filhos foram nascendo. Creio já ter falado sobre isso aqui em outra seção de blogoterapia, mas não vejo problema em (re)admitir meus erros e culpas, pois só os idiotas não aceitam que erram ou que erraram.

Quando nosso primeiro filho nasceu eu tinha apenas 26 anos, era tão imaturo que dava até pena.  Talvez essa imaturidade tenha me feito pensar que castigar fisicamente os meninos era um bom método de educação. Afinal, como eu nunca apanhei de meus pais, talvez essa ausência de castigo corporal explicasse minha preguiça, minha indolência, minha ausência de fibra, de dedicação, de maturidade. E por isso eu castiguei com surras e palmadas quatro criancinhas lindas, amorosas, inocentes e indefesas. Eu usei minha mão de adulto para castigar quem estava apenas agindo como as crianças que eram. Para ser sincero, as palmadas eram como que espasmos, motivadas mais pela minha impaciência que pelo "merecimento". Por exemplo, se um brinquedo era jogado para cima e caía em cima de um irmãozinho mais novo, já sabe, palmada. Isso aconteceu com duas criancinhas, quando o "culpado" tinha apenas dois anos! Lembrar isso faz meu coração doer de remorso!!! Quem realmente educou nossos filhos foi minha mulher, eu só atrapalhava. E ela nunca bateu neles.

"A meu favor", para contrabalançar um pouco (como se isso adiantasse alguma coisa), declaro que nunca deixei de explicitar de forma "escandalosa" meu amor por nossos filhos (isso eu aprendi com meu pai). Outra coisa que eu queria comentar é que as palmadas e surras foram diminuindo progressivamente, do mais velho para o mais novo, até cessarem por completo. Mas a dor da injustiça e da crueldade que cometi me devasta até hoje, basta pensar nisso. Dizem que as feridas cancerosas não cicatrizam. Se for assim, o arrependimento é um câncer que me consome, é como o abutre que comia diariamente o fígado de Prometeu.

Por isso, voltando ao princípio do texto, deixo esta mensagem, esta súplica: caro leitor, cara leitora, talvez você já seja pai ou mãe, talvez ainda venha a ser. Em qualquer hipótese nunca aja com seus filhos como a besta-fera que eu fui agiu. Como cantou o Belchior, "na parede da memória esse é o quadro que dói mais". Com o tempo, talvez eles não se lembrem dos gritos ameaçadores, da violência gratuita e das surras imotivadas de que foram vítimas, mas o seu travesseiro, o seu espelho, a sua memória nunca te deixarão esquecer o que você nunca deveria ter sido e feito.

4 comentários:

  1. cara, quanto masoquismo
    provavelmente seus filhos tão pouco se lixando pra esses excessos
    vida que segue
    se eles te amam, já te perdoaram;
    se não; seu arrependimento não deve mudar nada

    por outro lado, carrega um dor inútil; deve ser um resquício daquela noção cristã que todo pecado merece ser expiado com dor e sofrimento do pecador

    prefiro lembrar de cristo dizendo a mulher adultera: nem tampouco eu te condeno; vá e não peques mais

    blogson cheio de xurumelas...

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    1. Meu caro Scant, ninguém nunca deu um toque tão direto no ponto (parece até urologista)! Eles já me falaram alguma coisa parecida e acham que eu sou severo demais comigo mesmo (alguns antigos colegas de serviço também comentaram sobre minha excessiva severidade comigo mesmo). Nunca conectei o arrependimento com a "noção cristã de que todo pequecado merece ser expiado", mas é uma boa sacada. Deu muito material para pensar. Obrigado mesmo!

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    2. tamo aqui pra isso
      fora que essa ênfase histórica do cristianismo no pecado parece ser um erro
      o foco de cristo era no perdão, na graça (benção imerecida)
      a religão é a raiz da maioria dos males psicológicos, hehe
      vai ter que achar outro motivo pra se torturar (o que não é difícil no Brasil) :)

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    3. OK, mas já vou logo avisando que tenho 25 posts prontos e programados. Alguns ( uns três, no máximo) podem meio depressivos, mas não vou deixar de aproveitá-los (quem será torturado é o leitor).

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