O texto a seguir foi copiado da excelente revista Superinteressante. É longo para os padrões do Blogson, mas tão bem escrito e instrutivo que merece ser lido na íntegra. Por que deveria ser lido?
Porque fala da família do coronavírus, das variantes, das mutações e o que pode
acontecer. Ajuda também a desmontar a realidade alternativa criada pelos
bolsonaristas mais relinchantes, de que o vírus “desenvolvido em laboratório”
teria fugido ao controle dos chineses. Achei tão bacana que resolvi publicar na
íntegra, mas com todos os créditos devidos. É um super textão, mas tão
interessante que dá para ler rapidinho. Esse foi o segundo motivo para publicá-lo aqui no blog da solidão ampliada. E o primeiro motivo (talvez o principal) para publicá-lo sem resumir é o fato de que sou um prisioneiro da idade. E o carcereiro é uma mamona invisível e submicroscópica que não me deixa sair de casa.
Os outros coronavírus: o que a evolução deles diz sobre o futuro da pandemia
Os outros coronavírus: o que a evolução deles diz sobre o futuro da pandemia
Eles convivem conosco há décadas. E, no
começo dos anos 2000, quase saíram do controle. Entenda por que isso não
aconteceu, veja como esses seres se modificaram de lá para cá – e o que isso
revela sobre os vírus do futuro.
Em 21 de fevereiro de 2003, o médico
chinês Liu Jianlun colocou seu melhor terno na mala e embarcou num voo para
Hong Kong, onde naquela noite seu sobrinho iria se casar. Liu trabalhava num
hospital da província de Guangdong, no sul da China, onde havia atendido
pacientes com uma pneumonia estranha, diferente das outras, nas semanas
anteriores. Ele mesmo respirava com dificuldade havia cinco dias, mas o raio X
do seu tórax não revelara nada anormal. Ao chegar a Hong Kong, o médico de 64
anos fez check-in no Hotel Metropole, recebeu a chave do quarto 911 e subiu de
elevador. O plano era curtir o casamento e voltar para Guangdong no dia
seguinte, mas ele não pôde fazer nem uma coisa nem outra. Sua saúde piorou rapidamente.
E em breve Liu entraria para a história como vetor principal de uma doença até
então desconhecida: a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars, na sigla em
inglês).
Liu contaminou pelo menos 12 hóspedes do
hotel, que nos dias seguintes levariam a doença a várias partes do mundo. Como
a canadense Kwan Sui-chu, de 78 anos, que carregou o vírus consigo para
Toronto. E o americano Johnny Chen, de 48 anos, que voltou do Hotel Metropole
para sua casa, no Vietnã. Ele foi internado no Hospital Francês de Hanói, onde
contagiaria ao menos 22 funcionários nos dias seguintes. O hospital pediu ajuda
ao epidemiologista italiano Carlo Urbani, funcionário da OMS no Vietnã.
Urbani foi o primeiro a perceber que a tal pneumonia era uma doença nova e
perigosa. E notificou a OMS, que entrou em estado de alerta.
Daí o surto se agravou. Em 5 de março, o
comerciante Chen foi evacuado de avião em estado crítico até o Hospital
Princess Margaret, de Hong Kong, onde sete profissionais também adoeceram.
Nesse mesmo dia, a senhora Kwan dava seu último suspiro em seu quarto. Ela
havia infectado pelo menos 60 pessoas no Canadá, inclusive seu filho de 44 anos
– que foi isolado e colocado num respirador no Hospital Scarborough Grace, de
Toronto, onde morreu sob o olhar atônito dos médicos. Nenhum remédio fazia
efeito contra aquela doença, cujo causador só foi descoberto em abril: era um
coronavírus, batizado de Sars-CoV. A ciência não conseguia entender como um
vírus dessa família, que há décadas convivia com a humanidade sem grandes problemas,
podia ser tão agressivo. E, o mais importante, se seria possível contê-lo.
Depois de oito meses, porém, a Sars acabou.
Em 5 de julho de 2003, a OMS retirou o último país (Taiwan) da lista de áreas
com transmissão local da doença, que infectou 8.098 pessoas de 26 países e
matou 774. O vírus era parecido com o Sars-CoV-2, que continua a se espalhar
pelo mundo mesmo com duras medidas de isolamento social. Mas por que o primeiro
Sars foi derrotado, e o atual não? E quais serão os próximos passos do novo
coronavírus? Estudos publicados nas últimas semanas, em plena pandemia,
começaram a encontrar as respostas. A boa notícia é que a ciência já descobriu
as alterações genéticas que deixaram o vírus mais contagioso e difícil de
controlar. A má notícia é que ele não parou de evoluir – e, só nos primeiros
meses deste ano, já pode ter sofrido pelo menos uma mutação importante.
VÍRUS, MORCEGOS E GENTE NA RUA
Ao longo de milênios, a evolução transformou
os morcegos em reservatórios naturais de vírus. Isso porque eles vivem muito (em
média 20 anos, dez vezes mais que os ratos), têm alta diversidade (de cada
quatro espécies de mamíferos, uma é de morcego), habitam quase todo o planeta (menos
os lugares gelados), vivem amontados aos milhares e, como conseguem voar, se
deslocam por longas distâncias. Os morcegos também têm um sistema imune que
tolera corpos estranhos, abrigando patógenos de infecções como raiva, ebola e
Sars sem adoecer. Para os vírus, portanto, circular entre esses mamíferos
alados sempre foi um bom negócio. Aí veio a ação humana, que começou a destruir
os habitats desses animais – e capturar espécies selvagens, como a civeta e o
pangolim, que também são infectados pelos vírus dos morcegos.
O HCoV-229E, descoberto em 1966 e primeiro
coronavírus a infectar humanos, veio dos morcegos. O HCoV-OC43, identificado no
ano seguinte, também (embora alguns cientistas apontem similaridades entre ele
e o BCoV, que infecta bois e vacas). Ambos causam sintomas leves, de resfriado,
na esmagadora maioria dos casos. Circulam pelo mundo todo, todos os anos, e não
costumam criar problemas.
O salto para uma nova era só aconteceu em
novembro de 2002, quando apareceram os primeiros casos da “pneumonia atípica”
em Guangdong. O primeiro Sars-CoV veio dos morcegos, mas passou por um animal
intermediário antes de infectar humanos: provavelmente a civeta-das-palmeiras.
Nesse estágio intermediário, de duração desconhecida, o vírus pode ter sofrido
as mutações que o tornaram mais letal. E bota letal nisso: ele matou em média
9% dos infectados contra 3,4% do CoV-2, segundo os dados mais recentes. Entre
idosos, era ainda mais agressivo (cerca de 50% dos maiores de 80 anos morreram;
o atual mata 18%). O novo vírus é menos violento, mas mais furtivo – e aí está
o X da questão.
“A principal diferença entre o Sars-CoV e o
Sars-CoV-2 é a disseminação pré-sintomática (e possivelmente assintomática)”,
diz o virólogo Matthew Kosi, da Universidade Estadual da Carolina do Norte, nos
EUA. Com o primeiro vírus, a pessoa era infectada e desenvolvia sintomas graves
– portanto, percebia que estava doente. Então era hospitalizada. E a carga
viral (quantidade de vírus no organismo) só subia, em média, dez dias após a
hospitalização. Por isso a primeira Sars não infestou o mundo. “Quando os
pacientes se tornavam mais perigosos, eles provavelmente já estavam confinados,
porque seu estado de saúde era ruim”, diz Kosi.
Com o Sars-CoV-2, é diferente. A pessoa
infectada atinge carga viral máxima nos dias que antecedem os sintomas, ou logo
no início deles. Ou seja: no momento em que mais propaga o vírus, o indivíduo
geralmente nem sabe que tem a doença. Pode estar andando na rua, contaminando
um monte de gente. Cientistas da China e de Hong Kong avaliaram 77 duplas
de pacientes que tinham claro vínculo epidemiológico, ou seja, com alta
probabilidade de que um tenha contaminado o outro. “Estimamos que a transmissão
entre eles tenha começado dois ou três dias antes do início dos sintomas”,
concluiu Eric Lau, da Universidade de Hong Kong. Os cientistas estimam que 44%
dos casos de infecção aconteçam antes do surgimento dos sintomas, e o pior dia
é justamente o último, na véspera de a pessoa desenvolver Covid-19, a doença
propriamente dita.
E mesmo quem não desenvolve nenhum sintoma da
doença (o que ainda é um mistério para os cientistas) pode ser um vetor de
transmissão igualmente potente: um estudo feito na Itália, que avaliou 5.830
casos de Covid-19, constatou que a quantidade de vírus que a pessoa carrega no
organismo era similar em indivíduos sintomáticos e assintomáticos. “Quando
pensamos em todas as pessoas com as quais podemos ter contato, vemos como o
vírus se espalha rápido pela comunidade”, diz Kosi.
Outra característica peculiar do Sars-CoV-2 é
um fenômeno que os médicos têm chamado de “hipóxia silenciosa”. Conforme o
vírus ataca e destrói as células do pulmão, o nível de oxigênio no sangue da
vítima vai caindo – mas ela não sente falta de ar, como seria de se esperar. É
assim porque, ao contrário do que acontece em outros tipos de pneumonia, a
Covid-19 demora para enrijecer os pulmões (e é quando isso ocorre, com os
pulmões endurecidos e incapazes de expelir o CO2, que a pessoa sente mais falta
de ar).
Esse é o grande trunfo do novo coronavírus:
ele poupa muitas de suas vítimas, e demora para explodir em outras, para poder
infectar o máximo possível de gente. Vírus não têm objetivos nem vontade,
claro; são impelidos a isso pela seleção natural. Mas, em pelo menos um caso,
ela levou os coronavírus pelo caminho errado – e acabou se voltando contra
eles.
O CAMINHO DAS MUTAÇÕES
Logo depois do fim da Sars, dois novos
coronavírus começaram a infectar humanos: o HCoV-NL63 e o HCoV-HKU1,
identificados em 2004 e 2005. Eles causaram sintomas graves em alguns bebês e
idosos, mas não desencadearam crises globais. Até que, em 2012, apareceu algo
muito, mas muito pior: o Mers-CoV, que causa a Síndrome Respiratória do Oriente
Médio (Mers). Ele também passou por um animal intermediário, neste caso o
dromedário, para saltar dos morcegos e infectar humanos.
O Mers-Cov era incrivelmente letal. Matava
34% das vítimas – um índice de mortalidade elevadíssimo, só abaixo do ebola (50%)
no clube dos vírus que se espalham de pessoa para pessoa. Mas assim como o
ebola, que de tão agressivo não conseguiu dominar o mundo (pois as vítimas
apresentam sintomas e morrem rápido demais), o Mers-CoV também não se propagou
muito: até hoje, oito anos depois do surgimento dele, o número global de casos
é de apenas 2.500.
A rota seguida pelo Sars-CoV-2 ainda é um
enigma. Sabe-se que ele e o Sars-CoV emergiram dos mesmos sarbecovírus (subgênero
dos coronavírus) que circulam entre os morcegos-de-ferradura no sul da Ásia.
Mas os dois têm apenas 79% de similaridade genética. Isso sugere que o novo
coronavírus não descende do seu “parente” de 2003. O Sars-CoV-2 é mais próximo
do CoV-RaTG13 (96% de identidade genética), um vírus identificado em 2013 em
Yunnan, na China. O ancestral comum de ambos teria circulado em morcegos da
Ásia de 30 a 50 anos atrás, mas o trajeto que o atual coronavírus seguiu até
causar o surto de Wuhan ainda é desconhecido.
Nos últimos meses, porém, surgiram algumas
pistas. Um estudo liderado pelo cientista Feng Gao, da Universidade Duke, nos
EUA, analisou o genoma do Sars-CoV, do Mers-CoV e do Sars-CoV-2. E concluiu que
o novo corona recebeu genes de outros vírus, que infectam pangolins e deram a
ele seu superpoder: a capacidade de se conectar à enzima ACE2 (“enzima
conversora da angiotensina 2”, na sigla em inglês), presente na membrana
exterior das células humanas. O primeiro Sars também fazia essa conexão, mas o
novo vírus é mais competente nisso. A explicação pode estar na
proteína spike, que forma os pequenos espetos dos coronavírus. Num estudo
publicado na revista Nature, cientistas americanos e chineses compararam
essa proteína no Sars-CoV e no Sars-CoV-2. E descobriram que a versão presente
no CoV-2 se liga mais facilmente às células humanas – o que pode explicar por
que o novo coronavírus é mais contagioso.
Estamos diante de uma espécie de
Frankenstein, que fundiu características de outros vírus. Ele é tão contagioso
quanto o influenza, que causa a gripe comum, mas pode ser agressivo com os
pulmões, como o Sars-CoV e o Mers-CoV. Esse comportamento dual ajuda a explicar
por que não conseguimos barrar o surto desta vez.
Nos casos mais graves da Covid-19, a reação
do organismo hospedeiro também é diferente. O que mata o paciente muitas vezes
nem é o vírus em si, mas uma resposta imunológica exagerada. Normalmente,
quando um vírus ou bactéria entra no organismo, as células de defesa ativam
substâncias inflamatórias, as citocinas, que agridem o invasor. Mas o
Sars-CoV-2 se espalha tão rápido pelo corpo que os níveis da proteína disparam
– é a chamada “tempestade de citocinas”. Em vez de ajudar, esse processo
inflamatório encharca os pulmões, causando sufocamento.
“Isso não foi totalmente confirmado, mas é o
que estamos vendo. Há uma resposta imune totalmente desmedida, ativada em torno
do sexto dia, e que muitas vezes é o que faz o paciente piorar ou morrer”, diz
a médica María Angeles Marcos, chefe do Setor de Microbiologia do Hospital
Clinic, de Barcelona. “Essa resposta imune sempre pode existir com os Sars-CoVs, mas não da forma tão excessiva como acontece com o
Sars-CoV-2.” O imunologista Claudio Fenizia, que trabalha num laboratório
do hospital Sacco, de Milão, na Itália, observa o mesmo fenômeno. “Embora os
genomas dos dois vírus sejam bastante similares, há muitas diferenças em termos
de virulência”, diz. “O Sars-CoV-2 é mais infeccioso, e a resposta inflamatória
no hospedeiro é de alguma forma mais pronunciada e sustentada.”
Isso foi confirmado por um estudo do Los
Alamos National Laboratory, um dos principais centros de pesquisa do governo
americano (coordenou a invenção da bomba atômica, na década de 1940). E tem
outra: depois de analisar 6 mil amostras do novo coronavírus, colhidas em todo
o mundo ao longo dos últimos meses, eles encontraram mutações nos spikes de diferentes cepas do próprio Sars-CoV-2. E
isso pode ser especialmente ruim.
AS PRÓXIMAS GERAÇÕES
Sim, o Sars-CoV-2 já está sofrendo mutações:
em média duas por mês, segundo o Nextstrain, um projeto que mapeia a evolução
do vírus em tempo real. O coronavírus europeu já é diferente do chinês, como
indica um estudo liderado por Paola Stefanelli, do Departamento de Doenças
Infecciosas do Instituto Superior de Saúde de Roma. A equipe identificou duas
cepas diferentes do CoV-2, que foram extraídas de dois pacientes: um turista
chinês de Wuhan, diagnosticado em janeiro em Roma, e um italiano diagnosticado
em fevereiro na Lombardia. “A cepa do paciente italiano é similar a outras
identificadas na Alemanha e no México”, concluiu Stefanelli. “Já a do turista
chinês, relacionada com a de Wuhan, é similar a outras cepas europeias e uma da
Austrália.”
Como é típico dos coronavírus, o Sars-CoV-2
está evoluindo em ritmo lento: metade da velocidade de mutação do vírus
influenza, que causa a gripe comum. Como o genoma do Sars-CoV-2 tem quase o
dobro do tamanho do influenza, sua taxa de mutação seria então quatro vezes mais
lenta. Boa notícia para o desenvolvimento de uma vacina, então? Não
necessariamente.
Os cientistas do laboratório Los Alamos
constataram o seguinte: uma das mutações, que foi batizada de D614G, pode
tornar o vírus mais contagioso – e prejudicar a eficácia de eventuais vacinas.
O Sars-CoV-2 é formado por 30 mil pares de nucleotídeos, ou “letras” genéticas.
Essa mutação aconteceu na posição 23.403, com a substituição de uma molécula de
guanina por uma de adenina. Só essa mudança foi suficiente para que a cepa
D614G, que surgiu no começo de fevereiro, se tornasse bem mais contagiosa – a
ponto de dominar e sobrepujar o vírus “original”, de Wuhan.
“Quando é introduzida em novas
regiões, [ela] rapidamente se torna a forma dominante”,
escreveram os pesquisadores. Segundo eles, a mutação afeta diretamente a
proteína spike, facilitando a conexão do vírus com células humanas.
E as transformações do vírus nos próximos meses podem tornar ineficazes as
vacinas que estão sendo desenvolvidas agora. “Se a pandemia se prolongar, isso
pode exacerbar o acúmulo de mutações até a primeira vacina. Se lidarmos com
esse risco agora, talvez possamos atentar para evoluções do vírus. Se as
ignorarmos, elas talvez limitem a efetividade das primeiras vacinas”, afirma o
estudo.
O ritmo de evolução do Sars-CoV-2 está
diretamente ligado a algo que os cientistas chamam de “pressão seletiva”. É
fácil entender o conceito. O vírus é atacado pelo sistema imunológico do
hospedeiro, que mata muitas cópias dele – mas, em alguns casos, acaba
permitindo a sobrevivência de versões mais aptas, que então se reproduzem.
Quanto mais gente for infectada pelo novo coronavírus, mais ele será submetido
a ataques do sistema de defesa do corpo humano: que poderá acabar selecionando,
sem querer, as versões mais fortes. Em alguns casos, a ação malsucedida do
sistema imunológico também produz alterações diretas nos vírus. Esse fenômeno
se chama “aprimoramento dependente de anticorpos” (ADE), e já foi verificado
nos vírus da aids, da zika, da dengue e da febre amarela. Ele costuma resultar
em aumento na infectividade e agressividade dos vírus.
Mas isso não vai, necessariamente, acontecer
com o Sars-CoV-2. Os estudos que apontam mutações no vírus têm sido criticados
por boa parte da comunidade científica, que os considera prematuros e talvez
até irrelevantes: na prática, as alterações já verificadas não seriam grandes o
suficiente para mudar o comportamento do vírus. Além disso, mutações
nem sempre são ruins. Elas podem até produzir Tartarugas Ninja e X-Men no
cinema, mas na vida real não passam de eventos aleatórios geralmente
irrelevantes – que podem até deixar o vírus menos agressivo.
Do ponto de vista da evolução, para
sobreviver o vírus precisa maximizar sua propagação e persistir. Se ele matar
muito rápido, não será transmitido. “Por outro lado, se o vírus evoluir de modo
a reduzir sua taxa de replicação numa pessoa, haverá tão pouco dele nas nossas
secreções que não o transmitiremos”, diz o biólogo evolucionista Tom Gilbert,
da Universidade de Copenhague. Por isso, talvez o ideal para o novo corona
fosse se parecer com o influenza: ele nos faria tossir, espirrar e sentir mal,
mas não a ponto de nos manter na cama – pois isso evitaria o contato do vírus
com outras pessoas. De acordo com Gilbert, o Sars-CoV-2 já pode ter alcançado a
forma ideal (ideal para o vírus, claro): não mata a maioria das pessoas. Menos
ainda as mais capazes de espalhá-lo: jovens e crianças, que entram em contato
com mais gente do que os idosos e enfermos. “Ficarei surpreso se o vírus se
tornar muito diferente do que já é agora”, diz o biólogo.
“Os dados do sequenciamento de genoma sugerem
que o vírus não está sob muita pressão evolutiva. Ele parece bem adaptado aos
humanos, e ainda tem muitos hospedeiros com os quais se ocupar”, afirma Matthew
Kosi. Faz sentido: se o número mundial de contágios até o fechamento desta
edição estiver correto (3,2 milhões), então apenas 0,04% da humanidade foi
infectada. Mesmo se o dado real for dez vezes maior, como muitos
infectologistas especulam, o vírus ainda poderá infectar muita gente sem
alterar o próprio código genético. A pressão seletiva só vai ficar mais forte
quando houver uma grande porcentagem de população imunizada (assumindo que a
imunidade será de longo prazo) ou uma vacina. Quando esse momento chegar, o
CoV-2 só irá sobreviver se apresentar mudanças mais profundas.
Se a vacina for eficaz e onipresente (com 95%
da população vacinada, por exemplo, como no caso do sarampo), o vírus
provavelmente será extinto. Se a porcentagem de pessoas vacinadas for um pouco
mais baixa, de 60% a 80%, mesmo assim ela poderia proteger quem não se vacinou.
É a chamada “imunidade de rebanho”: a vacinação e a imunização de quem se curou
reduzem a quantidade de vírus em circulação, o que diminui a taxa de infecção
de pessoas não vacinadas. Pode ser também que uma vacinação em níveis elevados,
mas abaixo do limiar necessário, gere uma pressão seletiva que faça surgir um
subtipo do vírus imune à vacina. Esse seria o pior dos cenários. Mas não é,
necessariamente, o mais provável. Tudo pode acontecer.
O Sars-CoV-2 é o desafio mais complexo que a
medicina moderna já enfrentou. Ele se esconde, muda de forma, age de maneiras
diferentes em pessoas diferentes, segue caminhos difíceis de prever. Mas está
diante de uma força igualmente rápida, adaptável e capaz de grandes saltos: a
inteligência humana.
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