Eu ainda era criança quando um dos meus tios
mudou-se para Uberaba para estudar odontologia. Deixou para trás sua coleção de
revistas "Seleções do Reader’s Digest".
Acabei por tomar posse delas, pois ninguém mais se interessava por aquilo. E
eram muitas, abrangendo um período de mais de dez anos. Os primeiros números
eram de 1941 ou 1942, se não me engano. E esse foi o motivo do meu interesse em
folheá-las: além de publicidade sobre eletrodomésticos, alimentos e vestuário,
trazia também como propaganda (inclusive de guerra), várias páginas com
desenhos incríveis reproduzindo aviões militares, tanques, barcaças, soldados sorridentes
e coisas assim. Tentei desenhar os aviões, devo ter recortado algumas páginas e
rasgado outras. Depois, aos poucos, passei a ler uma por uma, acabando por ler
tudo de todas (exceto a seção "Enriqueça
seu vocabulário", assinada pelo dicionarista Aurélio Buarque de
Holanda). O texto a seguir foi retirado do post "A Praxe dos Imbecis", por condensar meu pensamento sobre essa
"herança".
Tentar
viver a partir de experiências relatadas e vividas por outras pessoas é como
“aprender japonês em Braille” (Djavan). Mas era isso que eu tentava. Enquanto a
vida, esse “grande oceano da verdade” permanecia à minha frente pronta para ser
explorada, eu tentava desbastá-la a golpes de “Seleções”. Quem conhece, sabe
que essa revista é cheia de “ensinamentos” e lições de vida. Agora, imagine um
pré-adolescente lendo essas “lições”. Haja intoxicação! E o pior é que eu
queria aprender a viver apenas lendo aquela merda (por exemplo, como beijar uma
menina na boca)!!!
Mesmo assim, retiradas as
"lições de vida", a revista era boa diversão para um jovem introvertido e
sem amigos, pois trazia anedotas, resumos de best sellers, casos pitorescos, etc. Um desses casos que chamou
minha atenção foi narrado pelo comediante americano Harpo Marx, irmão menos
badalado de Groucho Marx. Mas, antes de tentar reproduzir o caso - uma história
de adoção -, preciso "contextualizá-lo".
Nas festas de fim de ano,
conversando com uma de minhas noras, o assunto "adoção" entrou na roda. Ela comentou sobre uma amiga que está
em dúvida entre adotar ou não uma criança, pois tem endometriose ou coisa
assim. Lembrando os vários casos de adoção (cinco, pelo menos) que existem na
família de minha sogra, disse a ela que educar uma criança, seja ela adotada ou
não, é como jogar na loteria. A única coisa que muda é que as chances a seu
favor são infinitamente maiores que ganhar na mega-sena, por exemplo. Porque
cada criança é um universo, cabendo aos pais dar a ela atenção e muito amor -
mas muito mesmo! Se ela será bem-humorada ou geniosa só o tempo, o ambiente e
um pouco de DNA dirão. Foi aí que contei o caso lido décadas atrás. O curioso é
que ela emocionou-se e me pediu o texto para enviar para sua amiga indecisa. Tentei
encontrar na internet, mas acabei escrevendo o que lembrava e que tão boa
impressão me causou (é, "talvez eu
seja o último romântico"). Porque postá-lo no Blogson? É a memória, estúpido! E o texto
que mandei para ela é este:
Provavelmente eu teria uns vinte anos ou menos quando li
a história sobre a adoção dos quatro filhos do comediante Harpo Marx em uma
revista “Seleções do Reader’s Digest”, narrada pelo próprio comediante. Tentei
encontrá-la na internet, mas não consegui (pelo menos, não de forma rápida).
Mas encontrei algumas coisas legais que passo a transcrever, antes de tentar
reproduzir o que li há tantos anos. Vamos lá:
Em 1948, quando alguém lhe perguntou quantas crianças
planejava adotar, ele respondeu: "Eu gostaria de adotar tantas crianças
quanto tenho de janelas em minha casa. Então, quando eu sair para o trabalho,
eu quero uma criança em cada janela, acenando adeus”. Mesmo assim, adotaram
apenas quatro (Billy, Alex, Jimmy e Minnie), sendo o primeiro quando o
comediante já tinha uns cinquenta anos.
Agora, vamos à história. Ele nunca escondeu de nenhum dos
filhos que haviam sido adotados. Pelo contrário, sempre contava de forma
fantasiosa como cada um havia sido “escolhido”.
- “Um dia a mamãe e eu decidimos que queríamos ter um filho.
Mas não poderia ser qualquer um. Tinha de ser um especial. Deveria ter as
bochechas rosadas, um sorriso lindo, cabelos louros, ser alegre, brincalhão e,
principalmente, chamar-se Billy”. Nesse ponto, o filho escolhido de forma tão detalhada
explodia de entusiasmo. E ele continuava.
- “Um dia, achamos que o Billy precisava de uma irmãzinha.
Mas não poderia ser qualquer menininha. Tinha de ser tão especial quanto ele. Ela
teria de ter cabelos pretos suavemente ondulados, ser doce e delicada, com
olhinhos muito brilhantes. Mas, principalmente, deveria chamar-se Minnie”. Segundo Harpo Marx, essa era a história predileta das
crianças, que entravam em frenesi à medida que ia chegando a sua vez de entrar
para a família.
Anos depois, já adultos, os filhos reuniram-se e pediram para
falar com ele sobre a adoção. O ator disse ter sentido um aperto no coração,
por acreditar que eles o recriminariam por não ter escondido que eram
adotados. Mas o contrário aconteceu, pois eles o abraçaram e agradeceram por terem
tido tanto carinho e cuidado para falar desse assunto com eles, que sempre se
sentiram como se fossem filhos biológicos do casal, tal o amor recebido. É
isso.
Obviamente, há uma série de “liberdades poéticas” que adotei,
mas o espírito do texto original era esse mesmo. Espero ter atendido o pedido.