quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

UM CASO DE ADOÇÃO


Eu ainda era criança quando um dos meus tios mudou-se para Uberaba para estudar odontologia. Deixou para trás sua coleção de revistas "Seleções do Reader’s Digest". Acabei por tomar posse delas, pois ninguém mais se interessava por aquilo. E eram muitas, abrangendo um período de mais de dez anos. Os primeiros números eram de 1941 ou 1942, se não me engano. E esse foi o motivo do meu interesse em folheá-las: além de publicidade sobre eletrodomésticos, alimentos e vestuário, trazia também como propaganda (inclusive de guerra), várias páginas com desenhos incríveis reproduzindo aviões militares, tanques, barcaças, soldados sorridentes e coisas assim. Tentei desenhar os aviões, devo ter recortado algumas páginas e rasgado outras. Depois, aos poucos, passei a ler uma por uma, acabando por ler tudo de todas (exceto a seção "Enriqueça seu vocabulário", assinada pelo dicionarista Aurélio Buarque de Holanda). O texto a seguir foi retirado do post "A Praxe dos Imbecis", por condensar meu pensamento sobre essa "herança".

Tentar viver a partir de experiências relatadas e vividas por outras pessoas é como “aprender japonês em Braille” (Djavan). Mas era isso que eu tentava. Enquanto a vida, esse “grande oceano da verdade” permanecia à minha frente pronta para ser explorada, eu tentava desbastá-la a golpes de “Seleções”. Quem conhece, sabe que essa revista é cheia de “ensinamentos” e lições de vida. Agora, imagine um pré-adolescente lendo essas “lições”. Haja intoxicação! E o pior é que eu queria aprender a viver apenas lendo aquela merda (por exemplo, como beijar uma menina na boca)!!!

Mesmo assim, retiradas as "lições de vida", a revista era boa diversão para um jovem introvertido e sem amigos, pois trazia anedotas, resumos de best sellers, casos pitorescos, etc. Um desses casos que chamou minha atenção foi narrado pelo comediante americano Harpo Marx, irmão menos badalado de Groucho Marx. Mas, antes de tentar reproduzir o caso - uma história de adoção -, preciso "contextualizá-lo".

Nas festas de fim de ano, conversando com uma de minhas noras, o assunto "adoção" entrou na roda. Ela comentou sobre uma amiga que está em dúvida entre adotar ou não uma criança, pois tem endometriose ou coisa assim. Lembrando os vários casos de adoção (cinco, pelo menos) que existem na família de minha sogra, disse a ela que educar uma criança, seja ela adotada ou não, é como jogar na loteria. A única coisa que muda é que as chances a seu favor são infinitamente maiores que ganhar na mega-sena, por exemplo. Porque cada criança é um universo, cabendo aos pais dar a ela atenção e muito amor - mas muito mesmo! Se ela será bem-humorada ou geniosa só o tempo, o ambiente e um pouco de DNA dirão. Foi aí que contei o caso lido décadas atrás. O curioso é que ela emocionou-se e me pediu o texto para enviar para sua amiga indecisa. Tentei encontrar na internet, mas acabei escrevendo o que lembrava e que tão boa impressão me causou (é, "talvez eu seja o último romântico"). Porque postá-lo no Blogson? É a memória, estúpido! E o texto que mandei para ela é este: 

Provavelmente eu teria uns vinte anos ou menos quando li a história sobre a adoção dos quatro filhos do comediante Harpo Marx em uma revista “Seleções do Reader’s Digest”, narrada pelo próprio comediante. Tentei encontrá-la na internet, mas não consegui (pelo menos, não de forma rápida). Mas encontrei algumas coisas legais que passo a transcrever, antes de tentar reproduzir o que li há tantos anos. Vamos lá:

Em 1948, quando alguém lhe perguntou quantas crianças planejava adotar, ele respondeu: "Eu gostaria de adotar tantas crianças quanto tenho de janelas em minha casa. Então, quando eu sair para o trabalho, eu quero uma criança em cada janela, acenando adeus”. Mesmo assim, adotaram apenas quatro (Billy, Alex, Jimmy e Minnie), sendo o primeiro quando o comediante já tinha uns cinquenta anos.
Agora, vamos à história. Ele nunca escondeu de nenhum dos filhos que haviam sido adotados. Pelo contrário, sempre contava de forma fantasiosa como cada um havia sido “escolhido”.

- “Um dia a mamãe e eu decidimos que queríamos ter um filho. Mas não poderia ser qualquer um. Tinha de ser um especial. Deveria ter as bochechas rosadas, um sorriso lindo, cabelos louros, ser alegre, brincalhão e, principalmente, chamar-se Billy”. Nesse ponto, o filho escolhido de forma tão detalhada explodia de entusiasmo. E ele continuava.

- “Um dia, achamos que o Billy precisava de uma irmãzinha. Mas não poderia ser qualquer menininha. Tinha de ser tão especial quanto ele. Ela teria de ter cabelos pretos suavemente ondulados, ser doce e delicada, com olhinhos muito brilhantes. Mas, principalmente, deveria chamar-se Minnie”. Segundo Harpo Marx, essa era a história predileta das crianças, que entravam em frenesi à medida que ia chegando a sua vez de entrar para a família.

Anos depois, já adultos, os filhos reuniram-se e pediram para falar com ele sobre a adoção. O ator disse ter sentido um aperto no coração, por acreditar que eles o recriminariam por não ter escondido que eram adotados. Mas o contrário aconteceu, pois eles o abraçaram e agradeceram por terem tido tanto carinho e cuidado para falar desse assunto com eles, que sempre se sentiram como se fossem filhos biológicos do casal, tal o amor recebido. É isso.
Obviamente, há uma série de “liberdades poéticas” que adotei, mas o espírito do texto original era esse mesmo. Espero ter atendido o pedido.



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