Este post saiu originalmente em 28/04/2015,
com o título "Seu Nome era Omir", como homenagem póstuma ao
tio materno de personalidade mais "literária" da família e falecido
pouco tempo antes. Como estou contando casos dos irmãos de minha mãe, achei que
seria injusto deixá-lo separado dos demais, (segregado tal como foi um pouco
quando era vivo). Por isso, resolvi republicar o post com o título da série que
está rolando agora. Bora lá.
A família de meus avós maternos era daquelas numerosas, à moda antiga. Tiveram
onze filhos, mas um morreu ainda na primeira infância. Dos outros dez, Omir era
o mais alternativo, o mais tosco e o mais folclórico. Ou, se preferirem, o mais outsider,
mais hardcore. O
mais livre, enfim. Antes dos hippies, antes da Tropicália, ele foi
verdadeiramente livre.
Nenhuma convenção o inibia, nada o aprisionava. Talvez por tudo isso, a
maioria dos sobrinhos nunca o chamou de tio. Era quase um personagem
felliniano. Desde pequeno revelou-se uma pessoa avessa a qualquer tipo de
controle, um verdadeiro rebelde sem causa, ou melhor, um rebelde sem calça.
Segundo minha mãe, levá-lo ao grupo escolar
era uma luta que se repetia diariamente. Não sei se ele tirava toda a roupa
antes de ser levado à escola ou depois de fugir de lá. O que sei é que
bastava minha avó, minha mãe ou quem quer que o acompanhasse ir embora, para
ele escapar da sala de aula e voltar igual uma bala para casa, chegando antes
de todo mundo. Com isso, provavelmente não concluiu nem o ensino básico. Minha
mãe tinha uma foto dele nessa época, em que aparece peladão. Prova material do
delito recorrente.
Na época de servir exército foi ainda melhor.
Quando era designado para ficar de guarda à noite, lá pelas tantas, largava o
fuzil e ia dormir em casa. Na volta, claro, cadeia. Isso se repetiu
algumas vezes, até o dia em que resolveu não voltar mais. Resultado: ficou sem o
Certificado de Reservista, necessário para uma penca de coisas, tais como
título de eleitor, carteira profissional e por aí. Muitos anos depois,
recebeu uma carta do Exército convidando-o a regularizar sua situação.
Simplesmente ignorou.
Com esses ótimos “pré-requisitos”, acabou
virando mecânico de automóveis. Pelas amizades nesse meio, o próximo passo foi
o alcoolismo.
Não sei se era ou não um bom mecânico. Só sei
que um dia ele e os amigos resolveram construir um carro. Não sei direito como
fizeram, mas ficou muito legal. Pelo menos para mim, que era criança. Um dia
chega o Omir e mais um ou dois amigos dentro de um carrinho sem capota,
prateado, pois estava na lata, literalmente. Tinham construído uma carroceria
de linhas curvas e esportivas com chapas de aço galvanizado, montada sobre o
chassi de algum carro destruído. Depois, para minha decepção, pintaram o carro
todo. Um dia perguntei que fim tinha levado o tal carro. Fiquei sabendo
que uma manobra desastrada em uma curva tinha feito o carro cair em uma vala ou
córrego. Uma parte da nascente indústria automobilística nacional foi pro saco
nesse dia.
Meu pai contava que um dia chegou em casa e
escutou o Omir "fazendo uns barulhos muito feios dentro do quarto e com a
porta fechada". Ficou preocupado e perguntou:
- Omir, você está sentindo alguma
coisa?
Abrindo a porta, meu tio respondeu que estava
ensaiando, porque ia fazer um teste no conservatório, pois pretendia virar
cantor de ópera. E papai acrescentava que nunca ouviu nada mais horrível.
Ainda segundo minha irmã, nossa mãe contava -
fazendo cara de contrariada - que seu irmão uma vez cismou que queria ser padre
e todo mundo foi na onda dele. Minha mãe chegou a ir a um seminário e
conversou com os responsáveis de lá, mas, "felizmente ele desistiu".
Certamente, ainda não havia sido enfeitiçado pela futura companheira de
infortúnios.
Bom, eu sou católico, mas o Omir, com suas
maluquices, até que ficaria bem em uma “sessão de descarrego” de alguma igreja
evangélica. Certamente o “pedido” de casamento seria um bom motivo para isso.
Esse caso também foi lembrado por minha irmã e é muito engraçado. Para não
perder o sabor, transcrevo como recebi:
Ele jogou uma bomba dentro da casa da
Tia Elba e papai dizia que foi assim que ele a despertou e conquistou. Como ele
mesmo repetia, “eu sou eu e volto troco”!
Com um jogo de sedução e conquista tão
sofisticado, um presente para sua futura e sofredora esposa não poderia ser
qualquer um, desses que as pessoas normais compram em lojas. Tinha de ser
diferente. Bem diferente.
Um dia eu o vi pegar um pedaço de tampa de
privada (eram feitas de madeira, na época. E grossas, para ficar anatômicas) e começar a esculpir alguma coisa.
Desse material de origem tão “nobre” fez um coqueirinho estilizado. O tronco
foi perfurado (provavelmente com a pua de meu avô) até ficar todo oco. Depois
de pronta a escultura, a peça foi devidamente lixada e um vidrinho com perfume
foi alojado na parte oca.
Nessa época, alguns medicamentos ministrados
através de injeção vinham dentro de vidrinhos cilíndricos tampados com uma
tampinha de borracha, por sua vez lacrada com um anel de metal. Creio que o
medicamento podia ser retirado introduzindo-se a agulha da seringa diretamente
na borracha macia da tampa (quando me lembro desses detalhes, dá vontade de
dizer: “gente, eu sou velho pra caramba!!!”). Isso não vem ao caso. O
que conta é que o tal vidrinho de perfume, um presente para
a namorada, foi anteriormente a embalagem de algum medicamento. Muito chique!
Depois de tanta “originalidade”, acabaram
casando-se. Minha tia era uma mulata de cabelo “ruim”, de pele clara e olhar
meio aéreo, que deve ter sofrido demais com a inconstância, irresponsabilidade
e alcoolismo do marido. Tiveram cinco filhos. Além da filharada, criaram ainda o
filho de uma irmã falecida.
Um dia, provavelmente alcoolizado, chegou à casa de minha avó dirigindo um
carro que tinha pegado para consertar. Além do o primeiro filho, então com
uns três anos de idade, alguns passageiros ilustres o
acompanhavam: um amigo (provavelmente encachaçado como ele) e duas ou três
putas (a oficina onde trabalhava ficava bem no meio da zona boêmia). Ao
ver o irmão em tão distinta companhia,
minha tia Aidê deu-lhe um esporro fenomenal e ele se mandou, visivelmente
contrariado.
O que me deixa às vezes perplexo é pensar que
os irmãos e cunhadas de minha mãe sempre demonstraram de forma explícita gostar
muito de mim, mesmo que eu nunca tenha feito nada de significativo para que
isso acontecesse. Sei lá, deviam ter alguma simpatia (ou pena) pelo meu jeito
meio avacalhado e sem frescura de tratá-los. Com o Omir e esposa aconteceu
exatamente assim.
Ela, talvez pela vida difícil que levava,
talvez pelas muitas humilhações que sofreu de forma velada ou escancarada, não
olhava muito nos olhos da pessoa com quem conversava. Talvez daí a expressão
meio aérea que citei. Quando eu já estava adulto, me procurou meio sem
graça, quase pedindo desculpa, e perguntou se eu aceitava ser o padrinho de
batismo da quarta filha. A madrinha seria uma de minhas primas. Claro que
aceitei. Mas, como nunca liguei muito para essa afilhada, posso dizer que sou
um padrinho de merda, mesmo tendo sempre muita simpatia por seus pais.
A filha caçula tem idade próxima à de nosso
filho mais velho. Até pela imensa diferença de idade, tive muito pouco contato
com ela. As únicas coisas que sei é que teve uns dois ou três filhos,
entregou-os para a sogra e se mandou pelo mundo. Parece que às vezes vai à casa
da irmã mais velha, e depois some de novo. O fato é que, pela semelhança de
comportamento, quase que o Omir poderia sentir orgulho dela. Vidão!
Minha tia morreu de câncer há uns vinte anos
e meu tio e compadre, no final da vida, quase cego, morava com o filho mais velho no
interior do estado.
Omir, cujo nome sempre me fez pensar em personagens bíblicos ou do antigo
Egito, morreu no mesmo dia em que eu e minha Amada comemoramos quarenta anos de
casamento, mas só ficamos sabendo quando já tinha sido enterrado. Figuraça!