A porta do consultório se abre e de dentro
surge um homem de meia idade, expressão afável e olhar penetrante, inquiridor.
- Bom dia, doutor!
- Queira entrar, por favor.
- Obrigado. O que temos para hoje?
Mais algum teste?
- Bem, seu
processo terapêutico começa efetivamente hoje.
- E a semana passada? Achei que já era
a terapia!
- O Teste de Rorschach que você fez foi uma avaliação
preliminar para definir o processo terapêutico que adotaremos no início.
- Ah! Igual aquele aparelhinho
que mede o grau dos olhos antes da consulta com o oftalmologista!
- Mais ou menos isso..
- Bem, o que eu faço agora?
- Você pode deitar-se naquele divã.
- Divã, heim? E eu que achava que isso
era invenção de humorista!
- Na psicanálise individual, que é o seu
caso, o divã é utilizado para deixar a pessoa mais relaxada. Vou sentar-me
nesta cadeira que está ligeiramente atrás do divã, para deixá-lo mais à
vontade. A baixa luminosidade da sala também auxiliará no relaxamento.
- Ok.
-
- Hum, hum - pigarreia o homem
deitado no divã.
-
- O senhor não vai dizer nada?
- O senhor não vai dizer nada?
- (risinho irônico) Não sou eu que estou com
problemas. E pode me chamar de "você".
- O que eu faço então?
- O que você quiser. Eventualmente, eu
comentarei alguma coisa, mas ainda não é o momento. Tenho um paciente que
ficou três meses calado, nem uma só palavra em doze sessões.
- Mas isso é prejuízo! Pagar caro para
ficar calado?
- Depende do bloqueio de cada um...
- Se é assim, se o senhor..., quer
dizer, você não me perguntará nada, eu vou começar a falar.
- Ótimo.
- Tenho tido pesadelos e sonhos
estranhos que me fazem acordar sobressaltado angustiado e triste. São sonhos
quase sempre ambientados em dois lugares: na empresa onde eu mais amei
trabalhar e naquela onde eu mais odiei. Da primeira - em situação
pré-concordatária, saí por medo de ficar desempregado. Acabei ficando
desempregado, aos 44 anos de idade. Na segunda - onde entrei mediante concurso,
odiei cada dia dos onze anos ali trabalhados, até me aposentar por tempo de
serviço. Um lugar onde eu tive novo contato com meu velho conhecido bullying,
sem ainda saber da existência de uma palavra que o definisse. Quando eu era
criança, eu... eu............... Porra, esqueci o que eu ia dizer!
- A isso chamamos ato falho.
- Ato fálico?
- Ato falho. Por um processo inconsciente,
você bloqueou a lembrança que iria narrar. Conscientemente você queria dizer,
mas seu inconsciente disse "não".
- Que
merda... Ah, lembrei! Quando estava no ensino fundamental, comentei com um
colega metido a valentão, que tinha um anel de caveira do Fantasma em minha
casa. Ele então pegou meu braço, torceu e disse que se eu não o levasse no dia
seguinte para ele, ele me bateria. Até hoje tenho vergonha disso, mas levei o
tal anel e dei para ele. O pior é que nem era meu, mas de um tio!
(Segue-se um longo silêncio).
- O senhor continua mudo, não é? Que tratamento é esse em que só eu falo?
- O papel do terapeuta é servir de espelho
para que o paciente se veja tal como realmente é. Só assim os traumas, as
tensões poderão ser identificadas e tratadas, lembrando que essa é uma tarefa
do paciente. Ao terapeuta compete iluminar o caminho.
(Novamente o silêncio se instala).
- São sempre os mesmos sonhos (agora, falando rapidamente, as palavras saindo em jorros, como água de uma torneira em que o encanamento estava cheio de ar). Às vezes estou em algum lugar cheio de gente e me dou conta de estar nu e fico constrangido algumas pessoas me olham com surpresa outras com ar de censura ou de indiferença e eu nem sei como sair dali em outras volto ou vou a algum lugar onde estão antigos colegas trabalhando tento arranjar alguma coisa para fazer tento ser necessário mas ninguém liga e o ambiente é melancólico e decadente com mesas e cadeiras velhas e aí eu acordo muito triste e me lembro de que estou aposentado e que não há motivo para sofrer assim acordado às vezes sinto-me um velho palhaço que não consegue mais fazer alguém rir sou como um bufão decadente a quem ninguém mais dá atenção um bobo de uma corte que não existe mais talvez por isso nunca consegui ver Charles Chaplin em seus dois últimos trabalhos como ator talvez por não suportar ver o desencanto de uma pessoa a quem a vida já abandonou talvez por não querer mais ver o sofrimento alheio mesmo que apenas encenado como quando fui assistir a uma peça teatral um monólogo cômico em que o ator representava um sujeito doentiamente ciumento que tinha terminado o namoro com sua amada justamente por asfixiá-la (de modo figurado) com suas dúvidas e o medo de ser traído a plateia lotada (a peça fazia parte de uma campanha de popularização do teatro) derretia-se de tanto rir e eu não conseguia esboçar nem mesmo um sorriso tal a pena que sentia do personagem de seu ciúme tóxico de seu sofrimento patético e sem solução a partir da adolescência talvez por medo de que alguém pudesse rir de mim eu sempre tentei ser o primeiro a fazer isso ou tentei direcionar o motivo do riso como se pedisse –“ria do meu personagem não de mim” talvez por isso eu seja superficial e tente me desligar do mundo das pessoas pois não consigo conviver com a dor nem sei como me comportar diante do sofrimento de outra pessoa... Pô, deu até para espumar a boca!
(risinho discreto do terapeuta)
- Alguns dias atrás, comecei a
sentir uma inquietação estranha, como se estivesse em um lugar onde não poderia
ou deveria estar. Junto com ela surgiram uma tristeza e uma angústia difusas,
não identificáveis. Não sabia como sair desse estado e aí surgiu um pensamento
estranho, aflitivo, definitivo: parece que a Vida não cabe dentro de mim.
Que você acha, doutor? Talvez a Vida nunca tenha cabido dentro de mim...
- Talvez. Saberemos mais sobre isso.
Continuamos na próxima semana, pois o tempo acabou.
- Obrigado, doutor, até a semana que
vem.
(Publicação original: 29/01/2016)
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