sexta-feira, 18 de agosto de 2023

ESCARAFUNCHANDO O PASSADO

Este é o penúltimo post da série "Mens Salada Paprocki", uma maluquice que me ocorreu quando resolvi migrar para os dias atuais posts relacionados ou inspirados no período em que fiz terapia e que haviam sido publicados desde o início do blog. Muito do que eu poderia dizer aqui sobre as sessões de terapia psicanalítica a que me submeti já foi falado em vários posts que publiquei. "Deitado no divã", por exemplo, é um deles. Mesmo assim, tentarei registrar algumas lembranças ainda não escritas. E tudo começou no carnaval de 1972, se não me engano.
 
Eu tinha 21 anos, estudava engenharia e namorava a menina mais linda que eu já vi, uma beleza digna de participar das renomadas e internacionais agências de modelos Ford e Elite. Alguém poderia desejar algo melhor? Pois bem, não soube explicar na época o que aconteceu e até hoje tenho algumas dúvidas. Só sei que de repente comecei a sentir uma angústia gigantesca, tão grande que comecei a sentir fortíssimas dores na nuca. Para tentar não sentir essas dores físicas tão inesperadas comecei a dormir durante o dia, coisa inimaginável para alguém que tinha o sono mais tranquilo e contínuo, sono noturno de oito horas sem interrupção.
 
Não me lembro se me queixei disso com meu irmão e mentor ou se ele percebeu. Só sei que alguns dias depois do surgimento daquele sofrimento que não acabava, convidou-me a tomar uma sauna (sauna mesmo, hetero). E foi lá que conheci um professor da escola de engenharia. Depois de escutar pacientemente meu relato, sugeriu que eu buscasse auxílio na terapia. Disse também para dirigir-me à Fundação Mendes Pimentel, braço assistencial da UFMG.
 
Convencido por meu irmão, fui procurar ajuda nessa fundação. Fui atendido por uma assistente social que falou da existência de vários profissionais conveniados, uma vantagem pela redução substancial do custo do tratamento. E discorreu sobre os vários métodos ou processos terapêuticos disponíveis. Perguntei o prazo provável de cura de cada um e, duvidando de uma solução rápida para meu desconhecido problema, escolhi psicanálise, por ser um tratamento mais longo, que vai lá na infância do paciente, etc.
 
Feita a escolha e de posse da autorização para fazer o tratamento, bati na porta do psicanalista e psiquiatra Jorge Paprocki. Aguardei alguns minutos na recepção até uma porta abrir-se e surgir na minha frente um senhor já idoso, rosto tranquilo, voz mansa, que me pediu para entrar em sua sala. Apresentou-se, deve ter falado alguma e colocou sobre a mesa uns cartões de imagens borradas, pedindo-me para dizer o que enxergava neles. Era o teste de Rorschach.
 
Dito o que eu havia visto naquelas manchas borradas, explicou-me como seria a terapia. Começaria com uma sessão individual por semana, durante uns três meses, passando depois para terapia de grupo.
 
Para não cansar muito meus 1,3 leitores, sugiro que (re)leiam o post "A vida não cabe". Está tudo lá, bem detalhadinho.
 
Naquela época eu estava envolvido em muitas atividades - até mesmo frequentar as aulas da faculdade, pois estudava inglês, tinha ganhado uma bolsa para estudar programação de computador, vendia fundos de investimento na época em que "até engraxates estavam investindo na Bolsa de Valores", namorava o tempo que podia e... (faltou alguma coisa!). Ah, sim, tentava assistir às aulas do curso de engenharia.
 
E foi graças às vendas do fundo de investimento (vendas alavancadas por minha tia, que me ajudou a vender para seus colegas) que consegui bancar os três meses de terapia individual deitadão no divã. Chegando perto do fim do terceiro mês já fui avisando ao Paprocki que a grana estava acabando e que não teria como continuar bancando o custo da terapia. Aí ele disse-me que já estava mesmo pensando em me colocar em um dos grupos que atendia. Marcou o dia e o horário e lá fui eu.
 
Quando entrei na sala iluminada já encontrei umas quatro ou cinco pessoas a quem cumprimentei meio ressabiado. Depois de ser apresentado ao grupo pelo Paprocki comecei a tentar falar alguma coisa e tomei a primeira porrada:
- Você nem bem chegou e já quer monopolizar o terapeuta só para você?
 
Enquanto via o risinho cínico na boca do Paprocki, tentei reagir à altura da agressividade, mas ainda não tinha o hábito de falar "Foda-se". E a sessão continuou meio aos trancos e barrancos, cada um querendo falar de seus problemas, etc.
 
O Paprocki era um cara visivelmente sofisticado e vaidoso, destoante daquele grupo de mal acabados a quem analisava. Um dia, ao abrir a porta do consultório, vi que estava vestindo uma espécie de terno azul escuro, mas sem gola e fechado até o pescoço. Disse a ele que estava muito elegante. Deu um risinho cínico (sua especialidade) e disse que era roupa de operário chinês (da época do Mao Tse Tung). Devo ter  dito qualquer coisa idiota e ele completou que era sim, roupa de operário chinês, mas realmente "made in China" e riu, o filho da puta.
 
O grupo foi sofrendo modificações ao longo do tempo em que fiz terapia. Uns dois receberam alta e alguns foram trocados de grupo. Segundo o terapeuta, para que o ambiente não se tornasse um encontro de comadres ou amigos de mesa de bar. Para funcionar bem o grupo precisava ter tensão, conflito, pois só assim os problemas de cada um poderiam ser exibidos e trabalhados por quem os apresentava.
 
Sem entender muito bem o que a dor na nuca tinha ver com isso, descobri que meu ranço era com minha mãe. Segundo o Paprocki, eu era filho de uma "mãe castradora" (apesar de todo o carinho que recebia dela. Mas ela era mesmo uma chantagista emocional, como descobri depois). Havia um sujeito que comentou ter um dia se candidatado a um emprego e pediram que ele fizesse um teste de datilografia. "Claro, OK!", mas ao sentar-se à frente da máquina os braços ficaram paralisados, como se estivessem engessados e não conseguiu bater em nenhuma tecla sequer. Uma mulher era casada, feliz com o casamento, mas queria transar melhor com o marido, com menos inibição. Um outro tinha obsessão por sexo e coisas assim. Só um chamou mais minha atenção.
 
Esse sujeito era estranho, usava óculos com lentes tipo fundo garrafa, o cabelo parecia estar sempre oleoso, tinha uma aparência desagradável e era gay, uma surpresa para mim, pois acreditava que todo gay era afeminado. Era o mais agressivo de todos e aparentava receber uma atenção especial do terapeuta. Um dia chegou muito alterado, praticamente monopolizou a conversa e disse que iria sair mais cedo pois pretendia se matar.
 
Ficamos todos surpresos com aquela declaração e mais ainda com a expressão preocupadíssima do Paprocki. Tentando acalmá-lo disse que tinha lido tudo o que o maluco tinha escrito e que precisava conversar sobre isso, talvez ler mais coisas. Mesmo assim o cara saiu, não sem antes ouvir que era para ligar para o terapeuta quando quisesse (só ele tinha o número do telefone particular do Paprocki), mas que definitivamente não fizesse o que estava ameaçando fazer.
 
Depois que o maluco saiu, o Paprocki ainda ficou em silêncio por alguns minutos, o cenho carregado, e nós lá, sem entender o que havia acontecido. Ele então explicou, dizendo que todos nós éramos neuróticos, cada um com sua neurose em maior ou menor grau, mas que o maluco era psicótico, daí nossa dificuldade para entender o que havia acontecido. Na sessão seguinte lá estava o maluco, como se nada tivesse acontecido.
 
Quando estava no quinto ano, começou a ficar difícil ir às sessões de terapia, pois trabalhava em um município da Grande BH e tinha assumido um cargo de responsabilidade que me tomava muito tempo. Para complicar, o Paprocki resolveu mudar seu consultório para o casão bacanaço onde morava, distante do centro e da rodoviária onde eu descia vindo da obra. Além disso eu já estava noivo e não queria dar motivo para ser demitido, pois, durante todo o tempo em que fiz terapia, nunca contei a ninguém o porque das minhas escapadas semanais no meio da tarde. E aí comecei a faltar, a faltar cada vez mais até sumir definitivamente. Constrange-me dizer que não paguei o último mês, pois parei definitivamente de ir antes do fechamento do período.
 
Hoje, refletindo sobre tudo o que vivi, sei que foi bom e teve alguns resultados positivos, mas para ter alta real do tratamento provavelmente faria terapia por pelo menos mais uns cinco a dez anos. Por isso, talvez devesse ter optado por uma terapia breve, de outra linha, em vez de ficar escarafunchando o passado. E, quem sabe?, talvez nem tivesse criado o Blogson Crusoe.

 


2 comentários:

  1. Eu gostaria de fazer um teste de Rorschach, tenho curiosidade. Acho que eu precisava de um terapeuta assim, a que eu faço é muito novinha, sem experiência, nem tenho mais o que falar pra ela. Ela não escarafuncha nada.

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    1. Lembrando que eu não entendo nada deste assunto, talvez ela não "escarafunche" nada porque a tecnica terapêutica que utiliza não se importe com o passado, só com o aqui e agora. Quanto ao Rorschach, qualquer estudante de psicologia pode fazer com você. O problema (no meu caso pelo menos) é que eu nunca soube a análise que fizeram do que eu via. E já fiz uma porrada de vezes. Em concurso, quando você já deu show nas provas é normal que uma segunda etapa contemple a realização desse teste. Dê uma olhada neste link:
      http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-25912010000100006#:~:text=Segundo%20Eldenberger%20(apud%20Anzieu%2C%201978,sobre%20a%20estrutura%20de%20personalidade.

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