No último dia 07 de junho de 2018 comemorou-se (?) o
aniversário de quatro anos da criação do Blogson Crusoe (já é um
senhor!) e também de Jotabê, o blogueiro de comportamento infantilizado,
que completou sessenta e oito aninhos de existência (pois é...). Nesses quatro
anos, 1.295 posts foram divulgados, mais de sessenta mil visualizações
aconteceram - mesmo que uns 30% delas tenham sido feitas pelo próprio autor.
Muitos números, pouca significância.
Mas, para não deixar esta data memorável passar em branco (e preto), resolvi divulgar um texto comemorativo, cheio das cores vivas da paixão, da loucura e da perplexidade (esta é só uma frase de efeito). Por ser um texto mais longo foi dividido em três partes, bem ao estilo "Para gostar de ler" (duas páginas em fonte arial 12). Este post é a unificação das três partes, a "Versão do diretor", com o texto completo e algum comentário adicional.
O estilo escolhido abriga-se na seção "Literatices", pois é ficcional, apesar de traços auto e multi-biográficos (não daria para encarar esse tema a seco). A história se passa no consultório de um terapeuta da linha freudiana - com direito até a divã. Por quê? Porque certas coisas, mesmo que inventadas, normalmente são ditas apenas no consultório do terapeuta ou ao padre, no confessionário (confissão auricular, entenderam?). Para não cair no charlatanismo, tentarei limitar ao máximo as intervenções do profissional de psicologia (ainda vou estudar essa merda!). Então, estamos combinados. E agora, Luzes, câmera, AÇÃO!
UMA SESSÃO
Mas, para não deixar esta data memorável passar em branco (e preto), resolvi divulgar um texto comemorativo, cheio das cores vivas da paixão, da loucura e da perplexidade (esta é só uma frase de efeito). Por ser um texto mais longo foi dividido em três partes, bem ao estilo "Para gostar de ler" (duas páginas em fonte arial 12). Este post é a unificação das três partes, a "Versão do diretor", com o texto completo e algum comentário adicional.
O estilo escolhido abriga-se na seção "Literatices", pois é ficcional, apesar de traços auto e multi-biográficos (não daria para encarar esse tema a seco). A história se passa no consultório de um terapeuta da linha freudiana - com direito até a divã. Por quê? Porque certas coisas, mesmo que inventadas, normalmente são ditas apenas no consultório do terapeuta ou ao padre, no confessionário (confissão auricular, entenderam?). Para não cair no charlatanismo, tentarei limitar ao máximo as intervenções do profissional de psicologia (ainda vou estudar essa merda!). Então, estamos combinados. E agora, Luzes, câmera, AÇÃO!
UMA SESSÃO
A porta do elevador se abre e dele sai um homem idoso com ar apreensivo e um pouco assustado. Dirige-se ao número 303, entra na saleta de recepção, anuncia-se para a secretária e espera ser chamado.
- Bom dia, doutor!
- Bom dia! Tenha a bondade de entrar.
- Obrigado.
- Como você disse já ter feito terapia, fique à vontade para acomodar-se no divã.
- Já estava até com saudade! (mesmo que quatro décadas tenham se passado).
(Silêncio)
- O senhor sabe o que me trouxe aqui?
- Não.
- Quando eu tinha vinte anos, fiz terapia por ter medo da Morte, da dor. Hoje, tenho medo da Vida, da perda.
- Interessante...
(Silêncio prolongado)
- Como eu já sei que o senhor não vai dizer nada, ou melhor, dirá alguma coisa quando eu menos esperar, vou dar uma recapitulada na minha vida, ou ainda, no efeito do Medo ao longo da minha vida. O senhor quer perguntar alguma coisa?
- Não.
- Posso substituir o “senhor” por “você”?
- Claro!
- Se eu ficar muito tempo em silêncio, pode acontecer de estar cochilando, pois tenho andado muito cansado e insone.
(murmúrio ininteligível)
- Mesmo que eu não o esteja vendo, estou enxergando um risinho de escárnio em sua boca! Mas, fique tranquilo, Com uma hora de cinquenta minutos cobrada a preço de joia, pretendo aproveitar bem o tempo.
- Fique à vontade.
(Silêncio muito prolongado)
- Creio que o Medo, tal como se fosse uma entidade demoníaca, instalou-se em mim muito cedo, influenciando, pautando, balizando minha vida, minhas atitudes, comportamento pessoal, profissional e caminhada. A primeira lembrança mais nítida que tenho do efeito devastador do Medo em minha mente está relacionada à gravidez de minha mãe.
Eu tinha dez anos quando ela ficou grávida de meu irmão. Eu era uma criança presa, impedida de sair de casa para brincar com a molecada das redondezas. O primeiro terapeuta disse uma vez que eu era “filho de mãe castradora”, expressão que me causou algum desconforto. Por isso, por ser "inocente, puro e besta", eu nem sonhava o que seria “gravidez”. É ridículo isso (ainda mais nos dias atuais), mas era a pura verdade.
Quando não estava na escola (que chamava-se "grupo escolar" naquela época), ficava pela casa ou quintal "idiotizando" alguma coisa. Um dia, minha mãe sumiu. Perguntei onde estava e me disseram que "tinha saído". Quando saía por perto, para alguma compra, logo voltava. Se precisava ir “na cidade", normalmente me levava. Mas aquela ausência prolongada era novidade, pois eu não tinha ido com ela. Fui tomado por um desassossego, logo transformado em medo de ser abandonado e, por fim, de desespero quase histérico.
A única salvação para mim era fazer promessa, alguma promessa, qualquer promessa, para que ela voltasse. Não chorei, mas não conseguia pensar em mais nada. Aí ela chegou com meu pai, falou alguma coisa comigo e eu fui invadido pelo ódio mais cristalino, mais destilado, por ter-me feito sofrer tanto ao pensar que iria perdê-la.
Essas ausências aconteceram outras vezes, sempre gerando o medo mais mortal de ser abandonado. Ela saia com meu pai para fazer o controle pré-natal, provavelmente uma vez por mês, mas eu não sabia. Como "sexo" era assunto tabu em uma casa onde se ajoelhava às dezoito horas em frente ao rádio na "hora do Ângelus", só fiquei sabendo que minha mãe estava grávida já bem perto do dia do parto. Assim mesmo, graças à minha madrinha que passou a ir lá todos os dias para dar uma força na arrumação de casa e almoço. Lembro-me que fiquei surpreso com a notícia e assustado com o tamanho da barriga, nunca notado antes. Lembro-me também do aspecto meio repulsivo de seus pés inchados como uma bola, pois ela era bem magra.
- Bem, a sessão de hoje acabou.
- Já? Mas eu nem esquentei ainda!
- Na próxima, você continua...
- Hora de cinquenta minutos é foda!
- Até mais.
- Falou, doutor!
OUTRA SESSÃO
A porta do elevador se abre e dele sai um homem idoso de aparência cansada. Dirige-se ao número 303, entra na saleta de recepção, anuncia-se para a secretária que já o conhece e espera ser chamado.
- Como vai? Vamos entrar?
- Bom dia, doutor...
O homem acomoda-se no divã e fica em silêncio por alguns instantes. E começa a falar.
- Sabe, doutor, tenho uma amiga que também faz terapia. Estava contando para ela a história da gravidez de minha mãe. Na opinião dela, todas as pessoas deveriam fazer terapia. O que acha disso?
- Todos nós usamos como que uma couraça, uma armadura, para viver em sociedade. Mas nem todos têm armaduras tão pesadas que paralisem ou os impeçam de se movimentar. Ou seja, nem todas as pessoas precisam fazer algum tipo de terapia, entendeu?
- É, você deve ter razão.
(silêncio breve)
- Eu vim pensando em contar um ou dois casos que até hoje me envergonham. Na época, fiquei muito mal. Qual você prefere escutar primeiro, o mais delirante ou o mais abjeto?
- A escolha é sua.
- OK, vou contar o mais antigo primeiro. Eu estava na quarta série do grupo escolar e tinha dez ou onze anos. Era colega de dois irmãos, um menino e uma menina. O menino era do tipo valentão e frequentemente arrumava brigas na saída da aula. Eu era franzino e medroso, morria de medo de alguém querer brigar comigo. Talvez por isso e pelo fato de irmos na mesma direção, acabei ficando amigo desse menino.
Um dia, comentei com ele que na minha casa existia um anel de caveira igual ao usado pelo Fantasma. Conhece essa história em quadrinhos, doutor?
- Sim, o "Fantasma que anda", não é?
- Isso mesmo. Eu gostava muito dessas histórias. Pois bem, o menino ficou empolgado e pediu para vê-lo. Eu disse que não poderia, pois era de um de meus tios, mas ele insistiu. Eu repeti a negativa e ele ficou com raiva. Pegou meu braço e começou a torcer. Pedi para que me soltasse, mas ele continuou a torcer meu braço e disse que se eu não desse para ele o tal anel ele iria me bater no dia seguinte.
A irmã do valentão ficou com um sorriso cúmplice enquanto eu era ameaçado e agredido. Fiquei tão apavorado com a possibilidade de apanhar, de ser surrado (meus pais nunca me bateram), que não pestanejei: no dia seguinte, tal como em um filme de gangsters, entreguei a ele o anel da caveira (que não era meu!).
Depois disso, creio que passei a voltar sozinho para casa. Não me lembro se era eu que o evitava ou se era ele que me ignorava. O que me consolou foi o fato de ser um anel sem valor, abandonado e esquecido em uma gaveta. Se eu o tivesse dado de presente ou jogado fora, nada teria acontecido, mas o que me marcou não foi a covardia abjeta explicitada por meu comportamento nem a provável humilhação a que seria submetido ao ser espancado na rua. O que me fez ceder à chantagem do colega filho da puta foi o Medo, um medo incontrolável. Medo da dor, do sofrimento, medo do desconhecido, medo, medo, medo, medo!
(respiração ofegante)
- Doutor...
- Sim?
- Eu não estou legal, não sei explicar, mas lembrar dessa história me deixou muito estranho. Acho que vou embora agora.
- Calma, respire pausadamente, o tempo ainda não acabou e...
- Foda-se o tempo! Eu não estou bem, estou agoniado, entendeu?.
- Espere um pouco...
- Tchau!
As "horas de cinquenta minutos" semanais foram acontecendo tal como se espera de uma terapia de longa duração. Medos da infância foram resgatados e narrados, superstições paralisantes, paranoias e medos juvenis foram buscados e revolvidos, até surgir a palavra "controle".
- Você acha que todos os medos que eu senti ao longo da minha vida decorrem de um desejo de controlar o que não pode ser controlado?
- É você que tem de validar esse pensamento. Ou não.
- Isso significa que o medo da perda, de todas as perdas possíveis que me aterrorizam e me enlouqueceram está, na verdade, explicado pelo desejo de controlar tudo?
- O que você acha?
- Se isso for verdade, a origem poderia estar no sofrimento indescritível por que passei quando minha mãe saía para fazer o pré-natal de meu irmão. Como não tinha controle sobre suas ausências e era muito dependente dela, eu temia que ela nunca mais voltasse. E isso foi projetado no futuro igualzinho à luz do Batman durante a noite.Faz sentido!
-Bem, o tempo acabou, mas parece que você avançou um passo. Reflita mais sobre isso.
- Ok, doutor.
ALGUMA SESSÃO
A porta do elevador se abre e dele sai um homem idoso com ar angustiado. Dirige-se ao número 303, entra na saleta de recepção, anuncia-se para a secretária (que já o conhece) e espera ser chamado.
- Como vai? Vamos entrar?
- Bom dia, doutor...
O homem acomoda-se no divã e começa a falar.
- Sabe, doutor, primeiro tenho que pedir desculpas por todas as saídas estabanadas. Apesar de idiota, parece que fugir do confronto - mesmo que seja comigo mesmo - é minha sina. Quando estava vindo para cá, lembrando desses comportamentos tão despropositados, fiquei pensando que devo ter desarmado uma trava presa há muito tempo. Por exemplo, o ódio e a vergonha reprimidos na infância pelo medo de um menino filho da puta, um verdadeiro bad baby, foram despertados e explodiram sem controle. Que acha disso?
- Na psicanálise, a eliminação do sintoma é consequência da modificação na estrutura psíquica que deu origem ao sintoma. Ou seja, uma transformação na dinâmica psíquica na qual o paciente se submergiu, e que o faz sentir-se e viver angustiado consigo mesmo e com os outros (no sintoma).
- Não entendi porra nenhuma!
- Ao verbalizar uma vivência que causou sofrimento intenso no passado, você conseguiu reviver os sentimentos contraditórios que recalcou. E isso foi libertador. Para ser eficaz, a terapia pressupõe a criação de um vínculo entre terapeuta e analisando. Na relação entre o terapeuta e o paciente forma-se uma relação pessoal de onde se pode interpretar o inconsciente do analisando. Na análise leva-se o paciente a tomar suas próprias decisões, a estar mais consciente de suas escolhas. É um compromisso de longa duração. Por isso, meu papel não é julgar, mas ouvir e analisar.
- Eu sei, doutor, já não sou calouro nessa matéria. Podemos prosseguir?
- Claro!
- Depois de começar aqui a revolver o passado, percebi que não quero mais fazer isso. Até porque já contei os casos da infância e juventude para o outro psicanalista. Poderia contá-los outra vez, mas, sinceramente, são café pequeno perto do tornado, do tsunami que está atingindo minha mente.
- Ao final desta sessão vou te dar uma receita de medicamentos contra depressão.
- Eu não quero tomar nenhuma bomba! Além do mais, não estou deprimido. O que estou é angustiado, totalmente sitiado pelo Medo, um medo que nunca senti, que surge de todos os lados, em todos os momentos, entendeu?
(silêncio ofegante)
- Eu tenho acordado e dormido com medo, medo de tudo. De acontecer alguma coisa a um de meus filhos (e eu não suportaria!), medo que sofram algum acidente quando viajam, medo de ficar dependendo financeiramente deles, medo de andar à noite e ser assaltado, medo de perder amigos, bens, status, saúde, a fé, medo de morrer de câncer, medo do amanhã, medo do próximo instante, medo de tudo, de tudo, de tudo. É um sentimento que não me abandona mais, parece que me vestiu como uma camisa de força. Eu não aguento mais isso!
(silêncio breve)
- Eu imagino que você vai dizer que esse medo está relacionado ao meu desejo irrealizável de controlar tudo, que esse desejo é um eco da impossibilidade de controlar as ausências da minha mãe durante sua gravidez. Vocês têm sempre uma explicação plausível para o que eu e outros sentimos. Mas eu tenho pressa, não aguento mais sofrer pelo amanhã, pelo que pode ou não acontecer amanhã ou depois. Sim, talvez eu queira controlar tudo, justamente para não sofrer. E eu nunca conseguirei isso!
Se o futuro fosse uma entidade, uma divindade mitológica, eu diria a ele: Futuro, não aguento mais temer suas ações! Chega,acabe com isso, abata-me logo! Livre-me do Medo para sempre, não me faça esperar!
- Nós conversamos sobre isso na sessão anterior, lembra-se? Mas parece que isso não calou bem em você. Aqui está o número do meu celular. Ligue-me a qualquer hora do dia, não faça nada que coloque em risco sua integridade física. Pense que esta é uma fase que será superada.
- Ah, doutor! E você acha realmente que eu vou te ligar? Que vou te mandar uma mensagem pelo whatsapp? Que vou dizer: “Meu caro doutor, vou suicidar agora. Fui!”. kkkkk, não é assim que se faz? Eu disse que não aguento mais! Tenho dor na nuca, acordo sobressaltado, perco o sono. E sempre tem uma mão invisível a me sufocar. Mas eu vou controlar a minha vida! Medo filho da puta! VOU
ACABAR COM VOCÊ, DESGRAÇADO!
- Você quer um pouco de água?
- Quero nada, só quero ir embora! Não vou ficar mais aqui!
O homem sai estabanadamente. O psicanalista fica pensativo, o cenho carregado. Lá fora se ouve o guinchar de pneus freando bruscamente e o barulho de uma batida. Alguém acabava de ser atropelado.
OBSERVAÇÃO FINAL:
- Bom dia, doutor!
- Bom dia! Tenha a bondade de entrar.
- Obrigado.
- Como você disse já ter feito terapia, fique à vontade para acomodar-se no divã.
- Já estava até com saudade! (mesmo que quatro décadas tenham se passado).
(Silêncio)
- O senhor sabe o que me trouxe aqui?
- Não.
- Quando eu tinha vinte anos, fiz terapia por ter medo da Morte, da dor. Hoje, tenho medo da Vida, da perda.
- Interessante...
(Silêncio prolongado)
- Como eu já sei que o senhor não vai dizer nada, ou melhor, dirá alguma coisa quando eu menos esperar, vou dar uma recapitulada na minha vida, ou ainda, no efeito do Medo ao longo da minha vida. O senhor quer perguntar alguma coisa?
- Não.
- Posso substituir o “senhor” por “você”?
- Claro!
- Se eu ficar muito tempo em silêncio, pode acontecer de estar cochilando, pois tenho andado muito cansado e insone.
(murmúrio ininteligível)
- Mesmo que eu não o esteja vendo, estou enxergando um risinho de escárnio em sua boca! Mas, fique tranquilo, Com uma hora de cinquenta minutos cobrada a preço de joia, pretendo aproveitar bem o tempo.
- Fique à vontade.
(Silêncio muito prolongado)
- Creio que o Medo, tal como se fosse uma entidade demoníaca, instalou-se em mim muito cedo, influenciando, pautando, balizando minha vida, minhas atitudes, comportamento pessoal, profissional e caminhada. A primeira lembrança mais nítida que tenho do efeito devastador do Medo em minha mente está relacionada à gravidez de minha mãe.
Eu tinha dez anos quando ela ficou grávida de meu irmão. Eu era uma criança presa, impedida de sair de casa para brincar com a molecada das redondezas. O primeiro terapeuta disse uma vez que eu era “filho de mãe castradora”, expressão que me causou algum desconforto. Por isso, por ser "inocente, puro e besta", eu nem sonhava o que seria “gravidez”. É ridículo isso (ainda mais nos dias atuais), mas era a pura verdade.
Quando não estava na escola (que chamava-se "grupo escolar" naquela época), ficava pela casa ou quintal "idiotizando" alguma coisa. Um dia, minha mãe sumiu. Perguntei onde estava e me disseram que "tinha saído". Quando saía por perto, para alguma compra, logo voltava. Se precisava ir “na cidade", normalmente me levava. Mas aquela ausência prolongada era novidade, pois eu não tinha ido com ela. Fui tomado por um desassossego, logo transformado em medo de ser abandonado e, por fim, de desespero quase histérico.
A única salvação para mim era fazer promessa, alguma promessa, qualquer promessa, para que ela voltasse. Não chorei, mas não conseguia pensar em mais nada. Aí ela chegou com meu pai, falou alguma coisa comigo e eu fui invadido pelo ódio mais cristalino, mais destilado, por ter-me feito sofrer tanto ao pensar que iria perdê-la.
Essas ausências aconteceram outras vezes, sempre gerando o medo mais mortal de ser abandonado. Ela saia com meu pai para fazer o controle pré-natal, provavelmente uma vez por mês, mas eu não sabia. Como "sexo" era assunto tabu em uma casa onde se ajoelhava às dezoito horas em frente ao rádio na "hora do Ângelus", só fiquei sabendo que minha mãe estava grávida já bem perto do dia do parto. Assim mesmo, graças à minha madrinha que passou a ir lá todos os dias para dar uma força na arrumação de casa e almoço. Lembro-me que fiquei surpreso com a notícia e assustado com o tamanho da barriga, nunca notado antes. Lembro-me também do aspecto meio repulsivo de seus pés inchados como uma bola, pois ela era bem magra.
- Bem, a sessão de hoje acabou.
- Já? Mas eu nem esquentei ainda!
- Na próxima, você continua...
- Hora de cinquenta minutos é foda!
- Até mais.
- Falou, doutor!
OUTRA SESSÃO
A porta do elevador se abre e dele sai um homem idoso de aparência cansada. Dirige-se ao número 303, entra na saleta de recepção, anuncia-se para a secretária que já o conhece e espera ser chamado.
- Como vai? Vamos entrar?
- Bom dia, doutor...
O homem acomoda-se no divã e fica em silêncio por alguns instantes. E começa a falar.
- Sabe, doutor, tenho uma amiga que também faz terapia. Estava contando para ela a história da gravidez de minha mãe. Na opinião dela, todas as pessoas deveriam fazer terapia. O que acha disso?
- Todos nós usamos como que uma couraça, uma armadura, para viver em sociedade. Mas nem todos têm armaduras tão pesadas que paralisem ou os impeçam de se movimentar. Ou seja, nem todas as pessoas precisam fazer algum tipo de terapia, entendeu?
- É, você deve ter razão.
(silêncio breve)
- Eu vim pensando em contar um ou dois casos que até hoje me envergonham. Na época, fiquei muito mal. Qual você prefere escutar primeiro, o mais delirante ou o mais abjeto?
- A escolha é sua.
- OK, vou contar o mais antigo primeiro. Eu estava na quarta série do grupo escolar e tinha dez ou onze anos. Era colega de dois irmãos, um menino e uma menina. O menino era do tipo valentão e frequentemente arrumava brigas na saída da aula. Eu era franzino e medroso, morria de medo de alguém querer brigar comigo. Talvez por isso e pelo fato de irmos na mesma direção, acabei ficando amigo desse menino.
Um dia, comentei com ele que na minha casa existia um anel de caveira igual ao usado pelo Fantasma. Conhece essa história em quadrinhos, doutor?
- Sim, o "Fantasma que anda", não é?
- Isso mesmo. Eu gostava muito dessas histórias. Pois bem, o menino ficou empolgado e pediu para vê-lo. Eu disse que não poderia, pois era de um de meus tios, mas ele insistiu. Eu repeti a negativa e ele ficou com raiva. Pegou meu braço e começou a torcer. Pedi para que me soltasse, mas ele continuou a torcer meu braço e disse que se eu não desse para ele o tal anel ele iria me bater no dia seguinte.
A irmã do valentão ficou com um sorriso cúmplice enquanto eu era ameaçado e agredido. Fiquei tão apavorado com a possibilidade de apanhar, de ser surrado (meus pais nunca me bateram), que não pestanejei: no dia seguinte, tal como em um filme de gangsters, entreguei a ele o anel da caveira (que não era meu!).
Depois disso, creio que passei a voltar sozinho para casa. Não me lembro se era eu que o evitava ou se era ele que me ignorava. O que me consolou foi o fato de ser um anel sem valor, abandonado e esquecido em uma gaveta. Se eu o tivesse dado de presente ou jogado fora, nada teria acontecido, mas o que me marcou não foi a covardia abjeta explicitada por meu comportamento nem a provável humilhação a que seria submetido ao ser espancado na rua. O que me fez ceder à chantagem do colega filho da puta foi o Medo, um medo incontrolável. Medo da dor, do sofrimento, medo do desconhecido, medo, medo, medo, medo!
(respiração ofegante)
- Doutor...
- Sim?
- Eu não estou legal, não sei explicar, mas lembrar dessa história me deixou muito estranho. Acho que vou embora agora.
- Calma, respire pausadamente, o tempo ainda não acabou e...
- Foda-se o tempo! Eu não estou bem, estou agoniado, entendeu?.
- Espere um pouco...
- Tchau!
As "horas de cinquenta minutos" semanais foram acontecendo tal como se espera de uma terapia de longa duração. Medos da infância foram resgatados e narrados, superstições paralisantes, paranoias e medos juvenis foram buscados e revolvidos, até surgir a palavra "controle".
- Você acha que todos os medos que eu senti ao longo da minha vida decorrem de um desejo de controlar o que não pode ser controlado?
- É você que tem de validar esse pensamento. Ou não.
- Isso significa que o medo da perda, de todas as perdas possíveis que me aterrorizam e me enlouqueceram está, na verdade, explicado pelo desejo de controlar tudo?
- O que você acha?
- Se isso for verdade, a origem poderia estar no sofrimento indescritível por que passei quando minha mãe saía para fazer o pré-natal de meu irmão. Como não tinha controle sobre suas ausências e era muito dependente dela, eu temia que ela nunca mais voltasse. E isso foi projetado no futuro igualzinho à luz do Batman durante a noite.Faz sentido!
-Bem, o tempo acabou, mas parece que você avançou um passo. Reflita mais sobre isso.
- Ok, doutor.
ALGUMA SESSÃO
A porta do elevador se abre e dele sai um homem idoso com ar angustiado. Dirige-se ao número 303, entra na saleta de recepção, anuncia-se para a secretária (que já o conhece) e espera ser chamado.
- Como vai? Vamos entrar?
- Bom dia, doutor...
O homem acomoda-se no divã e começa a falar.
- Sabe, doutor, primeiro tenho que pedir desculpas por todas as saídas estabanadas. Apesar de idiota, parece que fugir do confronto - mesmo que seja comigo mesmo - é minha sina. Quando estava vindo para cá, lembrando desses comportamentos tão despropositados, fiquei pensando que devo ter desarmado uma trava presa há muito tempo. Por exemplo, o ódio e a vergonha reprimidos na infância pelo medo de um menino filho da puta, um verdadeiro bad baby, foram despertados e explodiram sem controle. Que acha disso?
- Na psicanálise, a eliminação do sintoma é consequência da modificação na estrutura psíquica que deu origem ao sintoma. Ou seja, uma transformação na dinâmica psíquica na qual o paciente se submergiu, e que o faz sentir-se e viver angustiado consigo mesmo e com os outros (no sintoma).
- Não entendi porra nenhuma!
- Ao verbalizar uma vivência que causou sofrimento intenso no passado, você conseguiu reviver os sentimentos contraditórios que recalcou. E isso foi libertador. Para ser eficaz, a terapia pressupõe a criação de um vínculo entre terapeuta e analisando. Na relação entre o terapeuta e o paciente forma-se uma relação pessoal de onde se pode interpretar o inconsciente do analisando. Na análise leva-se o paciente a tomar suas próprias decisões, a estar mais consciente de suas escolhas. É um compromisso de longa duração. Por isso, meu papel não é julgar, mas ouvir e analisar.
- Eu sei, doutor, já não sou calouro nessa matéria. Podemos prosseguir?
- Claro!
- Depois de começar aqui a revolver o passado, percebi que não quero mais fazer isso. Até porque já contei os casos da infância e juventude para o outro psicanalista. Poderia contá-los outra vez, mas, sinceramente, são café pequeno perto do tornado, do tsunami que está atingindo minha mente.
- Ao final desta sessão vou te dar uma receita de medicamentos contra depressão.
- Eu não quero tomar nenhuma bomba! Além do mais, não estou deprimido. O que estou é angustiado, totalmente sitiado pelo Medo, um medo que nunca senti, que surge de todos os lados, em todos os momentos, entendeu?
(silêncio ofegante)
- Eu tenho acordado e dormido com medo, medo de tudo. De acontecer alguma coisa a um de meus filhos (e eu não suportaria!), medo que sofram algum acidente quando viajam, medo de ficar dependendo financeiramente deles, medo de andar à noite e ser assaltado, medo de perder amigos, bens, status, saúde, a fé, medo de morrer de câncer, medo do amanhã, medo do próximo instante, medo de tudo, de tudo, de tudo. É um sentimento que não me abandona mais, parece que me vestiu como uma camisa de força. Eu não aguento mais isso!
(silêncio breve)
- Eu imagino que você vai dizer que esse medo está relacionado ao meu desejo irrealizável de controlar tudo, que esse desejo é um eco da impossibilidade de controlar as ausências da minha mãe durante sua gravidez. Vocês têm sempre uma explicação plausível para o que eu e outros sentimos. Mas eu tenho pressa, não aguento mais sofrer pelo amanhã, pelo que pode ou não acontecer amanhã ou depois. Sim, talvez eu queira controlar tudo, justamente para não sofrer. E eu nunca conseguirei isso!
Se o futuro fosse uma entidade, uma divindade mitológica, eu diria a ele: Futuro, não aguento mais temer suas ações! Chega,acabe com isso, abata-me logo! Livre-me do Medo para sempre, não me faça esperar!
- Nós conversamos sobre isso na sessão anterior, lembra-se? Mas parece que isso não calou bem em você. Aqui está o número do meu celular. Ligue-me a qualquer hora do dia, não faça nada que coloque em risco sua integridade física. Pense que esta é uma fase que será superada.
- Ah, doutor! E você acha realmente que eu vou te ligar? Que vou te mandar uma mensagem pelo whatsapp? Que vou dizer: “Meu caro doutor, vou suicidar agora. Fui!”. kkkkk, não é assim que se faz? Eu disse que não aguento mais! Tenho dor na nuca, acordo sobressaltado, perco o sono. E sempre tem uma mão invisível a me sufocar. Mas eu vou controlar a minha vida! Medo filho da puta!
- Você quer um pouco de água?
- Quero nada, só quero ir embora! Não vou ficar mais aqui!
O homem sai estabanadamente. O psicanalista fica pensativo, o cenho carregado. Lá fora se ouve o guinchar de pneus freando bruscamente e o barulho de uma batida. Alguém acabava de ser atropelado.
OBSERVAÇÃO FINAL:
Eu realmente não me senti bem ao pensar em postar no blog descrições sinceras dos diversos medos que me atingiram. Por isso, diminuí a quantidade de textos que imaginava divulgar no Blogson, mas o resultado ficou meio capenga. Por isso, resolvi criar uma ligação entre o segundo e o terceiro, para dar uma abordagem mais atemporal. Continuou meio capenga, mas melhorou um pouco (na minha opinião, obviamente).
Como disse João Nogueira no samba "Além do espelho":
Toda imagem no espelho refletida
Tem mil faces que o tempo ali prendeu
Todos têm qualquer coisa repetida
Um pedaço de quem nos concebeu
Toda imagem no espelho refletida
Tem mil faces que o tempo ali prendeu
Todos têm qualquer coisa repetida
Um pedaço de quem nos concebeu
(Publicação original: 17/06/2018)
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