“A arte
não existe para maltratar ninguém, ela existe porque a vida não basta”.
O Pasquim tinha vários colaboradores que moravam em outros países. Além dos artigos e crônicas do Paulo Francis, Ivan Lessa, e outros, o poeta Ferreira Gullar (autor da frase acima e destinatário de minha reverência de hoje) também podia ser lido no velho "Pasca". É daquela época meu primeiro e único contato com o reverenciado de hoje, pois nunca me interessei em ler nada de sua obra. Ignorância e falha minha, lógico.
A coisa mudou ligeiramente quando ele foi
entrevistado pela revista Veja. Fiquei tão encantado com o que disse que logo
me apressei em escanear as páginas da revista para enviar por e-mail aos meus
filhos.
Mas, em vez de ficar conversando fiado sobre quem ignoro quase tudo, vou transcrever um poema espetacular que descobri e, também, alguns trechos da tal entrevista (excelente, diga-se) concedida ao jornalista Pedro Dias Leite.
TRADUZIR-SE
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
UMA
VISÃO CRÍTICA DAS COISAS
Um dos maiores poetas brasileiros de todos os
tempos, Ferreira Gullar, 84 anos, foi militante do Partido Comunista Brasileiro
e, exilado pela ditadura militar, viveu na União Soviética, no Chile e na
Argentina.
Desiludiu-se do socialismo em todas as suas formas
e hoje acha o capitalismo “invencível”.
É autor de versos clássicos — “À vida falta uma parte / — seria o lado de
fora — / para que se visse passar / ao mesmo tempo que passa / e no final fosse
apenas / um tempo de que se acorda / não um sono sem resposta. / À vida falta
uma porta”.
Gullar teve dois filhos afligidos pela
esquizofrenia. Um deles morreu. O poeta narra o drama familiar e faz a defesa
da internação em hospitais psiquiátricos dos doentes em fase aguda. Sobre seu
ofício, diz: “Tem de haver espanto, não
se faz poesia a frio”.
— O senhor já disse que “se bacharelou em
subversão” em Moscou e escreveu um poema em que a moça era “quase tão bonita
quanto a revolução cubana”. Como se deu sua desilusão com a utopia comunista?
— Não
houve nenhum fato determinado. Nenhuma decepção específica. Foi uma questão de
reflexão, de experiência de vida, de as coisas irem acontecendo, não só comigo,
mas no contexto internacional. É fato que as coisas mudaram. O socialismo
fracassou. Quando o Muro de Berlim caiu, minha visão já era bastante crítica.
A
derrocada do socialismo não se deu ao cabo de alguma grande guerra. O fracasso
do sistema foi interno. Voltei a Moscou há alguns anos. O túmulo do Lenin está
ali na Praça Vermelha, mas pelo resto da cidade só se veem anúncios da
Coca-Cola. Não tenho dúvida nenhuma de que o socialismo acabou, só alguns
malucos insistem no contrário. Se o socialismo entrou em colapso quando ainda
tinha a União Soviética como segunda força econômica e militar do mundo, não
vai ser agora que esse sistema vai vencer.
— Por que o capitalismo venceu?
— O
capitalismo do século XIX era realmente uma coisa abominável, com um nível de
exploração inaceitável. As pessoas com espírito de solidariedade e com
sentimento de justiça se revoltaram contra aquilo. O Manifesto Comunista,
de Marx, em 1848, e o movimento que se seguiu tiveram um papel importante para
mudar a sociedade.
A luta
dos trabalhadores, o movimento sindical, a tomada de consciência dos direitos,
tudo isso fez melhorar a relação capital-trabalho. O que está errado é achar,
como Marx diz, que quem produza riqueza é o trabalhador e o capitalista só o
explora. É bobagem. Sem a empresa, não existe riqueza. Um depende do outro. O
empresário é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas. É
um criador, um indivíduo que faz coisas novas.
A visão
de que só um lado produz riqueza e o outro só explora é radical, sectária,
primária. A partir dessa miopia, tudo o mais deu errado para o campo
socialista. Mas é um equívoco concluir que a derrocada do socialismo seja a prova
de que o capitalismo é inteiramente bom. O capitalismo é a expressão do
egoísmo, da voracidade humana, da ganância. O ser humano é isso, com raras
exceções.
O
capitalismo é forte porque é instintivo. O socialismo foi um sonho maravilhoso,
uma realidade inventada que tinha como objetivo criar uma sociedade melhor. O
capitalismo não é uma teoria. Ele nasceu da necessidade real da sociedade e dos
instintos do ser humano. Por isso ele é invencível.
A força
que torna o capitalismo invencível vem dessa origem natural indiscutível. Agora
mesmo, enquanto falamos, há milhões de pessoas inventando maneiras novas de
ganhar dinheiro. É óbvio que um governo central com seis burocratas dirigindo
um país não vai ter a capacidade de ditar rumos a esses milhões de pessoas. Não
tem cabimento.
— O senhor se considera um direitista?
— Eu,
de direita? Era só o que faltava. A questão é muito clara. Quando ser de
esquerda dava cadeia, ninguém era. Agora que dá prêmio, todo mundo é. Pensar
isso a meu respeito não é honesto. Porque o que estou dizendo é que o
socialismo acabou, estabeleceu ditaduras, não criou democracia em lugar algum e
matou gente em quantidade. Isso tudo é verdade. Não estou inventando.
— E Cuba?
— Não
posso defender um regime sob o qual eu não gostaria de viver. Não posso admirar
um país do qual eu não possa sair na hora que quiser. Não dá para defender um
regime em que não se possa publicar um livro sem pedir permissão ao governo.
Apesar disso, há uma porção de intelectuais brasileiros que defendem Cuba, mas,
obviamente, não querem viver lá de jeito nenhum. É difícil para as pessoas
reconhecer que estavam erradas, que passaram a vida toda pregando uma coisa que
nunca deu certo.
— Como o senhor define sua visão política?
— Não
acho que o capitalismo seja justo. O capitalismo é uma fatalidade, não tem
saída. Ele produz desigualdade e exploração. A natureza é injusta. A justiça é
uma invenção humana. Um nasce inteligente e o outro burro. Um nasce
inteligente, o outro aleijado. Quem quer corrigir essa injustiça somos nós. A
capacidade criativa do capitalismo é fundamental para a sociedade se
desenvolver, para a solução da desigualdade, porque é só a produção da riqueza
que resolve isso. A função do estado é impedir que o capitalismo leve a
exploração ao nível que ele quer levar.
(...)
— O senhor condena quem pegou em armas para
lutar contra o regime militar?
— Quem
aderiu à luta armada foram pessoas generosas, íntegras, tanto que algumas
sacrificaram sua vida. Mas por um equívoco. Você tem de ter uma visão critica
das coisas, não pode ficar eternamente se deixando levar por revolta, por
ressentimentos. A melhor coisa para o inimigo é o outro perder a cabeça. Lutar
contra quem está lúcido é mais difícil do que lutar contra um desvairado.
— Como se justifica sua defesa da internação
no tratamento da esquizofrenia?
— As
pessoas usam a palavra manicômio para desmoralizar os hospitais psiquiátricos.
Internei meu filho em hospitais que têm piscina, salão de jogos, biblioteca.
Mesmo os públicos não têm mais a camisa de força ou sala com grades. Tive dois
filhos esquizofrênicos. Um morreu, o outro está vivo, mas não tem mais o
problema no mesmo grau. Controlou com remédio, e a idade também ajuda. A
esquizofrenia surge na adolescência e se junta à impetuosidade. Com o tempo, a
pessoa vai amadurecendo. Doença é doença, não é a gente. Se estou gripado, a
gripe não sou eu. A esquizofrenia é uma doença, mas eu não sou a esquizofrenia.
Posso evoluir, me tornar uma pessoa mais madura, debaixo de toda aquela
confusão. O esquizofrênico com 5 anos não é o mesmo de quando tinha 17.
— Qual o pior momento na sua convivência com
filhos esquizofrênicos?
—
Quando a pessoa entra em surto, ela pode se jogar pela janela. Meu filho, o
Paulo, se jogou. Hoje ele anda mancando porque sofreu uma lesão na coluna. Ele
conversava comigo, via televisão, brincava, lia meus poemas. Em surto, não
tinha controle. Queria estrangular a empregada. Nessas horas, a única maneira é
internar e medicar. Nesse estado, sem nenhum socorro, o esquizofrênico pode
fazer qualquer coisa.
(...)
Quando
ouço alguém dizer que as famílias internam os filhos porque querem se ver
livres deles, só posso pensar que essa pessoa gosta dos meus filhos mais do que
eu. Nunca viu meu filho, mas ama meu filho mais do que eu. Absurdo. Você não
sabe o que é uma família ter um filho esquizofrênico. Além do problema do
tratamento, existe o desespero de não saber o que fazer.
(...)
— Como é seu método para fazer poesia?
— Já
fiquei doze anos sem publicar um livro. Meu último saiu há onze anos. Poesia
não nasce pela vontade da gente, ela nasce do espanto, alguma coisa da vida que
eu vejo e que não sabia. Só escrevo assim. Estou na praia, lembro do meu filho
que morreu. Ele via aquele mar, aquela paisagem. Hoje estou vendo por ele. Aí
começo um poema… Os mortos veem o mundo pelos olhos dos vivos. Não dá para
escrever um poema sobre qualquer coisa.
O mundo
aparentemente está explicado, mas não está. Viver em um mundo sem explicação
alguma ia deixar todo mundo louco. Mas nenhuma explicação explica tudo, nem
poderia. Então de vez em quando o não explicado se revela, e é isso que faz
nascer a poesia. Só aquilo que não se sabe pode ser poesia.
(...)
Acredito que você deva saber, mas caso não, Fagner musicou belamente o poema Traduzir-se, de Goulart. Se não conhece, compensa baixar da internet.
ResponderExcluirabraço
Rapaz, eu nem imaginava! Obrigado pela dica. Valeu!
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