quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

CRÔNICAS - AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA

Nunca me liguei na obra de Affonso Romano de Santanna até começar a ler suas crônicas no jornal. Pela própria coluna fui descobrindo que é mineiro, poeta, que foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional, que deu aulas no exterior, etc. 

Como sou um ignorante, um casca grossa genuíno, continuei sendo apenas um leitor de jornal, satisfazendo-me em constatar que ele tem horror a um tipo de "obra de arte" moderna, representada pelo Marcel Duchamp com sua produção "ready made" (quem quiser saber sobre isso que procure na internet. Vai "adorar").

Bom, já deu para perceber que, embora goste dele, não é meu ídolo, não é um Rubem Braga para mim. Mas, um dia, em um dia muito trágico, ele escreveu uma crônica que me deixou paralisado pelo abalo, pelo horror e pela intensidade das emoções que conseguiu transpor para o texto. É uma crônica escrita imediatamente após o atentado às torres gêmeas do World Trade Center. Nunca mais esqueci o impacto de suas palavras, tão precisas quanto um corte a laser, tão incisivas quanto um bisturi.

A reprodução dessa crônica magistral é minha mais sincera reverência a quem a escreveu. Só o trecho que sublinhei já me dá um milhão de motivos para admirá-lo. Mas, como o assunto é triste demais, resolvi transcrever também um ótima crônica sobre filhos e netos, para contrabalançar. 

Salve, Affonso Romano de Santanna!


 SAINDO DAS CINZAS
Um homem está precipitando-se do alto do World Trade Center, em chamas, em Nova York. Não é o único. Dezenas de corpos vivos, incendiados pelo desespero e ódio alheio, jogam-se lá de cima, depois que dois aviões pilotados por terroristas chocaram-se contra aqueles edifícios e contra a humanidade.

Outros estão descendo desesperados pelas escadarias em meio à fumaça, gritaria e destroços. Mas agora um homem está caindo do alto do sólido mundo capitalista e se condensa numa foto antes de se desmanchar no solo.

Estou acompanhando esse corpo que cai.

Sei que dentro de poucos minutos serão milhares de mortos e feridos empilhados nas ferragens dos dois edifícios que derretem-se, derretem-se paradoxalmente em chamas ante o nosso gelado espanto. Mas meus olhos estão paralisados nesse corpo que se jogou lá de cima, embora, ao lado, acima, já antes dele, outros corpos risquem o espaço numa precipitada chuva de desilusões e pânico.

Concentro-me nesse único corpo que cai, porque como dizia outro poeta “meus olhos são pequenos para ver” a imensidão do horror que por toda parte se espalha.

Há quinze minutos, no entanto, aquele homem estava no seu escritório atendendo um telefonema. Falava com sua mulher sobre um compromisso que teriam à noite, e ia começar a conferir números do mercado financeiro. Estava com os pés sobre a mesa e olhava através do altíssimo e envidraçado edifício o mundo lá fora. A vida era estável. Lá no alto as oscilações da bolsa o embalavam. Lá do alto via toda a ilha, a baía com os barcos e os aviões que chegavam e partiam. Não, ele não sabia que um avião havia decolado contra seu corpo e seu país e vinha ferozmente em sua direção, arrebentando a placenta de aço e vidro onde se aninhava.

Diria, portanto, que ele estava absurdamente tranquilo. Afinal, era um belo dia aquele, dia azulzíssimo. Havia se despedido dos filhos, depois do suco de laranja, do ovo cozido, do pão com geleia, iogurte e sucrilhos. Havia beijado a esposa, pego o chaveiro, a pasta de trabalho, e tirando o carro da garagem atravessara a cidade fazendo planos e conjecturas para o amanhã. Passou pela portaria do edifício como se fosse um dia comum, cumprimentou pessoas e funcionários, fez uma piada qualquer ao entrar no escritório, como se a vida tivesse alguma graça. Seguiu insensatamente, sem saber que naquele dia deveria ter trazido asas para sobreviver ao acaso. Ele não tinha consciência que mais que a maioria dos homens, ele era um homem que não podia mais adiar sua morte. Tinha quinze ou cinco minutos de vida e continuava sorrindo e fazendo planos.

Do horizonte da história, de repente, surge um avião pilotado pelo ódio. Nenhum radar foi capaz de rastreá-lo, detê-lo. O choque, o estrondo, ecoou por todo o mundo. E quando a perplexidade ainda se concentrava no primeiro edifício, o segundo recebia também o impacto de outro enlouquecido avião. Fugindo das chamas, por entre corpos flamejantes, atordoado agarra-se à tênue linha de vida que sobrou, liga o celular e joga no ar as últimas palavras de amor para sua mulher. Acuado pela apocalíptica irracionalidade e pelo pânico, lança-se ou é lançado absurdamente no vazio.

Agora seu corpo está despencando lá de cima enquanto uma fogueira histórica segue ardendo corpos e consciências.

Com aquele homem e naquele homem despencava mais que um homem. Com os milhares que com ele morreram fez-se algo mais que um simples cemitério. Com aqueles dois edifícios desmoronava-se uma época.

Talvez sobre essas cinzas e sangue ainda se possa construir alguma coisa.

* * * * *

ANTES QUE ELAS CRESÇAM
Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.

É que as crianças crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. Crescem como a inflação, independente do governo e da vontade popular. Entre os estupros dos preços, os disparos dos discursos e o assalto das estações, elas crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância.

Mas não crescem todos os dias, de igual maneira; crescem, de repente.

Um dia se assentam perto de você no terraço e dizem uma frase de tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.

Onde e como andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu? Cadê aquele cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme do maternal?

Ela está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça. Ali estão muitos pais, ao volante, esperando que saiam esfuziantes sobre patins, cabelos soltos sobre as ancas. Essas são as nossas filhas, em pleno cio, lindas potrancas.

Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão elas, com o uniforme de sua geração: incômodas mochilas da moda nos ombros ou, então com a suéter amarrada na cintura. Está quente, a gente diz que vão estragar a suéter, mas não tem jeito, é o emblema da geração.

Pois ali estamos, depois do primeiro e do segundo casamento, com essa barba de jovem executivo ou intelectual em ascensão, as mães, às vezes, já com a primeira plástica e o casamento recomposto. Essas são as filhas que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias e da ditadura das horas. E elas crescem meio amestradas, vendo como redigimos nossas teses e nos doutoramos nos nossos erros.

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.

Longe já vai o momento em que o primeiro mênstruo foi recebido como um impacto de rosas vermelhas. Não mais as colheremos nas portas das discotecas e festas, quando surgiam entre gírias e canções. Passou o tempo do balé, da cultura francesa e inglesa. Saíram do banco de trás e passaram para o volante de suas próprias vidas. Só nos resta dizer “bonne route, bonne route”, como naquela canção francesa narrando a emoção do pai quando a filha oferece o primeiro jantar no apartamento dela.

Deveríamos ter ido mais vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de colagens, pôsteres e agendas coloridas de pilô. Não, não as levamos suficientemente ao maldito “drive-in”, ao Tablado para ver “Pluft”, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas merecidas.

Elas cresceram sem que esgotássemos nelas todo o nosso afeto.

No princípio subiam a serra ou iam à casa de praia entre embrulhos, comidas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscinas e amiguinhas. Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de sorvetes e sanduíches infantis. Depois chegou a idade em que subir para a casa de campo com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma aqui na praia e os primeiros namorados. Esse exílio dos pais, esse divórcio dos filhos, vai durar sete anos bíblicos. Agora é hora de os pais na montanha terem a solidão que queriam, mas, de repente, exalarem contagiosa saudade daquelas pestes.

O jeito é esperar. Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. Por isso, os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável afeição. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.

Por isso, é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam.

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