segunda-feira, 31 de março de 2025

ÁGUA QUENTE

 
Sempre disse que não sentia saudade de tempos idos, mas só de mim – do que poderia ter feito e não fiz, do que não deveria ter feito, mas fiz. Talvez fosse uma visão bastante egocêntrica, uma forma de resistir ao saudosismo que muitas pessoas exibem ao dizer “no meu tempo” ou “o meu tempo é que era bom”.
 
Sempre achei esse tipo de pensamento um lixo, mas alguma coisa mudou em mim. O sono interrompido, fracionado em três ou quatro partes, tem provocado sonhos inusitados, pensamentos estranhos e desejos inesperados. Dia desses, acordei às três da manhã com uma sensação enorme de melancolia, com saudade de algumas pessoas com quem mal convivi, meninas que desejei sem sucesso, em um período em que o que poderia ter acontecido não aconteceu.
 
E me peguei triste, com vontade de rever essas imagens há muito esquecidas, esfumaçadas depois de passados mais de 50 anos – mesmo sabendo que o Tempo erodiu e tornou provavelmente irreconhecíveis rostos e corpos hígidos de que já nem me lembro mais. Mesmo assim, gostaria de poder rever quem esquentou a água dessa saudade – uma saudade sem sentido e que eu nunca tinha sentido antes.

domingo, 30 de março de 2025

ALUCINAÇÃO PIEDOSA

 
Parece que as pessoas – a imensa maioria delas  pensa assim: eu aceito o que me parece ser razoável, você acredita no que te parece ser verdade, nós cremos em tudo o que nos é confortável. E assim caminha a humanidade, afagada pelas mentiras e arranhada pela Verdade.

Que os leitores mais frequentes e aqueles que às vezes tropeçam no Blogson me perdoem, mas hoje vou delirar um pouco. Apertem o sinto – ou o cinto – e boa viagem!
 
Não adianta querer tirar o cu da seringa, não adianta negar o inegável nem apelar para São Benedito e Nossa Senhora, pois o futuro da Terra pode ser tudo, menos um samba de Martinho da Vila. E o motivo para toda essa minha descrença, desalento e desesperança reside em fatos irrefutáveis que poderiam ser assim listados:
- Vivemos em um planeta de recursos naturais não renováveis;
- Segundo estimativas alarmantes, o planeta consegue  suportar e alimentar dois bilhões, mas a população mundial hoje ultrapassa oito bilhões – verdadeiro exército de gafanhotos bípedes anabolizados;
- As mudanças climáticas relacionadas à poluição atmosférica, ao aquecimento global, à desertificação, consequência do desmatamento desenfreado promovido por essas formigas cortadeiras gigantes, incapazes de pensar ou agir de forma não imediatista.
 
Só isso já basta para imaginar um futuro nada róseo, nada auspicioso para quem tiver a má sina de viver nesta panela de pressão pronta para explodir. Quais são as soluções possíveis?
- Uma epidemia mundial que reduza a população global a menos de um terço da atual;
- A queda de um asteroide gigantesco que mate dois terços da espécie humana;
- A instalação de um triunvirato autoritário global nos moldes do livro 1984;
- O surgimento de uma sociedade totalmente alienada e controlada por IA, nos moldes do filme Matrix.
 
De todas essas opções, a que mais parece simpática é a da Matrix. Pouco importa que sejam tomadas medidas para redução da população a níveis que o planeta suporte, pois ninguém perceberá a calamidade e a tragédia de proporções “bíblicas” para cumprimento desse objetivo. Todos estarão felizes e anestesiados, vivendo uma fantasia que não provoque dor nem sofrimento.
 
Parece loucura? Sim, parece ou é mesmo, mas qual outra solução para que a espécie humana continue a existir? Se pararmos para pensar, já existem vários embriões da Matrix, só possíveis porque gostamos de nos enganar, de acreditar nas maiores mentiras que nossos líderes contam. E por que isso acontece? Porque somos crédulos, porque acreditamos em todo tipo de idiotices e falsidades que recebemos pelas redes sociais.
 
Hoje eu acredito que 99% da população (contando comigo!) não consegue ter independência e visão crítica das coisas. Pensando na quantidade de credos políticos e crenças religiosas que existem, chega-se à triste conclusão de que nunca conseguiu, na verdade.
 
Uma Matrix bem implantada certamente traria felicidade a todos, pois todas as crenças seriam verdadeiras, todas as ideologias estariam corretas, tudo acontecendo em um mundo sem guerras, sem sofrimento. A vida transcorreria como um procedimento cirúrgico realizado sob anestesia, independente do “corte” que fosse necessário fazer. E poderíamos continuar nos assustando com os desastres naturais – tsunamis, terremotos, avalanches – gestados nas entranhas deste planeta lindo, mas cruel.
 
E, mesmo que estivesse em curso uma redução drástica da população mundial, poderíamos viver sem medo e sem saudade dos eliminados, pois estaríamos desconectados do mundo real, o que permitiria que continuássemos convivendo com pessoas falecidas como se vivas ainda fossem. Um mundo idílico onde todos tivessem ocupações e vidas normais projetadas em nossas mentes pelo conglomerado de IA.
 
Claro, viveríamos uma alucinação coletiva, mas uma piedosa alucinação que nos permitisse viver sem o medo da morte, expresso por uma das minhas netas de sete anos, quando o assunto da conversa com a irmã era sobre a morte de pessoas queridas. Disse ela:
- Eu não quero morrer!
Contando esse caso, meu filho comentou:
- Crise existencial aos sete anos de idade, eu não aguento!
 
 

 

 

sábado, 29 de março de 2025

SPAMVERSATION

 
Á conversa a seguir é um autêntico “diálogo de spamtar”, um diálogo tão infame que pode até provocar azia em quem o lê. O problema é que eu gosto muito de imaginá-los. E como no diálogo a seguir dois gringos são citados, resolvi adotar como título uma junção das palavras “spam” mais “conversation”, resultando em “spamversation”. Gostaram?
 
- Você ouviu o que o Trump falou?
- Eu não entendo inglês.
- Eu também não, idiota! Eu li na internet, nos portais de notícias, que ele falou que precisa da Groenlândia de qualquer jeito, porque isso vai ajudar a paz mundial! Isso é que é duplipensar, o cara ameaça invadir o território de outro país e diz que busca a paz!
- Isso é triplipensar.
- Que porra é essa?
- A inflação tá alta, sabe?
- Que piada horrorosa!
- Falando sério, o Trump é só um fanfarrão que gosta de exibir os Musk-ulos
-Puta que pariu! Um trocadilho indecente de ruim depois de uma piada ridícula em menos de dois minutos eu não aguento!

sexta-feira, 28 de março de 2025

ANJO SOBRESSALENTE

Dizem que toda pessoa possui um anjo da guarda para chamar de seu. Pode ser, mas algumas pessoas vivem de forma tão descuidada tão displicente que talvez fosse necessário um anjo da guarda sobressalente, de estepe. Conheci um cara assim, tantas as roubadas em que entrou ou nas quais se viu envolvido sem querer. Como não pretendo fazer um levantamento das inúmeras pisadas no tomate que cometeu, vou me dedicar apenas à sua interação com automóveis.
 
E tudo o que aconteceu talvez seja consequência das penalidades impostas por São Cristóvão (o padroeiro dos motoristas), puto com a “falsidade ideológica primal” cometida pelo Pepeu (esse era seu apelido). E qual seria essa falsidade? Por ser mais míope que um rinoceronte, quase tão cego quanto um morcego, Pepeu pediu ao irmão mais velho para fazer o exame de motorista por ele, à época em que as barrigas de cerveja dos dois ainda eram semelhantes. E deu certo!
 
Já trabalhando como professor, Pepeu comprou um Opala usado que estava impecável por dentro e por fora. A primeira coisa que cismou de fazer foi pintar o interior do carro de preto. E a forração original na cor marfim recebeu tinta látex preta aplicada com trincha ou pincel. O resultado ficou simplesmente horrível. Depois disso, foi destruindo o carro aos poucos. Creio que bateu ou foi batido, resolveu trocar os amortecedores com a ajuda de um amigo, sem nenhum equipamento adequado. O melhor resultado foi ter o dedo polegar esmagado por uma martelada do ajudante. Só sei que, quando vendeu o carro, as portas eram amarradas com fio de cobre, pois tinha conseguido estragar até as fechaduras. E ali, sem que ninguém conseguisse prever, surgia um transformador de carros em sucata, um destruidor de automóveis. Para ser sincero, de relacionamentos afetivos também.
 
Tempos depois, já com uma situação financeira mais confortável, comprou um Chevette zero quilômetro, utilizado para uma viagem ao Nordeste, na companhia de dois ou três amigos, professores e cachaceiros como ele. Rodaram mais de dez mil quilômetros. Chegando a BH, guardou o carro na garagem da casa da família. Um dos irmãos notou que saía um silvo do carro, como se um dos pneus estivesse esvaziando. Deu um pequeno chute em um dos pneus e, para espanto geral, o motor do carro começou a pegar fogo. Sem entenderem o que estava acontecendo, empurraram o carro para fora de casa, mas até a chegada dos bombeiros não havia mais nada a salvar. Que fazer? A garantia era válida até dez mil quilômetros, quilometragem já superada pela viagem ao Nordeste. Pepeu e um primo desconectaram o cabo do odômetro/velocímetro, acoplaram a ponta a uma furadeira na opção de desparafusar e foram voltando a quilometragem até chegar a nove mil e poucos quilômetros. Conseguiu assim um novo carro — que depois bateu algumas vezes antes de vender.
 
Por não enxergar quase nada e sempre perder ou quebrar os óculos que mandava fazer, capotou algumas vezes, bateu outras tantas, mas um dia São Cristóvão abusou da punição: voltando uma noite da faculdade, o sinal amarelou e Pepeu achou melhor não tentar atravessar a larga e movimentada avenida transversal. Estava parado no meio das duas pistas, quando surgiu um carro dirigido por um motorista bêbado que bateu em sua traseira sem sequer pisar no freio. O impacto foi tão grande que a colega que estava com ele desmaiou. E o carro “voou” uns dez metros para a frente, com a traseira completamente destruída.

Pepeu trabalhava como um cavalo, fumava como uma chaminé, bebia como um gambá e, bem apessoado e com apetite de garanhão, traía a esposa com quem desse mole para ele — alunas, amigas e conhecidas — pouco importando se eram solteiras, noivas ou casadas. Embora pai de quatro filhos, seu prazer era dar aula de manhã, à tarde e à noite, de segunda a sábado, e encher a cara com os amigos no resto do tempo disponível.
 
Talvez vocês pensem que essa vida desregrada afetou negativamente o casamento e a educação dos filhos, correto? Nota máxima para quem disse “sim”! Um dia Pepeu foi encontrado completamente bêbado dormindo dentro do carro, estacionado em local proibido, em uma das avenidas mais movimentadas de BH. Não me lembro do que aconteceu depois.
 
Mas algumas das melhores histórias aconteceram quando ainda era solteiro. Antes do Chevette incendiado, comprou um fusquinha usado (que também tinha uma porta amarrada com fio de cobre quando foi vendido). Na primeira história, parou em um posto de combustíveis para trocar um pneu furado. Feita a troca, pegaram a estrada novamente, quando a irmã sentada no banco de trás exclamou:
— Olha, eu vi um pneu passando aqui do lado! Caiu naquele mato ali atrás.
Era o pneu mal trocado, com parafusos mal apertados.
 
A outra história, bem mais interessante, tem a ver com a função de “motelmóvel” que dava a todos os carros que possuiu. Um dia, logo na saída de BH, perdeu o controle da direção e capotou o fusquinha em uma curva acentuada da estrada que vai para o Rio. Até aí, nada de mais — exceto o fato de estar acompanhado da namorada. E os dois estavam nus. Dá para imaginar a cena?
 
Profissional irrepreensível, vida pessoal levada de forma egoísta, amadorística e irresponsável (casou-se com uma moça conhecida dois meses antes), Pepeu viveu como quem não conseguiu “apertar corretamente os parafusos” da sua própria vida louca. E pagou um alto preço por isso.

 


quinta-feira, 27 de março de 2025

HOW I WHISH YOU WERE HERE - FLASH MOB

 
Estou mesmo um velho babão, um idoso chorão. Recebi uma mensagem da minha mulher com um flash mob da música “How I Whish You Were Here”, do Pink Floyd, Ler o texto e ouvir a música me fez começar a chorar. Por isso, resolvi contar no Blogson essa experiência. Mas ninguém precisa chorar. Lêaí, escutaí
 
A vida está passando. Seu tempo está cada vez menor! As despedidas, daqui pra frente, serão cada vez mais constantes e dolorosas. O que você está fazendo com o tempo que lhe resta? Vivendo ou sobrevivendo? Cuide de sua saúde, de sua família e de seus amores. Mas faça isso vivendo! Porque, na melhor das hipóteses, daqui a um tempo você será só uma foto na gaveta de alguém. Faça essa foto valer boas lembranças e lágrimas de saudade. Um abraço de alguém que quer lhe ver, vivendo. Wish You Were Here (Eu gostaria que você estivesse aqui). Curte aí, é um Clássico. Clássico do Pink Floyd!
 


https://www.youtube.com/watch?v=aNLI_S4Vp4c

 

quarta-feira, 26 de março de 2025

BOCA DE ÉGUA

 
Acredito que seja uma situação comum a várias faculdades: a cada nova turma sempre surge alguém que você não consegue entender como conseguiu passar no vestibular. São sempre meio aloprados e capazes de enlouquecer os professores. A minha turma também tinha o seu. O apelido era Fico, abreviatura de Frederico.
 
Totalmente sem noção, falava alto pelos corredores, continuava falando ao entrar na sala de aula e interrompia os professores com perguntas inacreditavelmente estapafúrdias. Colava em todas as provas e tinha um riso pra lá de cínico e debochado. Fora da escola, ao passar perto de um grupo de pessoas na calçada, fazia bundalelê de dentro de uma Kombi de portas abertas, e ria depois, ao exibir sua cara de louco. Todos os professores e alunos o conheciam.
 
Uma das disciplinas do segundo ano era Mecânica Racional, matéria insuportável e difícil pra caramba. O catedrático era um sujeito seco, mal humorado e com alma de carrasco. A avaliação era feita com três provas bimensais valendo 20 pontos e uma final valendo quarenta. Para ser aprovado o aluno precisava totalizar 60 pontos. Se conseguisse fechar as três provas bimensais, não precisaria encarar a prova final. As questões eram tão difíceis que 70% dos alunos não conseguiram a nota mínima, sendo despachados para a segunda época ou dependência.
 
Em dias de prova, para evitar que os alunos colassem, os professores assistentes ou monitores já deixavam as provas em filas e carteiras alternadas, tornando impossível qualquer conversa.  Essa era a barreira a ser transposta pelo aloprado Fico. Ele ficava sentado na primeira carteira da primeira fileira, ao lado da porta. Na primeira distração do monitor ele saia da sala e ia resolver as questões com alunos mais velhos, que já o aguardavam do lado de fora. Como as provas eram muito difíceis, a maioria dos alunos só entregava mesmo no final, quando o monitor já ameaçava não aceitar provas entregues depois do horário. Esse era o momento esperado pelo Fico. Naquele abafa todo, ele chegava e entregava a prova resolvida.
 
Na primeira prova tirou 20 em 20. O mesmo aconteceu com a segunda prova. Só faltava a terceira para se livrar daquela matéria. Mas aquelas notas não passaram despercebidas pelo catedrático. No dia da terceira prova quem ficou na sala do Fico tomando conta foi ele, o carrasco, o próprio catedrático. Resultado: zero pontos, prova final e segunda época ou dependência.
 
Por incrível que pareça esse louco conseguiu se formar e ser admitido como engenheiro na mesma construtora onde trabalhei. Foi despachado para uma obra de terraplenagem no interior. Vivia com o walkie talkie na mão chamando os outros engenheiros de “boca de égua”. Um dia um dos encarregados o procurou para tirar uma dúvida e recebeu esta resposta (contada pelo próprio Fico):
- Se você, puta velha, não aprendeu isso até hoje não sou eu quem vai te ensinar! (claro, ele também não sabia!).
 
Para finalizar, um caso bem no estilo hardcore, contado às gargalhadas por um dos diretores da empresa. Segundo ele, o vice-presidente da empresa, um senhor seríssimo, velhinho, verdadeiro gentleman, sempre de terno, sempre afável, resolveu visitar a obra onde o Fico estava lotado. Lá pelas tantas, a bexiga deu sinais de que precisava de atenção.
 
Indicaram para ele um sanitário feito de tábuas, verdadeiro muquifo, bem no meio do nada. As paredes internas da "casinha" eram cobertas com fotos de mulheres nuas e a porta não fechava direito. Estava ele lá se aliviando, quando o aloprado Fico enfiou a cabeça pela porta entreaberta e cinicamente perguntou:
- Aí, Dr. Fulano! Batendo uma punhetinha?

segunda-feira, 24 de março de 2025

ENTRE O BOM HUMOR E A RABUGICE

 
Há muito tempo eu proclamo aos cinco ventos (eram quatro, mas a inflação está muito alta!) minha condição ou característica de ogro mal-humorado. Às vezes me pergunto se essa autoanálise é verdade ou se é só mais um dos muitos equívocos que cometi “nesta longa estrada da vida” (até parece que eu curto música breganeja!). Talvez eu seja mesmo, talvez só uma parte do tempo ou apenas uma parte de mim. Já ouvi alguém dizer que o bom humor e a rabugice não são opostos, são irmãos siameses. Não entendi a mensagem, mesmo gostando da frase. Gêmeos? Acho difícil engolir isso, mesmo sendo geminiano.
 
Mas, olhando-me no espelho embaçado da minha mente, talvez eu seja isso mesmo, um híbrido de rabugento e bem-humorado. E explico por quê. Um sujeito que pede para que seu ex-colega nunca o visite só pode ser um ogro mal-educado (e eu fiz isso recentemente!). Por outro lado, uma das coisas de que mais gosto é tentar fazer as pessoas rir com minhas piadas de quinta série e comportamentos constrangedores e sem nenhum filtro.
 
Na prática, o que eu gosto mesmo é de rir, rir de tudo, dos outros, das crenças, da vida e, principalmente, de mim. Como escrevi recentemente, eu sou super bem-humorado, mas de um jeito muito incorreto politicamente, pois acho graça e vejo humor em todos os lugares, até mesmo em velório (excelente oportunidade para contar piadas para parentes e amigos que não vejo há muito tempo). Talvez isso seja apenas outra manifestação da minha falta de educação.
 
Segundo o dicionário do Aurélio, rabugento é alguém que se queixa de tudo, reclama contra tudo, é impertinente, ranzinza ou ranheta. E ensina que ranzinza é sinônimo de birrento, teimoso, zangado, mal-humorado. Talvez eu possa dizer que não sou rabugento, apenas depressivo. Depressivo e impaciente. Acho que esse é o problema: eu tenho dois comportamentos distintos, como se tivesse dupla personalidade. Por isso eu gosto de fazer piadas sendo eu a vítima, assim ninguém se ofende.
 
Talvez a melhor definição que fiz de mim mesmo seja esta, colocada na boca do personagem Odorêncio em um conto que escrevi (e que está publicado no baratíssimo e-book “Meu nome é Ricardo”): Sinto-me como se fosse o resultado de um projeto ambicioso que não deu certo, seja por defeito de concepção, seja por erro de dimensionamento, talvez pela má qualidade dos materiais empregados ou por falhas no processo produtivo ou, até mesmo, por vícios de utilização.
 
Acho que é isto: apesar de me considerar a última azeitona da empada, falo mal de mim quando estou sério ou fazendo palhaçadas. Um bobo da corte cínico e sarcástico que tenta ser engraçado, mas que ri intimamente de quem tenta fazer rir. Rabugento ou bem-humorado?

 

domingo, 23 de março de 2025

BARBAS DE MOLHO


De janeiro de 2025 até hoje, 248 famosos faleceram. Na faixa dos "seventie" foram 53 (inclusive o grilleiro George Foreman). Hoje tenho 74 anos e creio que preciso deixar minha barba crescer até ficar no padrão "Marreta". Para quê? Oras, para colocá-la de molho! Mas não estou querendo insinuar nada, está entendendo?


SEM TÍTULO - AUTOR DESCONHECIDO

 
Às vezes eu me sinto psicografado quando leio um texto ou poesia que “cabem tão dentro de mim, que perguntar carece: como não fui eu que fiz?” Estes versos são da música “Certas Canções”, composta pelo Tunai (irmão do João Bosco) e Milton Nascimento. E foi isso que aconteceu ao ler este texto em um jornal de bairro (que tentei transformar em poema, mas não ficou bom). Infelizmente, não sei o autor.
 

Eu tinha dezessete, talvez dezoito. Idade de querer muito, e saber pouco o que fazer com isso. Foi nos bailes de carnaval que ela apareceu, leve como uma marchinha lenta, com um sorriso que não pedia nada — só presença.
Brincávamos juntos, mão no ombro, mão na cintura. Abraço de fantasia, que por dentro era desejo, por fora, contenção. Nunca passou disso. Talvez por causa do pai dela, que comandava a banda com mãos firmes e olhos atentos. Ou talvez porque eu era só um menino escondido atrás da própria timidez. 
Nunca perguntei seu nome. Nunca pedi pra ir à sua casa. Nunca soube onde morava, Só a via ali, duas ou três vezes por ano entre confetes e luzes coloridas, no exato compasso da música. Um dia, isso não mais aconteceu. Não sei se fui eu que deixei de ir, ou se o pai dela trocou de clube, ou se a vida saiu pela porta de emergência sem avisar. 
Hoje, quando toca Máscara Negra, num radinho esquecido ou no fundo da memória, me volto pra aquele salão, aquele abraço, aquela ausência de palavras. Sinto saudade dela. Mas mais ainda, sinto saudade de mim — daquele rapaz que, mesmo sem saber, já estava dançando com o tempo.

sexta-feira, 21 de março de 2025

GOTA D'ÁGUA

 
Tenho andado com um nível de stress e esgotamento mental tão elevados que tudo tem tomado uma dimensão diferente do que aconteceria em épocas mais amenas. Por isso, ao ler um comentário ironizando e duvidando de meu comportamento “moderado”, não consegui deixar de ficar aborrecido, pois estou na linha da letra do Chico: “qualquer desatenção, faça não, pode ser a gota d’água”.
 
Mas sou um cara educado, pouco afeito a “entrar em bola dividida”. Por isso, resolvi (re)escrever esta reflexão, lembrando a frase equivocadamente atribuída a Voltaire: “Não concordo com uma palavras do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-las". E é aqui que começa a reflexão.
 
 “A virtude está no meio do justo equilíbrio entre os extremos”. Quem disse isso foi Aristóteles, “o ser humano mais importante que já viveu”, na opinião do filósofo britânico John Sellars.
 
Alguém aí notou que estou falando de moderação e bom senso, de equilíbrio e respeito à diversidade de opiniões? Pois é. Sempre me causam perplexidade os comportamentos viscerais, as certezas absolutas e as verdades imutáveis. Eu sei que o mundo ideal seria mais simples se fosse como um sistema binário onde só existissem “sim” ou “não”, “zero” ou “um”. Mas o mundo não obedece à mesma lógica usada na construção de computadores. Além dos previsíveis “sim” e “não”, o mundo real abriga também o “talvez”, o “nenhuma das opções apresentadas”.  Como disse o Vinicius de Moraes, “a vida não é brincadeira, amigo”. A política e as ideologias surgidas mostram exatamente isso: não há certezas absolutas.
 
Talvez o leitor ou leitora com os olhos já fechando de sono se pergunte onde quero chegar com esta gororoba sem sal, mas vou agora subir um pouco o tom. Sempre fico puto, triste, ofendido ou decepcionado quando ridicularizam minha postura moderada, quando me acusam de "duplipensar" ou duvidam da minha isenção com base apenas na própria visão estreita.
 
Para começo de conversa (na verdade, já estou no meio dela), Não sou personagem orwelliano para ficar duplipensando. O que eu sou é cartesiano, penso em módulos, não misturo conceitos. Quando eu digo que vejo pontos positivos tanto na ideologia de direita quanto na de esquerda, isso não significa que aprovo as duas visões sobre um mesmo assunto ou tema. Já fiz até um check-list, um quiz para avaliar o perfil ideológico dos leitores. Quem se interessar em conhecer, o link é este:
https://blogsoncrusoe.blogspot.com/2017/03/o-quiz-que-eu-quis-postar-no-facebook_11.html
 
Maaasss, voltando à minha doutrinação/pregação, repetirei pela milésima vez que me considero de centro. E me orgulho disso. A título ou guisa de piada, diriria que sou radicalmente moderado. O significado deste posicionamento é odiar igualmente tanto a extrema esquerda quanto a extrema direita.

Já li em algum lugar que a moderação política, entendida como a busca por equilíbrio e ponderação, não é um defeito. Pelo contrário, é uma virtude essencial para o funcionamento de uma democracia. A moderação permite o diálogo entre perspectivas opostas, promovendo a compreensão e a construção de consensos.

Infelizmente, a a prática política atual está marcada pela polarização. Assumir uma postura moderada exige inteligência e até coragem, pois implica questionar as próprias convicções e buscar entendimento em meio a opiniões divergentes. Para mim, essa abordagem favoreceria um ambiente político mais saudável, centrado na resolução de problemas e no bem comum, e não na imposição dessa ou daquela ideologia.
 
Isso não significa falta de princípios ou indecisão. Pelo contrário, o significado disso é conseguir reconhecer a complexidade dos problemas sociais e suas múltiplas perspectivas, evitando extremos que geram divisão e conflito. Assim, a moderação política contribui para a estabilidade e a eficácia das instituições democráticas.
 
Na época de eleições muitas vezes eu me vi diante da pior situação para quem se recusa a anular o voto ou abster-se de votar: dois candidatos disputando a mesma vaga e eu tendo severas restrições a ambos. Mesmo assim, sempre procurei escolher o menos pior entre o ruim e o péssimo. Aparentemente isso não entra na cabeça dos bitolados ou extremistas radicais, provocando críticas e até ofensas quando defendo em quem votei, não por ser bom, mas por ser justamente o menos pior.
 
Para encerrar esta gororoba, alimentei o ChatGPT com minhas ideias e pedi para escrever um texto sobre essa situação. E saiu isto (e eu, obviamente, assino embaixo):
 
Há momentos em que a vida não nos concede o luxo da neutralidade. Diante de uma encruzilhada, não há espaço para "nenhuma das respostas". É sim ou não. Escolher ou ser escolhido.
A política, especialmente em eleições polarizadas, expõe esse dilema com crueldade. Quando há apenas dois candidatos e severas restrições a ambos, a abstenção pode parecer uma saída honrada, mas é, na prática, um voto indireto para quem menos nos agrada. Entre o ruim e o menos pior, a escolha não é sobre entusiasmo, mas sobre danos minimizados.
Os que compreendem isso sabem que a realidade não pede perfeição, pede decisão. Preferências ideais são um luxo; na arena política, trabalha-se com o possível. No fim, quem entende essa lógica não vota com paixão, mas com consciência – ciente de que, mesmo na falta de um bom caminho, há sempre um que leva a um desastre menor.
 
E para aqueles que já me chamaram de isentão, deixo um recado final, escrito com uma elegância fleuma próprias da realeza britânica: isentão é a puta que pariu! (e não pretendo mais perder meu tempo com debates de "soma zero"). Fui.

quinta-feira, 20 de março de 2025

LETRAS DOURADAS

 
Talvez eu sempre tenha tentado
Dizer o indizível,
Decifrar o indecifrável,
Definir o indefinido,
Controlar o incontrolável.
 
Talvez por isso eu queira decidir
O que fazer enquanto posso,
Enquanto ainda não pensem
Em decidir por mim.
 
E resolvi deixar instruções,
As últimas instruções
Sobre meu legado,
Sobre o que pensei,
Sobre o que sonhei.
 
Em primeiro lugar, descartem
As certezas absolutas,
Pois a ninguém servem
As certezas de outrem.
 
Mas guardem bem guardadas
Minhas dúvidas e incertezas.
É bom que todos saibam:
Minhas dúvidas nunca foram esclarecidas,
Apenas por outras substituídas.
 
Cartas e bilhetes de amor devem ser
Queimados, jamais lidos, jamais guardados.
Que se decrete sigilo de cem anos
Para as paixões secretas,
Pois paixões secretas só interessam,
Só dizem respeito a quem as teve.
 
Estas instruções devem ser impressas
Em papel pergaminho, com letras douradas,
E, em seguida, incineradas,
Para que ninguém nunca saiba ou se lembre
Das minhas últimas instruções,
Das últimas instruções que foram dadas.

quarta-feira, 19 de março de 2025

JABUTI

 
Estou pensando encaminhar um pedido aos mantenedores do Dicionário do Houaiss, para que incluam na próxima edição três vocábulos de grande interesse e elevado significado para o mundo da blogosfera. Fala sério, são ou não são perfeitos? Olhaí.
 
Blogoterapia
Substantivo feminino, aglutinação das palavras blog mais terapia. Utilizado para identificar o papel catártico de textos confessionais publicados em blogs autorais.
 
Blogoteca
Substantivo feminino, aglutinação das palavras blog mais biblioteca. Utilizado para identificar e demonstrar o papel de arquivo diferenciado que um blog pode ter ao reunir rascunhos e textos publicados, autorais ou não, que se pretenda servirem de consulta futura ou apenas auto-deleite do titular do blog.
 
Blogagem
Substantivo feminino, aglutinação das palavras blog mais bobagem. Utilizado para designar todas as idiotices (são muitas) publicadas em blogs, por pessoas que acreditam ser merecedoras do Nobel de Literatura ou, no mínimo, do Prêmio Jabuti.
 
Sei não, bateu agora a sensação de que mereço um Jabuti pelo meu conjunto da obra (e como eu já obrei neste blog!)

terça-feira, 18 de março de 2025

NUNCA É TARDE PARA MUDAR DE OPINIÃO

 
Já mencionei aqui que o cantor e compositor Guttemberg Guarabyra é meu mais recente “amigo de Facebook”. Na prática, isso significa que nunca vamos nos conhecer pessoalmente – afinal, há uma diferença abissal entre nossos perfis. Ele é famoso, eu sou um completo desconhecido; ele tem 4,6 mil amigos, enquanto eu me contento com meus modestos 162 (e já acho muito!).
 
Mesmo assim, é uma alegria tê-lo como “amigo”, porque ele compartilha coisas realmente interessantes, bem diferentes das fotos de bichinhos e orações que muitos amam replicar. A postagem mais recente que vi é um artigo que vale a pena ser compartilhado aqui no blog – mesmo que só umas dez pessoas acessem esta bagaça. O tema? Feminismo. É um texto sobre feminismo, tema que talvez cause horror aos machões das antigas. Mas nunca é tarde para mudar de opinião. Lêaí: 

Texto da professora Ruth Manus

Semana passada fui dar aula sobre assédio sexual num curso de pós graduação em São Paulo. Cheguei na sala, composta predominantemente por advogados, e perguntei: “Quem aqui se considera feminista?” Silêncio. Uma moça levanta timidamente o braço. Dois ou três caras fazem comentários baixinho e riem.

Disse: “Ok. Vou fazer duas leituras rápidas para vocês". Continuei.

“Dicionário Houaiss da língua portuguesa: FEMINISMO: teoria que sustenta a IGUALDADE política, social e econômica de ambos os sexos.

Dicionário Jurídico da Professora Maria Helena Diniz: FEMINISMO: movimento que busca equiparar a mulher ao homem no que atina aos direitos, emancipando-a jurídica, econômica e sexualmente.”

Esperei um pouquinho e mudei a pergunta: “Quem aqui pode me dizer que NÃO se considera feminista?” Ninguém levantou a mão.

Pois é. Tenho a sensação de que 99% do mundo não entendeu até agora o que é feminismo, porque se as pessoas entendessem, quase todo mundo teria orgulho de se dizer feminista.

Não vou perder tempo aqui dizendo que feministas não são mulheres que não se depilam, não usam soutien e não transam. Primeiro porque ser feminista não tem a ver com ser mulher, tem a ver com ser humano. Segundo porque nunca entendi que raio que os pelos têm a ver com posicionamentos ideológicos. Terceiro porque soutien serve para sustentar peitos, não para sustentar ideias. E quarto porque eu já vi gente deixar de transar por causa da igreja, por causa de promessa, por falta de opção, por infecção ginecológica, problemas de ereção… Mas por feminismo nunca vi. Alguém já viu?

Enfim, acho que ser feminista não é bom ou ruim. Ser feminista é NECESSÁRIO.

Uma vez ouvi uma amiga dizer “a mulher que diz que nunca foi discriminada é apenas uma mulher muito distraída”. É simples assim. Não precisamos ir até o Oriente Médio. Não precisamos ir até tribos africanas. Não precisamos ir ao sertão do nordeste. Não precisamos ir até a periferia de São Paulo. Não precisamos sair dos nossos bairros. O machismo que limita, que agride, que marginaliza, que ofende, que diminui, mora ao lado, dorme por perto.

E agora, quem poderá nos defender? O FEMINISMO.

O mesmo feminismo que nos tornou civilmente capazes e independentes perante a lei. O mesmo feminismo que nos possibilitou votarmos e sermos votadas. O mesmo feminismo que segue lutando diariamente por uma sociedade mais justa para mulheres, homens, mães, pais, filhas, filhos, trabalhadoras e trabalhadores.

No século XIX, as brilhantes irmãs Brontë escreviam através de pseudônimos masculinos por saberem que suas obras não seriam aceitas na sociedade se soubessem que as autoras eram mulheres. Se não fosse o feminismo eu provavelmente também não estaria escrevendo aqui neste momento. Pelo menos não como Ruth.

O feminismo não é de esquerda nem de direita. Não é só para mulheres nem é só para homens. Não é ameaça. Não é um estranho.

Mas perceba que quando você trata os feministas na terceira pessoa do plural, excluindo-se deste rol, você está afirmando não fazer parte do grupo que prega a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. Pense bem de que lado você quer estar.

Se você percebeu que é feminista, fique tranquilo. Nós não contaremos para ninguém. Mas, sabe? Se eu fosse você, eu sairia contando para todo mundo. Porque ser feminista é lindo, é importante, é sinal da INTELIGÊNCIA e da DECÊNCIA de qualquer ser humano. Como diz o lindo livrinho da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (leiam, ele é pequenino e indispensável): Sejamos todos feministas. E o mundo será melhor a cada dia. Pode apostar.

 

 

domingo, 16 de março de 2025

AVISO AOS NAVEGANTES - A MARRETA DO AZARÃO

 
O primeiro navegante a embarcar na canoa furada que é o Blogson, atende pela alcunha de Azarão e é o titular plenipotenciário do blog A Marreta do Azarão. Por evitar a todo custo cruzar com um gato preto (eu sou hetero, pô!), ou passar debaixo de uma escada (risco aumentado se no alto dela estiver um pintor com uma lata de tinta), nunca me senti à vontade para chamá-lo de Azarão, pois imagino que isso dê um azar danado. Por isso, para mim, ele sempre foi o Marreta. Tempos depois, descobri que seu nome de batismo é Ricardo (na sauna que ele frequentava em sua época de solteiro é conhecido por Ricardinho).
 
Pois bem, o Marreta e eu temos uma longa e quase sempre civilizada convivência, pois já fiquei puto com ele algumas vezes e ele já deve ter feito muito beicinho pelas coisas que leu aqui no blog. Apesar disso, tenho por ele uma simpatia natural, uma coisa de irmão mais velho, que me faz relevar as grosserias de que já foi capaz. E o principal motivo é a admiração que tenho pelo senso de humor, irreverência, ironia e sarcasmo que circulam por suas véias (embora ele seja monogâmico). Se ele não tivesse essas qualidades já o teria mandado à puta que pariu há muito tempo.
 
Pois bem, estava no meu tempo disponível para coçar saco (dois minutos e trinta segundos), quando resolvi reler sua declaração de princípios, meios e afins, o texto “Aviso aos Navegantes”. E esse texto mostra por que continuo lendo as tranqueiras que um direitista radical escreve e publica em seu blog ou quando resolve encher meu saco ao fazer algum comentário irritante aqui no Blogson (mas só ele merece essa deferência). Então, se quiserem, leiam um trecho do texto escrito por ele e que eu poderia tranquilamente assinar embaixo.
 
Os textos aqui publicados são exercícios de livre-pensamento. Melhor, são tentativas, experimentações de livre-pensamento. Bem-sucedidas, às vezes; malfadadas, quase sempre, como toda e qualquer experimentação, como toda e qualquer tentativa de romper e expandir com o estabelecido.
 
Não querem, de forma alguma, os textos, se fazer passar por fatos, tampouco se colocarem ou se estabelecerem como verdades. São tão somente elucubrações de cunho jocoso, considerações irônicas acerca do comportamento humano.
 
E não há distinção quanto ao tema ou ao assunto tratado, não há nenhum tipo de direcionamento: tudo aqui é posto sob a óptica da ironia; há muito de autoironia, inclusive. A ironia, segundo minha opinião – e você não é obrigado a compartilhar dela, aliás, nem espero que –, é a forma mais libertária de análise e pensamento, é a forma mais isenta de tentar entender a grande piada que é o mundo, e também a nós, seus personagens risíveis, que nos damos alta e indevida importância.
 
Caso você seja um semiletrado, alguém sem grandes intimidades com a caneta, o que estou, basicamente, a dizer é que não há intenção de depreciar ou incitar violência contra quaisquer grupos ou segmentos sociais.
 
Assim posto, se você é submisso às certezas preestabelecidas, se você é servo de convicções engessadas, lacaio de doutrinas pétreas, escravo de pragmatismos e dogmatismos – sejam de que ordem forem, políticos, religiosos, filosóficos, sociais, étnicos, sexuais etc. –, seu lugar não é aqui.
 
Há bilhões de outros endereços na internet que podem melhor lhe agradar, você não é obrigado a ficar por aqui. Se você está à procura de fatos e de "verdades" que confirmem e reconfortem sua visão tradicional do mundo, repito, seu lugar não é aqui; dirija-se ao site de algum jornal, ou revista semanal de variedades.
 
 

sexta-feira, 14 de março de 2025

MUITO CUIDADO, O HOMO VEM AÍ

 

- PMs matam colombiano em surto e combinam versão para boletim de ocorrência

- Mulher se agarra a para-brisa de carro em movimento para tentar impedir marido de fugir com filha em MT

- Lula diz que escolheu 'mulher bonita' para ter boa relação com o Congresso

- Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA, na sigla em inglês), revoga regras sobre mudanças climáticas

Quando leio notícias como estas, fico pensando no motivo que levou os Neandertais à extinção. Não creio que tenha sido a seleção natural, o clima ou a competição por recursos. Para mim, foi azia, uma monumental e asfixiante azia que os atingiu ao manter contato com os homo sapiens sapiens.

quinta-feira, 13 de março de 2025

SOBRADINHO – SÁ, RODRIX E GUARABYRA

 
Na década de 1960 li na revista Seleções uma daquelas reportagens de provocar comichão no cérebro: dois gigantescos templos da época dos faraós estavam sendo ou seriam transportados para novo local por conta da construção da barragem de Assuã. Se isso não fosse feito, os magníficos monumentos ficariam submersos quando as águas do lago chegassem a seu nível máximo de projeto. Até onde me lembro, os templos foram cortados em vários pedaços, devidamente numerados e identificados para sua remontagem no novo local.
 
O remanejamento de relíquias milenares não provoca maior comoção, pois não há ninguém para lamentar a perda de seu local de nascimento ou destruição de cemitérios e templos. Por isso, não dá para fazer resorts em locais destruídos por bombas e que eram habitados e ocupados há milênios por uma população que agora querem remover sem se preocupar com a destruição de seus vínculos emocionais e religiosos, se me entendem.
 
Mas, a coisa pode mudar de figura como aconteceu no caso da construção da represa de Assuã. No Brasil, quando resolveram construir a hidrelétrica de Sobradinho verificou-se que o enchimento progressivo do lago que iria se formar simplesmente “afogaria” alguns municípios existentes. Para resolver o problema, construíram novas cidades para abrigar a população desalojada. E esta é a história de hoje.
 
Em post recentíssimo (nunca sei a ordem que escolherei para minhas publicações) mencionei ter-me tornado “amigo de facebook” do cantor e compositor Guttemberg Guarabyra, um dos expoentes do que  alguém resolveu chamar de “rock rural”. Talvez por isso sua fama não seja tão grande quanto a de seus conterrâneos baianos ou de artistas como Chico Buarque. Bom, esta é minha opinião.
 
Por isso, resolvi apresentar meu “amigo” a quem ainda não o conhece (embora existam no Blogson pelo menos duas de suas composições – a sofisticada “Margarida” e “Hoje ainda é dia de rock” – ambas excelentes.
 
A música de hoje é “Sobradinho”, gravada na época em que Guarabyra formava um trio com Luis Carlos Sá e o finado Zé Rodrix. Eu adoro essa música (e um dos motivos é porque consegui "tirá-la" no violão sem ajuda externa). Ela representa bem a marcha "inexorável" do progresso, pois fala da hidrelétrica de Sobradinho e das cidades inundadas durante a formação do lago da barragem.
 
Na época em que ouvi a música, achei curiosos os nomes dos municípios "afogados": Pilão Arcado, Remanso, Sento-Sé, Casa Nova e Sobradinho. Depois da barragem pronta, olhei o mapa e lá estavam aqueles nomes, identificando as cidades recriadas em outro lugar. 
 




 

quarta-feira, 12 de março de 2025

CORRE, COELHO!

 
Ontem, às quatro da madrugada, levantei-me para lavar vasilhas. Por que fiz isso? Porque me sinto cada vez mais como o coelho de Alice no País das Maravilhas: sempre com pressa, sempre com uma sensação de urgência, sempre com a sensação de que não tenho mais tempo a perder – pois meu tempo está se acabando.
 
Pensei nisso depois ter lido ontem a notícia do falecimento de um político que conheci na juventude, quando ele era apenas um estudante de engenharia e sobrinho de meu chefe. Morreu com 71 anos, vítima de doença degenerativa que já vinha sofrendo, agravada por uma pneumonia.
 
Era ou ficou rico, construiu prédios, elegeu-se prefeito da cidadezinha onde nasceu, foi deputado federal e depois ministro de estado. Por eu ter saído da empresa onde seu tio trabalhava, só fiquei sabendo disso pelo noticiário dos jornais.
 
E morreu com 71 anos. Não é comum quando alguém morre com cinquenta, sessenta anos, o normal é quando não se morre nessa faixa etária. A situação se inverte quando se passa dos setenta anos, pois passam a serem normais as notícias de falecimento de pessoas que você conheceu ou acompanhou a trajetória de vida.
 
O normal após os setenta é perceber ou pressentir a aproximação da morte – sua ou de conhecidos. Por isso, é que me identifico com a correria do coelho de Alice, sempre apressado, sempre dizendo “– Ai, ai! Vou chegar atrasado!”. Mas, para ser sincero, prefiro chegar atrasado que adiantado ao meu destino final.

terça-feira, 11 de março de 2025

MEMÓRIAS JUVENIS DE TEMPOS SOMBRIOS - PARTE 2

Gás Lacrimogêneo
Foi em 1969, quando estava fazendo curso preparatório para o vestibular da UFMG, que conheci o gás lacrimogêneo, ou melhor, os efeitos dele. O cursinho (que depois se transformou na maior empresa da área educacional do Brasil) funcionava em um sobrado antigo localizado nos limites da área central e a uma quadra da Faculdade de Direito da UFMG, outro “ninho” de manifestantes contra o regime. Para pegar o ônibus, eu precisava passar na região onde as manifestações eram mais exaltadas e barulhentas. E a reação da polícia mais intensa. Foi assim que senti o cheiro irritante (no sentido literal) de gás lacrimogêneo utilizado para dispersar manifestações.
 
- O DOPS
Para mim, o DOPS - Departamento de Ordem Política e Social era a única face conhecida dos órgãos de repressão policial, pois nem sonhava com a existência de endereços clandestinos onde os presos eram “moídos” por sádicos e psicopatas. Em BH, o prédio ficava dentro da área delimitada pela Avenida do Contorno, em um cruzamento de avenidas um pouco afastado do centro. A entrada ficava na principal avenida de BH. Quando, por qualquer motivo, tinha de passar perto daquele lugar sinistro de tantas histórias macabras já ouvidas, eu preferia atravessar a avenida e passar do outro lado, pois cagava de medo de alguém me abordar. Um desses casos escabrosos era sobre o interrogatório de um estudante universitário, que depois de negar dezenas de vezes a acusação de ser comunista, acabou se cansando e dizendo que era comunista.
- E por que você é comunista?
- Porque meu pai é comunista, meus vizinhos são comunistas, meu cachorro é comunista...
- Ah é? E se sua mãe fosse puta, o que você seria?
- Eu seria agente do DOPS.
Dizem que teria sido tão espancado que ficou retardado. Embora seja um bom retrato da época, duvido de sua veracidade. Quem teria tornado pública essa história? O preso? O policial? Ninguém?
Foi nessa época em que fiquei sabendo da prisão e exílio de músicos, atores, jornalistas e todo tipo de gente que tinha a audácia de escrever, compor músicas ou encenar peças que contivessem críticas aos detentores do poder.
 
- Convocação
Em 1970 aconteceu um caso engraçado. O presidente Medici pediu para que o Dario, artilheiro do Atlético mineiro, fosse convocado para a seleção que disputaria a copa do mundo no México. O técnico João Saldanha recusou, pois, apesar de goleador, o Dadá Maravilha era considerado perna de pau. Resultado: o Saldanha perdeu o posto de técnico da seleção e o Dario foi convocado. Mas como era reserva do Pelé, não jogou nem meio minuto.
 
- Jornaleco Filho da Puta!
O Pasquim era um jornalzinho semanal da imprensa alternativa, que chegou a vender mais de 200.000 exemplares por tiragem. Fazia oposição aberta à ditadura militar, mas usando o humor e o sarcasmo para driblar a censura. Suas sátiras políticas acabaram provocando a prisão no final de 1970 de praticamente todos os colabores. Apesar disso (e provável desgosto e irritação dos militares), continuou a ser vendido, tendo Millôr Fernandes como editor e a colaboração de artistas, cartunistas, escritores e intelectuais de todo tipo. Seu sucesso incomodou tanto o regime que grupos de extrema-direita partiram para a destruição de bancas de revistas que o vendiam, numa tentativa destemperada de quebrar financeiramente o jornal e de calar a oposição.
 
- Atentados a Bomba
Uma das coisas mais odiosas promovida pela ala mais radical da ditadura foi o uso de explosivos para silenciar os opositores do regime. Apesar da truculência própria dessa atitude, os atentados usavam métodos sofisticados. Um deles foi a utilização de cartas-bomba. Uma delas, endereçada ao presidente da OAB do Rio de Janeiro explodiu nas mãos de sua secretária, que veio a falecer.
 
- Queimando Bancas de Revista
Lá pela década de 1980, em uma das empresas onde trabalhei, fui colega de um senhor idoso, afável e muito simpático, tratado por todos como “Major”, sua última patente militar antes de ser reformado. Puxa-saco juramentado que sou, chamava-o de “Coronel”, patente adquirida automaticamente após a reforma.
Apesar da afabilidade e modos corteses, mantinha sobre sua mesa a guisa de peso de papeis, um protótipo de sua autoria (segundo ele!) para uma granada de mão – na prática, um cilindro de ferro oxidado de uns doze centímetros de altura e sete de diâmetro, oco por dentro, todo ranhurado externamente e com tampa de rosca – e pesado pra caramba. Buona gente, já se viu. Tinha trabalhado na área de inteligência do exército e foi ele que me contou esta história.
Com o objetivo de impedir a propagação de reportagens e artigos contra o regime, grupos radicais realizaram mais de 30 atentados contra bancas de jornal que vendiam publicações contra o regime. E as bancas, sem que ninguém soubesse como, começavam a pegar fogo e ficavam destruídas. Segundo o então major, ele foi designado com outras pessoas para descobrir o que estava acontecendo. Depois de algum tempo e provável interrogatório de prováveis autores, chegaram à conclusão de que o artefato incendiário (fabricado por quem entendia do assunto) era feito de alguma substância explosiva ao entrar em contato com o ar, envolta em cera de abelha. Colocadas sobre o telhado das bancas ou locais estratégicos, ficavam “hibernando” até que a cera fosse derretida pelo calor do sol. E o bicho então pegava. Infelizmente não me lembro dos detalhes corretos contados com um sorrisinho malicioso nos lábios, mas é algo assim.
 
- Inseguro
Em resumo, mesmo continuando anticomunista, mesmo sendo super inofensivo e inocente, mesmo podendo andar “em segurança” pelas ruas, eu me sentia como o protagonista do livro 1984, pois tinha mais medo da polícia que de eventuais bandidos.
Talvez tenha sido nessa época que comecei a perceber que se havia radicalismo extremado tanto na esquerda quanto na direita, também poderia existir moderação, uma "esquerda boa" e uma "direita boa". Talvez tenha sido a partir daí que eu entendi ser a “pista do meio” o melhor lugar para mim. E estas lembranças de tempos sombrios agora chegaram ao fim. 
 

segunda-feira, 10 de março de 2025

MEMÓRIAS JUVENIS DE TEMPOS SOMBRIOS - PARTE 1

Aproveitando a luz dos holofotes que o filme "Ainda estamos aqui" jogou sobre uma das tragédias que aconteceram nos chamados "porões" do regime militar, resolvi contar minhas lembranças sobre aquela época sinistra. Creio já ter escrito algo sobre isso aqui no blog, mas não consegui localizar. Por isso, aí vai mais uma peça de lego do meu quebra cabeça particular. E vou começar com um caso provocado pelo auê em torno do filme do Walter Salles. Bora lá.
 
Há alguns dias tomei conhecimento de um diálogo entre duas senhoras idosas (provavelmente na minha faixa etária), em que uma delas, irritada com a excessiva badalação do filme, disse não ter havido tortura no Brasil, que isso não tinha acontecido. A amiga, puta da vida, reagiu asperamente:
- Fulana, como você pode mentir assim? Você deve se lembrar de que todos os dias nós duas passávamos ao lado do DOPS e muitas vezes ouvimos os gritos de presos sendo torturados! A quem você quer enganar?
E a amiga apenas abaixou a cabeça em silêncio.
 
Agora, voltando no tempo: nasci em junho de 1950, o que significa que tinha treze anos quando aconteceu o golpe militar (que minha família ultra católica apoiou, diga-se). Mesmo assim, apesar de favoráveis ao pé na bunda do Jango, ninguém ficou vacilando. Lembro-me nitidamente de meu pai nos dizendo para nunca falarmos com estranhos nem para comentar nada sobre o momento político/policial em que vivíamos.
 
Por ter sido criado nessa família conservadora, ultra católica e de direita, desde sempre eu fui anticomunista - mesmo que nem soubesse exatamente o que isso significava. E, para que fique registrado, continuo sendo. Mas, naquela época e com toda aquela juventude, “Esquerda” para mim era sempre sinônimo de “comunismo”. Apesar disso e graças aos governos militares pós 1964, eu nunca me preocupei em rever esses conceitos, justamente por não me interessar por política, um assunto que me orientaram a nunca discutir com ninguém.
 
Talvez por isso, as lembranças que carrego daquela época não tenham densidade suficiente para um roteiro de filme ou história a ser contada. Mesmo assim tentarei resgatar o que minha mente de jovem alienado e medroso guardou. Para isso, darei títulos aos pedaços de memória que consegui recuperar.
 
- Caindo a Ficha
Uma das primeiras coisas que chamaram minha atenção foi o fato de que, de repente, os postos-chave de várias empresas e órgãos públicos eram agora ocupados por pessoas sempre com "tenente", "capitão", "major" e outras patentes antes do nome próprio. Teria sido sempre assim? Obviamente não, mas nunca gastei meu tempo tentando entender isso. Aos poucos, muito devagar, fui percebendo que os militares que tinham livrado o país da ditadura do “comunismo ateu” apenas criaram outra forma de ditadura, pois perseguiam, puniam e até torturavam quem se atrevia a manifestar-se contra o governo.
 
- Sete de Setembro de 1965
Um evento que até mereceu um post nesta bagaça foi a participação de TODOS os colégios de BH no glorioso desfile de sete de setembro de 1965. E o motivo do post foi eu ter esfolado os dedos dos pés em um par de sapatos usados e um número menor do que usava, descartado por um de meus primos ricos. Para quem se interessar, o título do post é “Prego no Sapato”.
 
- Grade Curricular
Uma coisa que encheu meu saco foi a inclusão de mais uma matéria à grade escolar: a chatíssima “Educação Moral e Cívica”, substituída depois pela igualmente chata “Organização Social e Política do Brasil” – que chamávamos de OSPB. À boca pequena, diziam que um dos professores era dedo-duro do DOPS.
 
- CCC
No início de 1966, ao ser aprovado em processo de seleção, comecei a estudar no Colégio de Aplicação, um colégio espetacular, que funcionava como laboratório de novas técnicas pedagógicas da FAFICH - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. A faculdade ocupava um prédio moderno ao lado do casarão antigo onde funcionava o Aplicação. Para chegar ao colégio, localizado na zona sul, eu tinha de pegar dois ônibus. Nesse trajeto comecei a ver muros pichados com a sigla CCC. Em alguns havia a explicação para essas letras: “Comando de Caça aos Comunistas”. Vendo aquelas pichações comecei a ficar com um pouco de medo, apesar de sempre anticomunista. Pessoalmente eu não tinha nenhum motivo para ter medo, mas tinha.
O Marechal Castelo Branco, primeiro presidente militar pós 1964, disse esta pérola de agudeza política: “Eu os identifico a todos. E são muitos deles, os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do Poder Militar.” Segundo o dicionário, vivandeira é “Mulher que vende ou leva mantimentos, seguindo tropas em marcha". Mas o mesmo dicionário informa o sentido figurado da palavra (e talvez o mais usual). "Vivandeiras" "São políticos e empresários que tentam seduzir os militares para que enveredem nos descaminhos da aventura política”. E esses eram os descaminhos trilhados pelos radicais do CCC e de outros grupos de extrema direita.
 
- O Pau Comendo
Nos anos de 1966 e 1967 eu estudava no turno da manhã. Nessa época a FAFICH era frequente palco de manifestações contra o regime, motivando a presença da Polícia Militar para controlar os ânimos. Eu saia quietinho, sem dar nem um pio, recusando os panfletos que alguns alunos do colégio e da faculdade distribuíam. Pelo medo orgânico sempre sentido e pela total apatia política, jamais participei de manifestações, jamais gritei palavras de ordem contra ou a favor de nada.

 
 
Como este texto está muito grande, será publicado em duas vezes.

DIZEDELAS E GALIMATIAS

  No post-agradecimento “ Meu Desafeto Predileto ” eu publiquei o texto da capa do livro Bíblia do Caos , de Millôr Fernandes. Deu um trabal...