Ao ser admitido na empresa onde vivi os
melhores anos da minha vida profissional, fui designado para trabalhar no departamento conhecido como "Seção Técnica", dividindo uma sala com outro engenheiro. Esse departamento ocupava um andar inteiro do prédio sede e contava com quase trinta profissionais – estagiários, auxiliares técnicos,
administrativos, recepcionista, desenhistas e datilógrafos, além de nove
engenheiros, que o diretor técnico costumava chamar de seu staff.
A maioria desses engenheiros representava a
nata da empresa, com exceção de três – por pouca experiência (eu era um desses)
ou por irrelevância funcional. Um deles era um antigo topógrafo que ralou muito
para formar-se engenheiro agrimensor. Talvez por ser uma espécie de estranho no
ninho – composto majoritariamente por engenheiros civis, mecânicos e elétricos –
era tratado pelos demais com um mal disfarçado desprezo. Provavelmente, essa
seria a explicação para dividir sua sala com um auxiliar técnico (os
engenheiros são muito elitistas) E é desse auxiliar que quero falar.
Jair era um pernambucano mais esperto que
“pulga de hotel”. Provavelmente nem curso técnico tinha, mas era uma espécie de
braço direito do chefe do departamento. Descolado, fazia rapidamente o que lhe
pediam. E, quando ninguém lhe pedia nada, arranjava algo para fazer. Um dia fui
até sua sala e ele estava com a mesa coalhada de caixas box,
que organizava diligentemente. Tirava papéis e pastas de uma, colocava em outra
e, provavelmente, fazia o caminho inverso.
Perguntei o que estava fazendo, e ele sorriu
cinicamente ao confessar o estratagema:
- Quando eu não tenho nada pra fazer, pego umas caixas do
arquivo e começo a organizar. Assim, quem me vê trabalhando não pode me
considerar desnecessário – e não corro o risco de ser dispensado.
Um dia, soube que ele
estava fabricando e vendendo calças jeans femininas. Perguntei da novidade, e
ele me contou. Havia proposto ao chefe do departamento uma sociedade para fazer
pequenos serviços de terraplenagem. A ideia era comprar uma retroescavadeira
usada, para começar. O chefe entraria com o capital, e ele, com a administração
da nanoempresa.
Proposta feita, proposta aceita. Com o aval
do chefe, Jair mergulhou fundo na ideia. Pesquisou marcas, modelos, estado dos
equipamentos à venda, discutiu preços e condições de pagamento.
De posse das melhores ofertas, apresentou o
estudo ao “sócio”. Bastava assinar o cheque (na época era assim). Para seu
espanto e decepção, o chefe disse que havia desistido do negócio. O baque emocional
foi tão grande que Jair saiu de férias, mas não sem antes avisar o colega de
sala:
- Quando eu voltar, vou abrir uma empresa. Nem que seja
aqui em cima deste armário!
E foi o que aconteceu. Ele e a esposa compraram uma calça
jeans de cada tamanho da melhor marca da época. Cuidadosamente, descosturaram
peça por peça e fizeram os moldes. Em seguida, compraram tecido jeans de ótima
procedência, linhas, zíperes, botões e outros aviamentos. Faltava apenas a mão
de obra e o maquinário.
Compraram uma máquina de costura industrial, providencialmente
instalada na casa da costureira contratada. Para evitar desperdício, era a
esposa do Jair que cortava o tecido, levado depois até a favela onde morava a funcionária.
Com as calças prontas, o produto era oferecido a butiques, que colocavam sua
própria etiqueta nas peças.
Quando me contou essa
história, ele já tinha duas máquinas industriais, uma de overloque, uma tesoura
elétrica – e o mais importante: havia comprado um pequeno apartamento na zona
sul.
Mas a vida, às vezes, nos serve uma bebida
amarga. E ela estava sendo servida a todos os funcionários daquela que fora uma
das maiores construtoras do país. Foi então que ouvi de Jair sua história
derradeira.
Contou-me que estava
voltando para Recife. Já havia vendido o apartamento e despachado as máquinas
para sua terra natal. Lamentei a notícia e ele respondeu:
- Esta empresa é a vaquinha. Enquanto as pessoas
continuarem a tomar seu leite e comer seu queijo, nada vai mudar.
Perguntei que maluquice era aquela de
“vaquinha”, e ouvi esta parábola:
- Estavam Jesus e seus discípulos atravessando uma região
desértica quando anoiteceu. Resolveram pedir pouso numa casinha que avistaram
ao longe. Foram bem recebidos pelo morador, que lhes ofereceu leite, manteiga e
queijo, tudo proveniente de uma vaquinha – sua única fonte de sustento.
No dia seguinte, agradeceram, despediram-se e seguiram viagem. Um dos
discípulos sugeriu que Jesus ajudasse aqule homem e fizesse um milagre em retribuição à hospitalidade,
e ouviu: “- Já fiz.”
Tempos depois, ao passarem pelo mesmo lugar, os discípulos viram uma bela
propriedade. Surpresos, pediram pouso novamente e perguntaram ao dono o que
havia acontecido. Ele respondeu: “– No dia seguinte à partida de vocês, minha
vaquinha morreu. E eu tive que trabalhar.”
Com um sorriso nos lábios, Jair concluiu:
- Esta empresa é a vaquinha. Enquanto estivermos
satisfeitos com nossos empregos e salários, não teremos nenhum progresso.
Algum tempo depois, soube que ele já havia conseguido um
contrato para confeccionar fardas da polícia militar. E essa foi a última
notícia que tive dele, pois não demorou para que eu também abandonasse aquele Titanic que já estava indo a pique.
Grande Jair!
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