segunda-feira, 11 de agosto de 2025

PARÁBOLA DA VAQUINHA

 
Ao ser admitido na empresa onde vivi os melhores anos da minha vida profissional, fui designado para trabalhar no departamento conhecido como "Seção Técnica", dividindo uma sala com outro engenheiro. Esse departamento ocupava um andar inteiro do prédio sede e contava com quase trinta profissionais – estagiários, auxiliares técnicos, administrativos, recepcionista, desenhistas e datilógrafos, além de nove engenheiros, que o diretor técnico costumava chamar de seu staff.
 
A maioria desses engenheiros representava a nata da empresa, com exceção de três – por pouca experiência (eu era um desses) ou por irrelevância funcional. Um deles era um antigo topógrafo que ralou muito para formar-se engenheiro agrimensor. Talvez por ser uma espécie de estranho no ninho – composto majoritariamente por engenheiros civis, mecânicos e elétricos – era tratado pelos demais com um mal disfarçado desprezo. Provavelmente, essa seria a explicação para dividir sua sala com um auxiliar técnico (os engenheiros são muito elitistas) E é desse auxiliar que quero falar.
 
Jair era um pernambucano mais esperto que “pulga de hotel”. Provavelmente nem curso técnico tinha, mas era uma espécie de braço direito do chefe do departamento. Descolado, fazia rapidamente o que lhe pediam. E, quando ninguém lhe pedia nada, arranjava algo para fazer. Um dia fui até sua sala e ele estava com a mesa coalhada de caixas box, que organizava diligentemente. Tirava papéis e pastas de uma, colocava em outra e, provavelmente, fazia o caminho inverso.
 
Perguntei o que estava fazendo, e ele sorriu cinicamente ao confessar o estratagema:
- Quando eu não tenho nada pra fazer, pego umas caixas do arquivo e começo a organizar. Assim, quem me vê trabalhando não pode me considerar desnecessário – e não corro o risco de ser dispensado.
 
Um dia, soube que ele estava fabricando e vendendo calças jeans femininas. Perguntei da novidade, e ele me contou. Havia proposto ao chefe do departamento uma sociedade para fazer pequenos serviços de terraplenagem. A ideia era comprar uma retroescavadeira usada, para começar. O chefe entraria com o capital, e ele, com a administração da nanoempresa.
 
Proposta feita, proposta aceita. Com o aval do chefe, Jair mergulhou fundo na ideia. Pesquisou marcas, modelos, estado dos equipamentos à venda, discutiu preços e condições de pagamento.
 
De posse das melhores ofertas, apresentou o estudo ao “sócio”. Bastava assinar o cheque (na época era assim). Para seu espanto e decepção, o chefe disse que havia desistido do negócio. O baque emocional foi tão grande que Jair saiu de férias, mas não sem antes avisar o colega de sala:
- Quando eu voltar, vou abrir uma empresa. Nem que seja aqui em cima deste armário!
 
E foi o que aconteceu. Ele e a esposa compraram uma calça jeans de cada tamanho da melhor marca da época. Cuidadosamente, descosturaram peça por peça e fizeram os moldes. Em seguida, compraram tecido jeans de ótima procedência, linhas, zíperes, botões e outros aviamentos. Faltava apenas a mão de obra e o maquinário.
 
Compraram uma máquina de costura industrial, providencialmente instalada na casa da costureira contratada. Para evitar desperdício, era a esposa do Jair que cortava o tecido, levado depois até a favela onde morava a funcionária. Com as calças prontas, o produto era oferecido a butiques, que colocavam sua própria etiqueta nas peças.
 
Quando me contou essa história, ele já tinha duas máquinas industriais, uma de overloque, uma tesoura elétrica – e o mais importante: havia comprado um pequeno apartamento na zona sul.
 
Mas a vida, às vezes, nos serve uma bebida amarga. E ela estava sendo servida a todos os funcionários daquela que fora uma das maiores construtoras do país. Foi então que ouvi de Jair sua história derradeira.
 
Contou-me que estava voltando para Recife. Já havia vendido o apartamento e despachado as máquinas para sua terra natal. Lamentei a notícia e ele respondeu:
- Esta empresa é a vaquinha. Enquanto as pessoas continuarem a tomar seu leite e comer seu queijo, nada vai mudar.
 
Perguntei que maluquice era aquela de “vaquinha”, e ouvi esta parábola:
- Estavam Jesus e seus discípulos atravessando uma região desértica quando anoiteceu. Resolveram pedir pouso numa casinha que avistaram ao longe. Foram bem recebidos pelo morador, que lhes ofereceu leite, manteiga e queijo, tudo proveniente de uma vaquinha – sua única fonte de sustento.
No dia seguinte, agradeceram, despediram-se e seguiram viagem. Um dos discípulos sugeriu que Jesus ajudasse aqule homem e fizesse um milagre em retribuição à hospitalidade, e ouviu: “- Já fiz.”
Tempos depois, ao passarem pelo mesmo lugar, os discípulos viram uma bela propriedade. Surpresos, pediram pouso novamente e perguntaram ao dono o que havia acontecido. Ele respondeu: “– No dia seguinte à partida de vocês, minha vaquinha morreu. E eu tive que trabalhar.”
 
Com um sorriso nos lábios, Jair concluiu:
- Esta empresa é a vaquinha. Enquanto estivermos satisfeitos com nossos empregos e salários, não teremos nenhum progresso.
 
Algum tempo depois, soube que ele já havia conseguido um contrato para confeccionar fardas da polícia militar. E essa foi a última notícia que tive dele, pois não demorou para que eu também abandonasse aquele Titanic que já estava indo a pique.
Grande Jair!

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