Na volta do interior, o silêncio no carro
tinha peso de ferro.
O asfalto se estendia reto, sem curvas, sem
surpresas.
Ele olhava adiante, mas não via.
A filha, no banco de trás, deitada no colo da
mãe, fingia cochilar para escapar das discussões e da agressividade que tantas
vezes transbordavam daquele carro.
A família da mãe gostava dele – saíam para
pescar, bebiam juntos, muita cerveja gelada na sombra da varanda. Lá, ele era
outro homem: ria alto, abraçava, contava histórias.
Na estrada, não bebia. Esse era o código: o
volante era dele, a cerveja, só depois. Mas, mesmo sóbrio, parecia que a
ressaca vinha de dentro, como se vivesse permanentemente embriagado de si
mesmo. Olhos cansados, boca sempre pronta a reclamar e soltar frases que feriam.
- Você nunca... – começou, virando-se meio
corpo para trás durante mais uma discussão.
Não houve tempo para terminar a frase. Um
caminhão surgiu à frente – talvez ele tenha invadido a pista, talvez fosse o
outro na contramão. Ninguém soube dizer. Não havia marcas de frenagem, não
havia curva, não havia testemunhas.
Quando abriram os olhos no hospital, a mãe
tinha cortes e hematomas. A filha perdera um rim. Ele, quase degolado, morrera
no local do acidente.
Algum tempo depois, o álbum de fotos que ele
tanto procurara, com retratos da infância e adolescência, reapareceu como se
tivesse saído de um esconderijo. Talvez o sumiço fosse apenas mais um gesto de
rancor da esposa pelo marido alcoólatra e violento.
Com sua morte, o álbum foi entregue a uma
cunhada, pois nem a filha nem a viúva queriam guardar lembranças daquele homem cruel e tóxico que transformara
em inferno a vida das duas.
Pouco depois, tatuagens começaram a surgir
nos braços da moça. Algumas belas, outras sombrias. “São lembranças”, disse a
um primo. E calou, guardando para si o que as tatuagens não conseguiam apagar.
Na família dele, ainda se diz: “Era um ótimo
pai, só bebia demais.” E ninguém discute se o motivo do acidente foi
distração, impulso ou escolha. Eu acredito em escolha.
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