sexta-feira, 15 de agosto de 2025

CONTO TRISTE - AUTOR DESCONHECIDO

 
Na volta do interior, o silêncio no carro tinha peso de ferro.
O asfalto se estendia reto, sem curvas, sem surpresas.
Ele olhava adiante, mas não via.
A filha, no banco de trás, deitada no colo da mãe, fingia cochilar para escapar das discussões e da agressividade que tantas vezes transbordavam daquele carro.
 
A família da mãe gostava dele – saíam para pescar, bebiam juntos, muita cerveja gelada na sombra da varanda. Lá, ele era outro homem: ria alto, abraçava, contava histórias.
 
Na estrada, não bebia. Esse era o código: o volante era dele, a cerveja, só depois. Mas, mesmo sóbrio, parecia que a ressaca vinha de dentro, como se vivesse permanentemente embriagado de si mesmo. Olhos cansados, boca sempre pronta a reclamar e soltar frases que feriam.
 
- Você nunca... – começou, virando-se meio corpo para trás durante mais uma discussão.
 
Não houve tempo para terminar a frase. Um caminhão surgiu à frente – talvez ele tenha invadido a pista, talvez fosse o outro na contramão. Ninguém soube dizer. Não havia marcas de frenagem, não havia curva, não havia testemunhas.
 
Quando abriram os olhos no hospital, a mãe tinha cortes e hematomas. A filha perdera um rim. Ele, quase degolado, morrera no local do acidente.
 
Algum tempo depois, o álbum de fotos que ele tanto procurara, com retratos da infância e adolescência, reapareceu como se tivesse saído de um esconderijo. Talvez o sumiço fosse apenas mais um gesto de rancor da esposa pelo marido alcoólatra e violento.
 
Com sua morte, o álbum foi entregue a uma cunhada, pois nem a filha nem a viúva queriam guardar lembranças daquele homem cruel e tóxico que transformara em inferno a vida das duas.
 
Pouco depois, tatuagens começaram a surgir nos braços da moça. Algumas belas, outras sombrias. “São lembranças”, disse a um primo. E calou, guardando para si o que as tatuagens não conseguiam apagar.
 
Na família dele, ainda se diz: “Era um ótimo pai, só bebia demais.” E ninguém discute  se o motivo do acidente foi distração, impulso ou escolha. Eu acredito em escolha.
 

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