terça-feira, 17 de dezembro de 2024

A LUNETA DO BOM SENSO

 
Eu estava em plena adolescência quando minha tia comprou uma porrada de livros de literatura brasileira publicados pela Editora Saraiva, provavelmente de autores do século 19. Era uma coleção simplesinha, impressa em papel de má qualidade, formato brochura, capas flexíveis com ilustrações coloridas. Passou um tempo, mandou encadernar tudo com capa dura (para enfeitar a estante do seu quarto, provavelmente). Não sei quantos comprou e imagino ter lido todos ou quase todos, mas de dois livros eu me lembro bem: os dois volumes d’O Guarani (que achei uma merda) e A Luneta Mágica, cuja história me atraiu pela sátira sobre as trapalhadas que visões radicais provocam e pela necessidade de abandoná-las em favor do bom senso e da moderação
 
É óbvio que eu não pensava nisso de forma clara, mas fui atraído pela história fantasiosa de um sujeito com problemas de visão e que obtém de um estrangeiro misterioso, talvez árabe ou chinês, uma luneta mágica. Uma luneta que levava quem a usasse por algum tempo a ver toda a maldade que as pessoas guardavam dentro de si. O sujeito pira e quebra a luneta. Depois, arrependido, volta ao chinês e pede outra luneta. É orientado novamente sobre seu uso, mas começa ver só a bondade existente. Toma cano, toma chifre, fica puto e quebra a segunda luneta.
 
Já disposto até a cometer suicídio, volta pela terceira vez ao árabe e recebe nova luneta mágica, a luneta do bom senso. Lembro-me de ter achado o livro um pouco meia boca, mas com uma ideia impactante. Desde então, em todas as vezes que leio, vejo ou ouço opiniões e comportamentos apaixonados, esguichando radicalismo, fanatismo e fundamentalismo, sempre me lembro desse livro e da necessidade de uma luneta do bom senso e da moderação.
 
Parece que hoje as pessoas utilizam opiniões radicais para exibir ou transmitir seus medos, suas crenças ou descrenças políticas, ideológicas e religiosas com pouco ou nenhum fundamento. Já se passaram pelo menos uns 60 anos desde quando li esse livro, mas até hoje não inventaram a filha da puta dessa luneta. A única certeza que tenho é que os cupins destruíram essa e mais algumas coleções da minha tia, com os livros – ou o que restou deles – sendo doados como papel velho. Talvez devêssemos fazer o mesmo com nossos medos atávicos.
 

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