Em 1998, durante a cerimônia de recebimento do Prêmio Nobel de Literatura, José Saramago (Portugal, 1922 - 2010) fez um belo discurso (nove páginas em formato A4, fonte Arial 12). O início teria sido a leitura de um texto escrito trinta anos antes, em que fala de seus avós, pais, memória, inspiração de forma tão comovente que eu não pude resistir à tentação de reproduzir essas palavras aqui no velho Blogson, pois ele disse tudo o que eu gostaria de ter dito sobre minha própria história.
O
homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever.
Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras
de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia
dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta
escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do
desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia, Azinhaga de seu nome, na
província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses
avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite
apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às
pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas
grosseiras, o calor dos humanos livrava os animalzinhos do enregelamento e
salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom carácter, não era
por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os
preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão,
com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do
que o indispensável. Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas
andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei
lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro
que accionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao
ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó,
também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos
restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado. E algumas
vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse:
"José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira." Havia outras
duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga,
por ser a de sempre, era, para todas as pessoas da casa, a figueira. Mais ou
menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a
conhecer e a saber o que significava... No meio da paz nocturna, entre os ramos
altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por
trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em
silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o
Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto o sono não
chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia
contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas,
zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de
memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava.
Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu tinha
adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à
pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele
calculadamente metia no relato: "E depois?" Talvez repetisse as
histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer, quer fosse para as
enriquecer com peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de nós
todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era
senhor de toda a ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos
pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os
seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e,
descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas
agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se
encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô,
punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me
se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias
do avô, ela sempre me tranquilizava : "Não faças caso, em sonhos não há
firmeza". Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher
muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da
figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento
apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quanto o meu avô já se
tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó,
afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não podería significar que,
estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia
sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse
dito estas palavras: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de
morrer". Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de
pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento
quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação
da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha
havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos
como se fossem os seus próprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida
só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e
contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi
despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e
chorando porque sabia que não as tornaria a ver.
Muitos
anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu avô Jerónimo e esta
minha avó Josefa (faltou-me dizer que ela tinha sido, no dizer de quantos a
conheceram quando rapariga, de uma formosura invulgar), tive consciência de que
estava a transformar as pessoas comuns que eles haviam sido em personagens
literárias e que essa era, provavelmente, a maneira de não os esquecer,
desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com o lápis sempre cambiante da
recordação, colorindo e iluminando a monotonia de um quotidiano baço e sem
horizontes, como quem vai recriando, por cima do instável mapa da memória, a
irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar a viver. A mesma atitude
de espírito que, depois de haver evocado a fascinante e enigmática figura de um
certo bisavô berbere, me levaria a descrever mais ou menos nestes termos um
velho retrato (hoje já com quase oitenta anos) onde os meus pais aparecem:
"Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo,
mostrando no rosto uma expressão de solene gravidade que é talvez temor diante
da câmara, no instante em que a objectiva vai fixar, de um e do outro, a imagem
que nunca mais tornarão a ter, porque o dia seguinte será implacavelmente outro
dia... Minha mãe apoia o cotovelo direito numa alta coluna e segura na mão
esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das
costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como uma asa.
Ambos pisam acanhados um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postiço
ao retrato mostra umas difusas e incongruentes arquitecturas
neoclássicas". E terminava: "Um dia tinha de chegar em que contaria
estas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere,
vindo do Norte de África, um outro avô pastor de porcos, uma avó
maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato - que
outra genealogia pode importar-me? a que melhor árvore me encostaria?
Quem se interessar em ler a íntegra do
discurso proferido no português de Portugal siga este link:
https://bu.furb.br/sarauEletronico/index.php?option=com_content&task=view&id=191
Bonito.
ResponderExcluirE nos traz a questão : quem é mais sábio, o homem sábio ou o homem que procura pelos conselhos do homem sábio?
Uma vez eu pensei que só dois tipos de pessoas vivem sem dúvidas: o sábio, por ter respostas para todas as dúvidas e o ignorante total, cuja ignorância é tão grande que nem consegue ter dúvida sobre nada. O raciocínio era um pouco mais elegante, mas a cabeça não está ajudando. Mas creio que em sua frase há dois tipos de sabedoria que não se pode comparar. O sábio, que por mérito próprio, inteligência, reflexão sabe tudo; e aquele que tem a humildade de reconhecer que alguém sabe mais que ele e, por isso mesmo, merece ser ouvido,consultado. Um é sábio pelo conhecimento e o outro pela humildade.
ExcluirIndependente disso, que você tem bebido ultimamente para fazer esse tipo de pergunta?
Há!Há! Há!
ExcluirTentando esclarecer o primeiro raciocínio, tudo se resume a uma pergunta: "Por quê?" O sábio não a formula por já saber a resposta e o toupeira não a faz pois a ignorância absoluta é uma carapaça que impede o surgimento dessa pergunta no cérebro. Mas, quem se interessa por este meu pensamento?
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