terça-feira, 29 de dezembro de 2020

UCHOU

Como bem disse meu amigo Scant, “na vida não há lucro real - todo mundo sai com menos do que carregava quando chegou, ou seja, nem o corpo se leva”. Esta frase nada tem a ver com o texto a seguir, mas resolvi aproveitá-la para embalar a encomenda mais difícil que já tive de entregar, pois não estou lucrando nada com ela. Pelo contrário. A encomenda é o tema deste post, duas vezes solicitado pelo Marreta.

 
AS PRELIMINARES
Como é ensinado nas aulas de educação sexual para alunos do jardim de infância, para que role um clima legal, toda sacanagem bem feita começa com preliminares. Pois é... Em 1970 o curso de Engenharia era o segundo mais procurado da UFMG, perdendo apenas para o de Medicina. Talvez isso provocasse alguma dor de corno em alguém, um despeito pelo eterno segundo lugar, despeito esse que talvez fosse adubado com o badalado "Show Medicina", realizado anualmente e "estrelado" pelos futuros doutores. Nessa história me sinto como o Zeca Pagodinho em relação ao caviar - "nunca vi, não comi, só ouço falar", mas lembro-me de ser essa badalação amadorística notícia de jornal, motivo talvez de inveja da direção da escola de Engenharia ou da turma do Diretório Acadêmico.

Só sei que alguém teve a ideia de fazer um "Show Engenharia", provavelmente para “marcar território”. Esforços e recursos não foram poupados (talvez não tenha sido bem assim...). O primeiro passo foi despachar um grupo de alunos para participar do Festival de Inverno de 1970 em Ouro Preto, como já contei aqui no blog. Pelos quadros posteriormente apresentados no Show, imagino que os alunos escolhidos foram matriculados nos cursos de  cinema, teatro e música.
 
O CÉREBRO POR TRÁS DA IDEIA
Em 1970, "Flávio" era um aluno do quarto  ou quinto ano, já nas bicas de se formar (para evitar possíveis constrangimentos, troquei seu nome verdadeiro para "Flávio"). Como logo descobri, era super simpático, sempre sorridente, elétrico e criativo, muito criativo. Falarei mais sobre ele ao longo deste texto. O que importa agora é saber que sempre tive a convicção de que o roteiro do show foi inteiramente bolado por ele. 
 
O ELENCO
Não consigo me lembrar de todos os alunos-atores que participaram desse show. Não sei também quem me chamou para fazer parte dessa roubada, dessa "ópera de malandros", só sei que eu estava lá, eu e mais uns dez a quinze idiotas. 
 
O DIRETOR
Um dia, no início de um dos poucos ensaios realizados, o Flávio apareceu com um diretor de teatro de BH, chamado Paulo Cesar Bicalho. Conversamos um pouco com ele, devemos ter recebido algumas dicas e só. Se a intenção era ter um profissional experiente para organizar a zona que viria, isso não vingou. Imagino que  ao perceber a canastrice dos atores e a indigência do roteiro deve ter pensado que o melhor era pular fora daquela canoinha furada. E a direção acabou sendo assumida pelo onipresente Fávio.
 
UCHOU!!!
Não me lembro de tudo (graças a Deus!), mas o show teve os seguintes quadros: exibição de um filme curtíssima metragem, o vestibular, o trote dos calouros, a feirinha, alguma coisa (não me lembro mais o que seria), apresentação de uma banda e o happening final (já viu, né?).
 
- O Filme
Imagino que tentaram fazer um "filme de arte", um curta metragem do tipo que é realizado com uma câmera na mão e uma ideia de jegue na cabeça. Era mudo e rodado em preto e branco. Apresentava uma "criança" só de fraldas, olhando para uma imensa e pesadíssima roda dentada. E tome close no olho (azul) da "criança" e tome close na engrenagem. Creio que o “bebê” tentava brincar com a roda e o filme terminava com a "criança" saltitante de alegria, talvez por ter descoberto que o sentido de sua vida era estudar engenharia (bom, essa é minha interpretação de filme tão profundo). Detalhe (mais que) constrangedor: o ator que fez o papel da criança só de fralda foi meu irmão. Numa boa, depois disso, eu, se fosse ele, nunca mais conseguiria ter um sono tranquilo. Dureza, não? 
 
- O Acesso ao Curso
Descalços e vestidos apenas com calça jeans (os homens) ou jeans/camiseta (as mulheres), um bando de idiotas deitados de bruços no chão e formando um círculo, arrastava-se fazendo caras e bocas  de sofrimento (indicativas do esforço feito para passar no vestibular) até chegar ao centro da roda, quando se levantavam com expressões de júbilo silencioso (não havia texto nem para grunhir), sinal claro da vitória de cada um.
 
- O Trote
Um bando de veteranos perseguia e pintava os calouros. Precisa dizer mais?
 
- A Feirinha
Era o quadro mais bizarro, pois envolvia música e "dança". Lembro-me nitidamente do Flávio explicando como seria: alguns atores vestidos com uma estrutura de madeira e tecido imitando uma barraca de feira de artesanato, movimentando-se e rodopiando como se estivessem na ala das baianas de uma escola de samba. A barraquinha provavelmente deveria ter alguma quinquilharia presa a ela. O importante era a musica. Em cima da melodia de uma música folclórica, o Flávio criou uma letra para que os malucos cantassem enquanto giravam como se estivem querendo receber um espírito (e pensar que essa gente conseguiu se formar!). A letra original era assim (não consegui descobrir um link para mostrar a melodia):
 
Bumba! Meu Boi, bumbá!
Cavalo marinho
Vem que vem dançando
Bem devagarinho
 
A letra criada pelo Flávio ficou assim:
Vamos, vamos comprar,
calouros carecas
vêm que vêm chegando 
roupas e cuecas
 
já vou dizendo que vão ter que comprar hoje
o escudinho da escola pra provar
que o calouro passou no vestibular
vamos, vamos comprar.

Brilhante!
 
- "Alguma Coisa"
Chamei de "alguma coisa" pois não me lembro mais o que rolou no show além do que já contei. Como  havia uma banda formada por alunos e (provavelmente) músicos convidados, imagino que deve ter acontecido um mini show de rock ou coisa parecida. Minha mulher diz que em algum momento eu me vesti de mago Merlin, tal como ele é retratado no desenho "A espada era a lei". Minha mente deve ter um bloqueio gigantesco em relação a isso, pois não consigo me lembrar de nada desse momento (só posso imaginar o ridículo da situação)
 
- O Happening
No final do show (o grand finale!) acontecia um happening, com os atores convidando (e puxando) a plateia para pular carnaval. E o show acabava. Creio que devem ter acontecido duas ou três apresentações desse maravilhoso espetáculo, provavelmente em um final de semana (sexta, sábado e domingo, sempre à noite). 
 
A COMEMORAÇÃO
Para comemorar o sucesso, o brilho e a qualidade de show tão magnífico, o Flávio resolveu dar uma festa a fantasia na república onde morava. Quis o Diabo que essa festa coincidisse com o aniversário de trinta anos de sua prima (uma senhora!), já casada e tal. A república estava instalada em uma casa velha no bairro Floresta, um dos mais antigos de BH. Cada um dos cômodos recebeu uma decoração diferente, de acordo com o tema escolhido. Só me lembro de que os muros do quintal da casa foram magnificamente pintados com coelhinhos e bichinhos fofinhos, pois o tema do quintal era "Jardim de infância". Foi assim que descobri que o Flávio tinha um talento absurdo para desenhar e pintar, pois os desenhos eram surpreendentemente bem feitos. Nos outros ambientes a temática já era adulta, mas não tive tempo de curtir a festa.

Quando eu e minha namorada chegamos, o portão foi aberto pela aluna em quem eu tinha dado trote no show. Ela virou-se para minha namorada e perguntou algo como "Posso dar um beijo nele?"). A reação foi um enérgico e enciumado "NÃO!". E a porteira: "Mas dou mesmo assim", beijando-me no rosto. Não mais que cinco minutos se passaram entre nossa chegada à festa e nossa saída.

Fiquei sabendo depois da esbórnia acontecida, com polícia pedindo para a festa acabar, problema que foi resolvido com uma carteirada dada por um dos moradores, ex-aluno do CPOR (vestido de árabe). Creio ter ouvido de meu irmão uma história pra lá de bizarra, de que o Flavio teria dormido primeiro com a prima e depois com o marido nos dois dias em que o casal ficou hospedado na república. Foi assim que fiquei sabendo que o Flávio era bissexual. Depois disso, viajou para o carnaval de Salvador com uma das "atrizes" (minha ex-colega do Grupamento B). Na volta, teria "admetido" em sua república um aluno recém-saído do armário e ex-colega de meu irmão. (este parágrafo-lixo está parecendo ter sido tirado de um programa do Nelson Rubens ou do Fofocalizando!).
 
O PÓS SHOW
Para não deixar que a chama criativa se apagasse (ou apenas pela vontade de queimar a rosca), foi criada uma revista de arte, tendo à frente o indefectível Flavio e mais alguns bichos-grilos da escola. O conteúdo era formado por poesias, desenhos "de maconheiro" e textos de realismo fantástico ou coisa parecida. Só me lembro do nome e do logotipo que depois foi transformado em um simpático bichinho com jeitão de capivara. A revista chamava-se "Engenharte" e o logotipo era formado por duas letras minúsculas, iniciais das palavras "Engenho" e "Arte", com o "e" ficando ligeiramente abaixo do "a", como se estivesse em outra linha, dando o efeito "capivara". Foram publicados alguns números e depois acabou. O Flávio, formou-se, nunca mais tivemos notícia sobre ele e ninguém nunca mais cogitou de fazer um novo Show Engenharia. 

4 comentários:

  1. Cara, sensacional! Ainda vou relê-lo outras vezes para marcar e comentar alguns pontos, mas sensacional! Pôs até o irmãozinho na roda! Imagino você vestido de Merlin! O seu esquecimento de certas parte do Show foi bloqueio mesmo ou amnésia alcoólica?
    Já imaginou se, na época, já existissem os celulares e as redes sociais? Meno male, meu velho, meno male.

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    1. Sei lá, o esquecimento tem mais cara de bloqueio, pois uma das tragédia da bebida para mim sempre foi lembrar de tudo depois.

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    2. É só beber de novo pra esquecer...

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