domingo, 10 de novembro de 2019

TRETAS E MUTRETAS - ÚLTIMA PARTE

Mesmo que ninguém esteja muito interessado nisso, aí vai a segunda parte:

Entre 1976 e 1980 trabalhei em uma construtora pequena (tinha só uns dezesseis engenheiros). Foi um período extremamente feliz da minha vida, pois essa empresa era quase uma "casa de vó", de tão acolhedora. O presidente era sócio de dois irmãos e patrão de mais seis (mais um cunhado). O ambiente era extremamente familiar e cortês, pois, além dos irmãos e cunhado a quem empregava, o Zé (o fundador) era extremamente carola. Saca só o currículo: sobrinho de bispo, irmão de freira e pai de padre. Além disso, o vigário da paróquia do bairro onde morava foi seu hóspede por um tempo, talvez enquanto a igreja estava sendo erguida. Igreja que sua empresa construiu, doando toda a mão de obra utilizada, de engenheiro a ajudante.

Durante os anos em que trabalhei com ele, eu nunca disse um palavrão no serviço, prática inaceitável na empresa. Segundo seu motorista, depois de tomar uma fechada no trânsito, soltou um “filho da puta!”. O Zé, que estava ao lado, ficou horrorizado e falou para ele não falar mais daquele jeito.

Apesar desse pedigree todo, essa pequena construtora pagava propina. Por volta de 1977, praticamente recém-formado, durante uma reunião interna para revisão da proposta que seria apresentada em uma licitação de obra a ser construída em município da região metropolitana de BH, ouvi do sócio a quem era diretamente subordinado a recomendação de aumentar o preço a que tinha chegado em 2%. Perguntei o motivo e ele, visivelmente constrangido, me contou a seguinte história:

Sua empresa tinha ganhado na maior lisura e pelo menor preço uma pequena obra no mesmo município. Embora rigorosamente dentro do cronograma, não havia meio de receber em dia os pagamentos pelos serviços já executados. Queixando-se disso com um amigo, dono de outra pequena construtora, foi por ele foi instruído a procurar alguém muito graduado na Administração Municipal. O assunto a tratar seria a concordância em pagar uma propina de 2% de cada fatura recebida, uma espécie de "corretagem", para que sua empresa pudesse receber em dia. Depois de fazer isso, nunca mais recebeu atrasado. Detalhe: metade da extorsão era destinada ao prefeito. A outra parte era distribuída entre alguns secretários. O prefeito estava ainda em seu primeiro mandato, mas hoje é riquíssimo. Engraçado é o percentual de 2%. Isso foi depois levado à estratosfera pelo Paulo Cesar Farias, amigo do Collor. Segundo boatos que ouvi na época, a taxa era algo em torno de 40%. Mesmo que o "pedágio" não tenha sido tão absurdo assim, não sei se alguém conseguiu superá-lo nesse quesito

Os mais moralistas e aqueles que acreditam na humanidade poderão estar chocados, mas este texto não é uma fábula e não tem moral nenhuma. O que importa saber é que todas essas empresas foram para o brejo em algum momento. E a razão disso é simples. Como já abordei esse assunto em um post dedicado às grandes empreiteiras, vou transcrever um trecho que é válido também para as pequenas empreiteiras:

Acredito que as pequenas construtoras estão expostas a um risco muitíssimo maior que, por exemplo, uma pizzaria recém-inaugurada ou uma pequena loja de autopeças ou sei lá o que. E esse risco está relacionado à formulação do preço da obra que se pretende executar. Embora se utilize a expressão "indústria da construção", não há nada mais despadronizado que a construção de qualquer obra. A começar pela localização (que pode afetar o preço de frete dos materiais básicos utilizados. Além disso, o subsolo existente define essa ou aquela fundação. Pesam ainda a quantidade absurda de materiais diferentes necessários, sejam eles incorporados à obra ou apenas como auxiliares durante os processos construtivos. Fora atrasos de pagamentos, ações trabalhistas, mudança de projetos, etc. etc. etc. etc.

Porque a questão básica que se impõe aos empresários frescos (é bom deixar claro que todos os engenheiros são machões. Até mesmo algumas engenheiras) é: como ganhar dinheiro (ou lucrar) fazendo obras por empreitada? Repetindo: qual deve ser o preço que bem atenda contratado e contratante?

Na minha opinião (repetindo), quando se elabora uma proposta para executar determinada obra, assume-se um risco muito alto, maior que o normalmente existente em outros setores da economia. Ao longo de minha vida profissional deparei-me com uma ou mais das seguintes situações:

- na fase da licitação, o projeto apresentado pode estar incompleto, mal detalhado ou com erros - ou é de responsabilidade da empresa que for contratada;
- salvo casos muito especiais e pouco frequentes, nenhuma obra é igual a outra. Assim, as experiências e dificuldades vividas na primeira obra de quase nada valerão para a realização da segunda;
- atrasos no recebimento das faturas correspondentes às parcelas já executadas podem, em alguns casos, até quebrar uma construtora de pequeno ou médio porte;
- no caso de obras públicas, embora "raro"(?), não chega a surpreender que haja pagamento de propinas feito a achacadores ligados à fiscalização da obra (alguém se lembrou do Petrolão? Pois é).

O que uma pequena construtora pode fazer para que seu barquinho continue a navegar nesse oceano tempestuoso até ser substituído por um belo e luxuoso iate ou até mesmo  por um imenso transatlântico? Bem, algumas descobriram.

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