Isto não é um poema
É apenas um texto em prosa
É apenas um texto em prosa
Fragmentado, descontinuado,
Como fragmentado e descontinuado
Às vezes me mostro e me sinto (ou não?).
Em dias de muitas certezas,
Em dias de pouca humildade,
Em tudo o que escrevia
Nas letras, palavras e frases
Que via surgir cautelosas
Que via surgir cautelosas
Na tela do monitor,
Acreditava ver meu retrato.
Sinfonia banal e inacabada
Bits e bytes decodificados
Hackeados, copiados, assimilados
Bits e bytes decodificados
Hackeados, copiados, assimilados
Ultrassonografia, raio X
Tomografia de mim mesmo,
Em dias de muitas certezas,
Em dias de pouca humildade...
Difícil é a missão de um tradutor
A vida, uma mistura de sons sem sentido
Ruídos, sonetos alexandrinos
Palavras de duplo sentido, regionalismos
Gírias, jogos de palavras.
Como orquestrar a cacofonia?
Como organizar a algaravia
Como metrificar versos livres
Como transformar prosa em poesia?
Traduções sempre incompletas, imperfeitas
Traduttore, traditore talvez
Versões sem compromisso com a origem
Paródias onde o humor foi extirpado.
Olho o esboço na tela do computador:
Será retrato ou caricatura?
Máscara veneziana, teatro grego,
Pintura kabuki?
Um depressivo que finge ser alegre,
Um despreocupado que finge depressão,
Um boçal a posar de lorde inglês
Ignorante bancando o intelectual.
Retrato desfocado, danificado,
Retrato retocado de Dorian Gray.
A versão sobrepondo-se ao fato,
A pós-verdade presente em tudo.
O que eu sou realmente?
O que são os textos que escrevo?
Tradução possível? Versão incompleta,
Paródia mal feita de mim mesmo?
E você, meu caro, o que é também?
Paródia mal feita de mim mesmo?
E você, meu caro, o que é também?
Traduzir-se
ResponderExcluir(Ferreira Gullar)
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?
Eu conheço este poema desde a morte do Ferreira Gullar e é demais. O Oswaldo Montenegro tem uma música (Metade) que fala dessa dualidade. Cheguei a pensar em citar o Gullar no texto, mas achei que seria muitíssima pretensão, quase uma heresia ou ofensa ao poeta. O que me fez escrever essa "coisa" não foi a dualidade, mas a ambiguidade de sentimentos e a incerteza (que parece ser minha marca registrada). Outro dia me perguntei se eu estava verdadeiramente presente nos meus strip-teases mentais. Fiquei pensando exatamente isso: seria eu "Um depressivo que finge ser alegre ou Um despreocupado que finge depressão"? E aí foi surgindo o resto. Ou seja, eu estava tentando traduzir-me para mim mesmo, já que no Blogson eu sou simultaneamente terapeuta e paciente de mim mesmo. É isso.
Excluirnossos blogs servem-nos a isso, sermos divãs de nós mesmos, nos economizam uns bons trocados no psiquiatra.
ExcluirE o poema tá bom pra caralho. A pintura kabuki deu um tom de erudição irretocável.
Como diz a Marina, "só vou te contar um segredo": embora eu já tenha lido superficialmente sobre o teatro Kabuki, quando eu pensei em tipos de máscaras, me veio à mente a "kabuki máscara" da letra do Caetano. Erudição nada, cultura de orelha de livro, isso sim!
ExcluirPosso confessar? De kabuki, eu também só conheço a letra do Caetano. Pããããããta.....
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