segunda-feira, 28 de outubro de 2024

UM POEMA LINDO

 
O Alzheimer vitimou um poeta fabuloso, desses que não fazem alarde de sua poesia, de seu talento. Para a maioria desconhecido, a não ser o fato de ser irmão da cantora e compositora Marina Lima, a quem presenteou com algumas letras lindíssimas para que as colocasse em suas melodias inspiradas. Foi-se embora o poeta, foi-se embora o filósofo, criou-se mais uma vaga na ABL (que será feito de seu fardão, agora sem ter a quem vestir?)
 
Um dia, lendo o segundo caderno do jornal O Globo, deparei-me com um poema tão espetacular que tive vontade de arrancar a página onde estava publicado, só para guardá-lo para mim. Infelizmente, o jornal não era meu e eu não tive tempo ou coragem para fazer o que queria. Não sei o nome, não sei o tema, só me lembro da absoluta elegância dos versos. Esse era Antônio Cícero, um poeta que a maioria das pessoas desconhecia e que talvez seja mais lembrado por fazer eutanásia.  Olha que poema lindo do blogueiro Antônio Cícero (ele tinha um blog – Evidências – mas creio que estava abandonado, sina que parece ser a de muitos blogs):

 
TEOFANIA
 
Sabe-se que um deus só vem porque quer
e que é capaz de desaparecer
a seu bel-prazer, por mero capricho.
Nisso ele se assemelha mais a um bicho
 
selvagem, feito serpente ou veado,
do que a gente. Uns são intempestivos.
É no momento menos indicado
que nos capturam e mantêm cativos.
 
Assim é o Amor, por exemplo. Não
há quem não reconheça a divindade
de tal deus. Não: os próprios cristãos dão
a mão à palmatória e têm saudade
 
do realismo do mundo pagão
quando o vêem chegar como quem não quer
nada e ofuscar tudo. Outros são
diferentes. Todos vêm por prazer,
 
isso é claro mas, por exemplo, o Sono
não deixa de abraçar-nos todo dia
enquanto somos jovens: dir-se-ia
ser nosso escravo e não suave dono.
 
Mas isso não se deve nem pensar
pois se ele ouvir o nosso pensamento
e resolver provar-nos a contento
ser mesmo deus, desaparecerá,
 
pois que ele é deus mostra-o nem tanto o fato
de que vem sem ser chamado e escraviza,
em teatros, aulas, ônibus, vigílias,
o desejo que almeja dominá-lo
 
quanto a própria insônia, teofania
negativa do Sono, quando somem
as doces nuvens e as torres macias
do príncipe dos deuses e dos homens
 
e não se abrem as águas da lagoa
ou os portões de chifre ou de marfim
e nossa imaginação se esboroa
em prosa e a noite cansa até o fim.
 
Não se iludam. Nem o mais poderoso
dos soporíferos substituiria
ver abolirem-se as categorias
pela espontânea ação de um deus gasoso.
 
Tais deuses só na velhice sabemos
o que são. O jovem nem desconfia
ser divino o próprio Tesão ou mesmo,
tremo só de lembrar, a Poesia.

 

 

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