sexta-feira, 11 de outubro de 2024

BENEDICTIO CEREVISIAE


 
O tema de hoje é meio esquisito pois vou falar de cerveja, logo eu que nem gosto de cerveja! Mas meu papel é só de documentarista. Por isso, já começo perguntando: você já ouviu falar do “vinho do padre”? Já? E de "cerveja do padre"?

“Vinho do padre” é nome popular que se dá ao “vinho canônico”, fabricado especificamente para ser utilizado durante a missa católica, simbolizando o sangue derramado por Cristo. Como este texto não se propõe a catequizar ninguém, não é para conversão, só conversação (fraquinha!), vou contar a história da cerveja do padre, graças a um vídeo antigo que minha mulher me enviou. Tão antigo que o padre que nele aparece às voltas com a produção de cerveja morreu em 2020, por aí.
 
Bom, eu disse que não queria catequizar ninguém, mas seria de bom alvitre que os ateus – especialmente aqueles que gostam de cerveja barata mas boa – se ajoelhassem no milho, ou melhor, na cevada, e recitassem esta oração, uma benção, que consta no Ritual Romano (livro que reúne os ritos da Igreja Católica):
 
BENEDICTIO CEREVISIAE
V. Adjutorium nostrum in nomine Domini.
R. Qui fecit caelum et terram.
V. Dominus vobiscum.
R. Et cum spiritu tuo.
Oremus
Bene   dic, Domine, creaturam istam cerevisiae, quam ex adipe frumenti producere dignatus es: ut sit remedium salutare humano generi, et praesta per invocationem nominis tui sancti; ut, quicumque ex ea biberint, sanitatem corpus et animae tutelam percipiant. Per Christum Dominum nostrum.
R. Amen.
Et aspergatur aqua benedicta.
 
Que, em língua de pagãos, pode ser traduzida assim:
 
BENÇÃO DA CERVEJA
V. A nossa proteção está no nome do Senhor
R. Que fez o Céu e a Terra
V. O Senhor esteja convosco.
R. Ele está no meio de nós.
Oremos
Abençoai, Senhor, esta criatura, a cerveja, que da riqueza do grão vos dignastes produzir, para que seja remédio salutar ao género humano; concedei ainda, pela invocação do vosso santo Nome, que quem quer que dela beba, receba [de Vós] a saúde do corpo e a tutela da alma.
E água benta é aspergida
 
Eu só não entendi por que usar água benta! Seria mais coerente usar a bem suada cerva para borrifar ou aspergir a produção mais recente, concordam?
 
Pouco importa. Como sexta-feira é o dia nacional da cerveja, podemos agora contar um pouco dessa simpática história. Era uma vez... (pensando bem, este não é um início digno de fé, mas vamos lá)
 
(Transcrevendo):
“Domingo, 02 de Julho (1893), chegou o ‘Ceará’ ao Rio de Janeiro. Conforme me falaram é um dos portos mais bonitos do mundo. Viajamos no mar sem problemas, 25 dias: de 08 de Junho até 02 de Julho. Graças a Deus chegamos bem em nossa nova pátria.” Esse é o relato que descreve a chegada de dois grandes missionários redentoristas que primeiro chegaram a terras brasileiras: Pe. Mathias Tulkens e Pe. Francisco Lohmeyer. Da Holanda para o Brasil! Ao chegar a Juiz de Fora, Pe. Matias entusiasmou-se com a cidade ao dizer: “parece ser a cidade mais civilizada e mais próspera do Brasil. Os alemães construíram com os seus próprios meios uma igreja e tinham um vigário próprio também alemão. Faz 4 meses que ele faleceu e os alemães ficaram sem vigário (trata-se do Pe. Adolfo Januschka). Eles ficaram muito satisfeitos quando souberam que eu ficaria um tempinho com eles. A cidade tem 25.000 habitantes, dos quais, conforme o vigário, 1.200 alemães, mas um ou outro me falou que eram 4.000. A igreja é pequena mas, isto é costume aqui; há bastante espaço para ampliá-la”.
  
Foi dessa forma que a Congregação Redentorista se instalou em Juiz de Fora, trazendo também seus costumes culturais, entre eles a tradição europeia da cerveja, especialmente a produção artesanal. A bebida fazia parte da dieta cotidiana dos religiosos e não era considerada alcoólica, sendo o vinho reservado apenas para ocasiões especiais.
 
Os missionários redentoristas, ao se estabelecerem no Morro da Gratidão (atual Morro da Glória), montaram uma cervejaria nos moldes dos conventos da Holanda, utilizando equipamento de alta qualidade importado de lá. A tradição cervejeira foi passada aos brasileiros, com destaque para o Irmão Geraldo, redentorista consagrado, pelo tempo que dedicou à produção da cerveja até 1994, momento em que paralisou a produção. Não sei o motivo dessa decisão, talvez por doença, velhice ou até mesmo falecimento.
 
Só em 2009, o Padre Flávio, então pároco da Paróquia de Nossa Senhora da Glória, restaurou a cervejaria com o auxílio de cervejeiros locais. Ele reativou o equipamento e resgatou a receita original, produzindo novamente a Hofbauer, em homenagem a São Clemente Maria Hofbauer, santo austríaco da Congregação.
 
Na Idade Média, a produção de cerveja era comum em mosteiros, e, para Padre Flávio, a bebida integrava a convivência comunitária e a fé. Após um intervalo de 15 anos sem produção, foi necessário estudo e paciência para reativar a cervejaria, valorizando o patrimônio histórico. Como disse o padre: "Do que vale um patrimônio se estiver parado, morto?"
 
Aqui cabe um depoimento pessoal. Conforme já contado aqui no Blogson, tive contato com uma senhora italiana, amiga e hóspede da sogra de minha tia, que nunca bebeu água durante os meses em que esticou sua permanência no país. Começou bebendo vinho, passando depois para cerveja (mais barata que vinho). Também falei de uma empresa alemã de engenharia, contratada para um serviço altamente especializado na obra onde fiz estágio, que fornecia cerveja (quente) durante o turno de trabalho para seus funcionários.
 
E para encerrar este texto tão embriagante, tão embriagador, acho razoável reproduzir a saudação suméria representativa de saúde e prosperidade: Pão e cerveja! (mesmo que eu prefira ficar só com o pão).
 
 


2 comentários:

  1. Desde a Idade Média, muitas das melhores cervejas do mundo eram e ainda são produzidas por padres, monges etc, principalmente na Alemanha e na Bélgica, em mosteiros e abadias.
    Mas desconhecia essa bela Benedictio Cerevisiae, a Benção da Cerveja, transposto do latim.
    Não sabia que Cerevisiae é cerveja em latim, apenas que o fungo usado em sua fermentação (o mesmo do pão) é o Saccharomyces cerevisiae, que numa tradução capenga de minha parte seria algo como "fungo do açúcar da cerveja".
    Quem será que recebeu o nome de quem? A cerveja do fungo ou o fungo da cerveja.
    Sua postagem daria uma boa e instrutiva Cerveja-Feira.

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    1. Como você parou, eu fui "obrigado" a não deixar a pepeca cair.

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