quinta-feira, 31 de outubro de 2024

O FARMACÊUTICO E ELE - DEZSÖ KOSZTOLÁNYI

 
Para minha surpresa, meu filho mais velho leu o texto “Para sempre cordial” e deve tê-lo mostrado para minha nora. Por conta disso ela me enviou pelo zap um conto com este comentário: Não sei explicar direito, foi uma sensação. Sensação de que vc iria gostar de ler, que faria seu tipo de leitura. Eu gostei bastante desse livro inteiro, tem ótimos contos. E, enquanto lia, achei que vc poderia gostar do livro. Mas resolvi te mandar um conto só. O personagem que conta os contos, Kornél Esti, seria uma pessoa que poderia ter passado por sua vida, ou pela de algum amigo seu.
 
Lendo o conto eu percebi o motivo talvez inconsciente de tê-lo recebido: o personagem teve uma atitude semelhante às que algumas vezes eu tive com desconhecidos que me pareceram fragilizados emocionalmente. E este é o motivo de publicar aqui no velho Blogson este simpatissíssimo texto. Lêaí.
 


 
O FARMACÊUTICO E ELE
 
Numa noite quente de primavera, Esti passava o tempo diante da vitrine de uma farmácia da periferia. Ficou tomado por uma tristeza aguda, pois a vitrine era paupérrima. Isso tocou tão fundo sua frágil alma que por um longo tempo não conseguiu sair dali.
 
Nas livrarias da periferia geralmente se vendem lápis, borrachas, canetas, e nas farmácias, escovas de dente, pincel para barba, cremes para o rosto. Tantos artigos de beleza se avolumam nesses lugares, como se o verdadeiro problema da humanidade nem fosse a doença, as muitas enfermidades, mas a feiura.
 
Essa pequena farmácia, com o seu luminoso que acendia e apagava a cada segundo, oferecia dois artigos, obviamente produzidos pelo próprio farmacêutico. Um era assim repetido pelo luminoso: Xerxes acaba até com a tosse mais tenaz. O outro gritava para a escuridão: Pó Aphrodite contra o suor das palmas da mão, pés e axilas.
 
Mas os fregueses não se apresentavam. No interior da farmácia estava sentado atônito um pequeno homem, modesto, de roupa cinza, cabelos cinzentos. Estava tão abatido como um suicida imediatamente antes de cometer o seu ato.
 
Esti se compadeceu e entrou.
 
— Desculpe — murmurou e olhou em volta. — Será que poderia conseguir aqui algo contra tosse?
 
— Claro — sorriu afavelmente o farmacêutico —, claro, por favor.
 
— Só que — cortou sua fala e levantou o seu dedo — minha tosse não é de hoje. Ano passado tive um forte resfriado e, desde lá, não importa o que faça, não passa. É uma tosse maligna — como é que posso me expressar? —, persistentemente — procurava a palavra correta, até encontrá-la —, tenaz.
 
— Xerxes — disse o farmacêutico —, Xerxes — e saltou em direção a uma prateleira, e já colocou debaixo do seu nariz o pó mágico empacotado numa elegante caixa.
 
— Isso resolve?
 
— Até a tosse mais tenaz — respondeu de pronto, enquanto lá fora o luminoso dizia o mesmo. — A embalagem menor ou a maior?
 
— Talvez a maior.
 
— Não deseja outra coisa? — perguntou o farmacêutico, enquanto embrulhava a mercadoria num papel cor-de-rosa.
 
— Não — respondeu Esti preventivamente, porque tinha uma enorme experiência em representar essas cenas artísticas. — Obrigado.
 
Pagou, dirigindo-se para a saída.
 
Ao colocar sua mão na maçaneta, parecia empacar, hesitar. Voltou-se. O farmacêutico se aproximou:
 
— Em que mais posso ajudá-lo?
 
— Isto é — gaguejou e calou-se em seguida. — Minha mão…
 
— Ah, sim — disse instantaneamente o farmacêutico — Aphrodite, com certeza, Aphrodite.
 
— E tem ação eficaz?
 
— Eu garanto.
 
— Porém…
 
— Para o pé também — disse confidencialmente, abaixando sua voz —, para aquilo também.
 
Agora a tensão dramática chegara ao auge. Esti se portava como quem ainda não conseguiu se decidir pela compra, tomado por dúvidas, e tem um segredo familiar tão obscuro, fatal, que até agora não confessou para ninguém. O farmacêutico procurava auxiliá-lo. Segredou algo no seu ouvido. Esti desistiu de resistir, humilhado, acenou afirmativamente com a cabeça. Mandou embrulhar esse produto também.
 
Fora, na rua, parou diante da vitrine. Mas não era isso que observava, mas o farmacêutico. Este, de repente, ficou elétrico, depois de encontrar um exemplar cobaia da sofrida humanidade, que miraculosamente personificava todas aquelas desejáveis qualidades de que ele necessitava. Com desenvoltura caminhava para lá e para cá. Provavelmente novos planos brotavam no seu cérebro. Acendeu um charuto.
 
Enquanto caminhava pela ponte, Esti discretamente jogou as duas caixas no Danúbio. E pensou o seguinte:
 
— Prolonguei sua vida pelo menos por um mês. Como não consigo consolar a mim mesmo, de agora em diante vou consolar os outros. Deve-se devolver a todos a fé na vida. Para que sigam vivendo. Um professor me advertiu de não deixar passar um só dia sem fazer algo de bom. Sempre dizia que só esse tipo de homem dorme tranquilo. Bem, será que hoje conseguirei dormir sem tomar alguma pílula?…
 

5 comentários:

  1. Jotabê,
    Agradeço pelo passo a passo
    no site de música.
    Finalmente arrumei tempo
    e consegui fazer duas produções
    por lá.
    Grata de verdade por sua generosidade.
    Vi tbem a dica
    que deu pra Blogueira Rô
    e estou me encaminhando
    pra beneficiar meus 10 autores
    que me contrataram ao longo
    da vida para editar
    seus livros em
    papel. Vou presentear los
    com ebooks.
    Você é generoso e merece
    tudo de bom juntamente com
    sua Família.
    A gente acha que
    Filhos e Cia não lêem
    a gente. Mas lêem sim, do jeito
    deles. Meu mais velho vive
    me trazendo livros de onde passar
    e sempre diz: minha mãe é editora e escritora,
    ela vai gostar desse título.
    Bora seguir adiante amigo Jotabê.
    Bjins e Abraço em.Vc e na Família.
    CatiahoAlc./Reflexod'Alma

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  2. Conto bem bacana. Atitudes pequenas podem ser grande coisa para quem precisava delas. Eu já li essa afirmação de não deixar passar um só dia sem fazer algo de bom. Não lembro onde pois foi há décadas, talvez. Curioso ela aparecer aqui.

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