sexta-feira, 14 de maio de 2021

OUVIDOS MOUCOS

 
A velhice é parecida com o carro velho que um conhecido meu possuía. Segundo ele, a furreca lembrava muito um kinder ovo, “pois sempre tinha uma surpresinha desagradável”. Velhice é mais ou menos assim. Quando você já está se acostumando com alguma restrição provocada pela idade, surge outra. E a coisa não para, tem sempre uma novidade para assimilar.
 
Por exemplo, a minha visão para perto que era uma beleza - mesmo que fosse só do olho esquerdo – começou a pifar, exigindo óculos com graus cada vez maiores. E assim eu fui apresentado à presbiopia, “vista cansada”, “doença de velho”. Hoje eu não leio quase nada se não estiver com óculos para leitura (dois graus e meio no olho “bom” e cinco no preguiçoso). Às vezes brinco que meu próximo passo será aprender Braille.
 
Mas não pensem que a coisa parou por aí.  Devagarinho, sem que eu a princípio percebesse, a audição foi piorando cada vez mais. Por exemplo, por já estarmos vacinados, no recente Dia das Mães nossos filhos vieram almoçar aqui em casa e ainda trouxeram as netinhas. Foi um dia magnífico. A única coisa que pegou foi quando eles começavam a conversar entre si. Pai amoroso, doido para interagir, eu me aproximava de onde estavam mas só ouvia "gloglogloontem, blobloblofoda!", não entendia porra nenhuma do que estavam dizendo!  Bom, pelo menos eu posso fazer uma piadinha ao dizer que o atual nível de surdez chegou silenciosamente. Mas é sério. 
 
Hoje em dia, quando eu e minha mulher conversamos (e ela está escutando tanto ou até menos que eu), frequentemente o constrangimento e a surpresa surgem, pois nosso filho responde o que eu iria ainda perguntar a ele. Mas ele está a uns cinco metros de distância pelo menos, em outro aposento! Nessas horas eu exclamo que ele tem “ouvido de leproso”, por ouvir demais. Para ser sincero, nunca tive a mínima ideia da origem dessa expressão pra lá de ridícula e incorreta. Mas hoje resolvi pesquisar na internet. E o que achei foi isto:
 
“Pelo fato da tuberculose ser uma doença letal e muito contagiosa, por vários anos os seus portadores buscavam o sigilo absoluto sobre o assunto. Por receio de ouvir comentários suspeitos de pessoas próximas, criou-se a ideia de que os tuberculosos estão sempre atentos aos cochichos e conversas alheias.
Por este motivo é comum falar que os fofoqueiros - pessoas intrometidas e que ficam constantemente atentas às conversas das outras pessoas - têm ouvido de tuberculoso.
Outra explicação é que o tuberculoso era muito discriminado. Quando se descobria que alguém tinha tuberculose, sussurrava-se às escondidas do doente e o tuberculoso, desconfiado de que estavam falando dele, tentava escutar tudo e todos para poder defender-se”. Que maldade!
 
Por esta explicação, deduzo que ouvido de leproso e ouvido de tuberculoso têm o mesmo sentido e um ponto de contato na microbiologia – tuberculose e lepra são causadas por bacilos. Mas esta é uma piada dispensável e totalmente incorreta, um verdadeiro vacilo meu, pois tenho o máximo respeito e um sentimento verdadeiro de compaixão pelas pessoas com algum tipo de deficiência, de qualquer tipo.
 
Por isso, vou contar um caso real que tive oportunidade de conhecer. Trabalhei em uma empresa pública que empregava em uma de suas unidades umas noventa pessoas com algum grau de perda auditiva, desde os totalmente surdos até os que conseguiam ouvir alguma coisa (chamados carinhosamente de “surdinhos do Paraguai”). Havia supervisores que conheciam Libras e a coisa fluía normalmente.
 
O que me encantava mesmo acontecia na hora do almoço. Vários deles juntavam-se em grupos de quatro ao redor de uma mesa e jogavam baralho com o auxílio de um cubo de madeira numerado. Nunca soube que tipo de jogo era aquele, mas achava interessantíssimo ver a movimentação. Que tinha até palpiteiro!
 
Outra coisa que chamava minha atenção era vê-los conversando. Por serem muitos, havia vários grupos no maior bate papo. E o que mais me fascinava era imaginar que havia rolado uma piada ou maledicência ao vê-los rindo muito. Nessas horas eu sempre pensava que não poderia haver segredos entre eles, pois mesmo a quinze metros de distância um grupo saberia o que o outro conversava.
 
Hoje, graças à minha progressiva perda de audição nossos filhos ficam me zoando, seja me comparando à velha surda do programa “A praça é nossa” (“Apolônio!”) ou lembrando uma propaganda de aparelho auditivo que dizia “Para você que escuta, mas não entende bem as palavras”. Tudo filho da puta! Para não ficar muito por baixo, retruco dizendo que vou aprender Libras, só para segredar alguma coisa à minha mulher (que precisaria também aprender), mas ela não acha graça nenhuma nisso.
 
Há um caso hilariante (já contado aqui no blog) que aconteceu com minha sogra. Uma de suas cunhadas convidou-a para um chá em sua casa e disse para levar “as meninas”. Nessa época, minha sogra então com mais de noventa anos já não ouvia quase nada e tinha também grande dificuldade para andar. Para evitar degraus e encurtar a distância a percorrer, entrei com o carro na garagem do prédio onde morava sua amiga. Minha mulher e suas irmãs a ajudaram a caminhar até o elevador e voltei para casa. Mais tarde, minha mulher ligou avisando que poderia buscá-las. Mesmo procedimento: entrei na garagem, esperei que fosse acomodada no banco da frente e fomos embora. Na volta, perguntei a ela pela reunião, se tinha gostado, se tinha conversado muito, etc. Foi aí que eu tive de segurar o riso (que queria explodir), pois me deu esta resposta:
- Ah, Zé, eu não tenho muito assunto e fiquei só escutando”.
Como assim? Ela não escutava porra nenhuma! Eu conversava com ela quase gritando, de tão surda estava! Aí fiquei imaginando minha sogra como se fosse uma planta decorativa ali na reunião, com alguém dizendo para por “o vaso ali naquele canto”. Sacanagem!
 
Antes de terminar este post preciso louvar os órgãos e empresas públicas por dar real oportunidade de trabalho para pessoas com restrições físicas de todo tipo. Pode ser exigência legal ou o que for, mas que é um procedimento bonito, comovente, necessário e justo, não se discute.
 
E agora o caso final: tenho uma nora que é fodésima, inteligentíssima e que já foi aprovada em três concursos públicos. Quando ainda estava trabalhando no órgão público do segundo concurso, teve oportunidade de conviver com dois irmãos deficientes auditivos. Um deles não escutava nem falava absolutamente nada e só se comunicava por sinais. O outro ouvia alguma coisa e devia ser pessimamente mal, pois falava pior ainda. Mas talvez se sentisse muito superior ao irmão, pois às vezes, apontando para ele, fazia o seguinte comentário com um sorriso maroto no rosto:
- Esse aí não “cutcha” nada!
 
  

6 comentários:

  1. Eu já estou com 3 graus para presbiopia. Já a audição está intacta, tem hora que eu até gostaria de ouvir menos; evitaria aporrinhações pelo barulho do vizinho, pela moto que passa na rua, pelo alarme do carro que me acorda de madrugada.
    Vou adicionar um novo ouvido aos de leproso e de tuberculoso. O ouvido de professor. Também nos adaptamos a ouvir os sussurros mais inaudíveis ao ser humano comum, para sabermos o que os alunos do fundão ficam falando ao nosso respeito.
    E sua sogra, na minha opinião, era (ou é, ainda é viva?)mais sábia do que surda. Aproveitava a deficiência auditiva para ficar livre e imune ao falatório e às fofocas ao seu redor. Não ter que dar opinião nem tomar partido.

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    1. Rapaz, nem se usassem megafone eu conseguiria ouvir a turma do fundo! Aliás, já te contei um caso acontecido com essa tchurma: a aluna que ficava pegando no pau do colega sentado ao lado dela, lá no fundão. Quanto à minha sogra, era realmente esperta, sempre pondo panos quentes nas discussões quase diárias dos filhos de sangu quente (muito quente). Mas não suportou a perda de dois filhos em pouco mais de um ano. Um de acidente e o outro de infarto. Aí ela perdeu o desejo de viver e foi definhando cada vez mais rápido.Morreu com 96 anos, se não me engano.

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  2. Jotabê, pode até excluir esse comentário depois de lê-lo. Tente acessar o Marreta e veja se você consegue. Aparentemente, surgiu um novo bloqueio, parece que meu blog foi classificado agora como "site de conteúdo enganoso". Verifique e tente me dizer.

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    1. Só comentários de posts antigos ficam sujeitos à minha aprovação. Este já entrou direto e só por isso não o excluí. Mas não notei nenhuma diferença entrando no Marreta (com todo respeito!) pelo BLogson. Normal.

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    2. Eu uso o Mozila Firefox como navegador e ele tem lá nas configurações um dispositivo anti-pishing, que detecta, alerta e mesmo bloqueia site denunciados pelo Google como "enganosos". Primeiro, ignorei o aviso e o blog surgiu para mim, porém sem exibir nenhuma imagem, seja nas postagens, seja na barra lateral. Eu não tava conseguindo nem fazer aquela última postagem, a da pesquisa do datafolha. Eu clicava em publicar, aparecia o aviso de que havia sido publicada, mas continuava como rascunho.
      Pesquisei na net, fui nas configurações e desabilitei o dispositivo antipishing do Firefox, e tudo voltou ao normal. De qualquer forma, parece que o Marreta, além de ser classificado como "conteúdo adulto", "conteúdo confidencial", agora tb é site enganoso.
      Provavelmente, farei uma postagem sobre isso e colocarei lá o alerta que apareceu para mim; salvei a tela com a advertência.
      Mas se você entrou (no bom sentido) sem nenhum problema, menos mal.

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    3. O que a gente não faz para deixar um amigo feliz, não é mesmo? Pããããta que....

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  Alguns pensamentos meio caóticos ou delirantes têm invadido minha mente. Se fosse outro o tempo, ficaria divagando e escrevendo abobrinhas...