quinta-feira, 9 de julho de 2020

QUEBRA DE ARQUIVO


Creio que o genial letrista Aldir Blanc, recentemente abatido pelo corona vírus sabia que a sina de alguns elevados e viadutos é cair e matar gente (mesmo que só raramente aconteça uma tragédia assim - ainda bem!). Deve ser por isso que escreveu este verso irônico e inesperado: “Caia a tarde feito um viaduto”.

Em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte alguns elevados, viadutos ou uma simples ciclovia à beira-mar já desabaram total ou parcialmente, sempre causando a morte de pessoas que estavam no lugar errado, na hora errada. Assim aconteceu no dia 03 de julho de 2014, em Belo Horizonte.

Lembrei-me disso ao ver uma reportagem no jornal Hoje em Dia sobre a situação atual de famílias atingidas pelo desabamento do Viaduto Batalha dos Guararapes:

“O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) pediu o bloqueio de R$ 30 milhões em bens das empresas Consol e Cowan e de valores entre R$ 100 mil e R$ 250 mil de funcionários públicos ligados à Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap) pela queda do viaduto Batalha dos Guararapes, na avenida Dom Pedro I, na Região da Pampulha, em Belo Horizonte, ocorrida há seis anos.
O desastre deixou duas pessoas mortas e 23 feridas e, após a conclusão de investigação criminal, o MPMG denunciou 11 pessoas, que foram acusadas de uma série de erros durante o planejamento, execução e fiscalização das obras”.

Como se pode ver, nada mais premonitório que o nome escolhido para o viaduto, pois até hoje as famílias das duas pessoas que morreram estão na batalha para receber a devida indenização. Sem contar a Prefeitura, que até hoje tenta reaver junto à construtora a modesta grana de R$ 13 milhões investidos no elevado.

Aparentemente, nenhum dos responsáveis fala nada (ou quase nada), fingindo-se de morto. Um deles fingiu tanto que efetivamente morreu, justamente o fundador e dono da construtora.

O que me causou revolta na época do acidente foi a velocidade com que demoliram não só a parte que caiu como todo o resto do elevado. Aparentemente, uma queima de arquivo (ou "quebra de arquivo"). Nessa época eu já estava aposentado, mas fiquei tão puto quando soube dessa intenção, que mesmo nada entendendo de cálculo estrutural, pensei em mandar para o apresentador de um telejornal local alguns comentários. Como demorei a me decidir, o assunto esfriou como notícia e eu desisti. Dias atás, ouvindo falar novamente do acidente, desentranhei o comentário nunca enviado, só para postar no blog. Olha ele aí:

Você é mais novo que eu, mas, por identificação de faixa etária, submeto ao seu arguto julgamento algumas questões que fazem minha cabeça coçar. Como disse a senhora sua mãe, “o mundo acabou e ninguém se deu conta disso”. Sábias palavras, excelente ironia a sua ao reproduzi-las. E parece mesmo que o mundo da ética, da decência, da honestidade e da vergonha na cara acabou mesmo.

Segundo li nos jornais, a construtora alega que a fundação foi concebida e calculada como “bloco”, quando deveria ter sido calculada como “viga”. O erro seria, portanto, da empresa que elaborou o projeto. Já a empresa projetista alega que não houve erro de cálculo, mas de metodologia construtiva. Com isso, devolveu a batata quente para a construtora.

Por conta desse jogo de empurra, algumas perguntas surgiram em minha mente:
- Por que um laudo indicativo de erro no projeto da fundação foi apresentado tão rapidamente pela construtora?
- Após a queda da alça do viaduto foi feito algum teste não destrutivo para verificar a resistência do concreto utilizado? (o aparelho chama-se esclerômetro). Se não foi, porque ninguém pensou nisso?
- Por que não fazem esse teste na parte que desejam demolir?
- Por que parece haver uma ânsia mal disfarçada para demolir a alça que ainda está intacta (e escorada)? Seria para “apagar o rastro” de quem efetivamente errou?
- Por que não se contrata em caráter emergencial uma empresa de cálculo para refazer, revisar e conferir o projeto original?
- Se ocorreu um problema apenas na fundação e pilar da parte que caiu, porque não deixar escorada a alça que está intacta e demolir apenas o pilar e fundação (caso o cálculo esteja errado)?
- É possível fazer isso? Acredito que sim, porque a estrutura, em geral, não é “soldada” ao pilar. Normalmente ela “descansa” sobre "aparelhos de apoio". Não é fácil, certamente, mas será muito mais barato que demolir tudo e refazer sabe Deus quando.
Não creio que você tenha poder para mudar nada, mas já que, como disse, somos nós que pagaremos por essa esculhambação, fica o consolo de lembrar a fala do personagem do Jô Soares: “eu não sou palhaço, mas estão me fazendo de palhaço”. Concorda?

O que aconteceu depois disso eu não sei ou não me lembro. Mas, em virtude deste post, resolvi dar uma fuçada rápida na internet e descobri um laudo intitulado "Viaduto Batalha dos Guararapes: Uma análise técnica do acidente no Bloco do Pilar P3", apresentado em Outubro/Novembro de 2017 - três anos depois (assim entendi) - no 59º Congresso Brasileiro do Concreto. É uma leitura bastante técnica, mas dá para um leigo perceber que tanto a empresa projetista quanto a construtora cometeram erros que levaram à queda do viaduto. Quem quiser conhecer o laudo e ver algumas fotos, o link é este:
http://raulneuenschwander.com.br/wp-content/uploads/2017/08/ARTIGO-IBRACON-59CBC0523-VIADUTO-GUARARAPES-REVISADO.pdf

Para encerrar este post sem graça, preciso dizer que a administração municipal seguinte entendeu que um viaduto naquele lugar era desnecessário e que o trânsito local poderia ser controlado apenas com o uso de semáforos. Dá para entender agora por que meu sonho irrealizado sempre foi ter uma construtora?

4 comentários:

  1. Esse comentário não tem nada a ver com o postagem, pode apagar depois se quiser. Duas perguntas. Você conhece a rádio Inconfidência FM? Encontrei ela por acaso na internet e tô ouvindo direto. Você tem algum conhecido de São João Del Rey? É que tem havido um número bem razoável de visitas deste lugar ao Marreta e eu pensei que pudesse ser alguém conhecido seu que chegou lá através de você.

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    1. Sim e ouço muito (mas só no carro, pois não temos mais rádio em casa). A FM é 100% dedicada à música brasileira, daí o nome Brasileiríssima. É empresa pública do Estado de Minas Gerais. De manhã, de quatro às seis tem o programa "Trem Caipira", só de música raiz e raiz de grife (Renato Teixeira, Almir Sater, etc. Olha a programação aí. http://inconfidencia.com.br/modules/programacao/index.php?op=listagem&cat=1&exib=0 Quanto a São João Del Rey não conheço (pelo que eu saiba) ninguém.

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    2. Eu tô ouvindo mais à noite, de fim de semana, quando todo mundo vai dormir e eu fico tomando umas. Eu escuto pela internet, usando uma caixinha de som de bluetooth que meu filho ganhou.
      E dê uma olhada só nessa charge, o desenho parece coisa sua:
      https://domtotal.com/charge/2983/2020/07/bolsonaro-com-suspeita-de-covid-19/

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    3. Genial! Mas há uma diferença básica: o Duke é realmente cartunista. E excelente.

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