sexta-feira, 11 de outubro de 2019

DOIS POEMAS DE MIA COUTO


Talvez para boa parte das pessoas que me conhecem eu possa parecer um cara culto, pois gosto de música menos comercial, já ouvi falar de muita coisa, cito fatos, pensamentos, ideias e curiosidades sobre gente ilustre e a época em que viveram e - sacrilégio! - nunca comento sobre futebol.

Curiosamente, há muitos anos, ganhei de presente uma bíblia da cultura inútil, o "Livro dos Fatos de Isaac Asimov", com 3.000 (!!!) curiosidades sobre dezenas ou centenas de assuntos. Impossível não ler o livro todo - mesmo que tenha ficado intoxicado com ao final. Era muita cultura inútil! Acabei emprestando o livro para meu pai (que nunca o devolveu). Por essas e outras, posso dizer que sou razoavelmente bom em cultura superficial.

Mas essa cultura de fachada é só um out-door que esconde minha ignorância abissal, mais profunda que "the deep blue sea", que a Fossa das Marianas. Já senti vergonha de toda essa incultura, já fiquei na fossa por causa disso, mas me libertei. Hoje em dia, confesso alegremente minha condição de toupeira cultural, pois reconheço grandes nomes da literatura mundial, mas a maioria ainda permanece inédita para mim. Gosto muito de poesia mas nada sei da obra dos poetas mais cultuados. Gosto muito de música mas a erudita para mim ainda é um muro de difícil escalada. O mesmo acontece com pintores, escultores e filósofos. Por isso, sempre aviso que minha falsa cultura é alimentada por orelhas de livros, documentários da TV, a cabo, revistas semanais e cadernos "B" de jornais diários que leio na sala de espera de médicos ou dentistas.

Assim, foi com imensa e prazerosa surpresa que tomei conhecimento ontem da poesia de Mia Couto, graças a um comentário anônimo publicado no blog "A Marreta do Azarão". Corri à internet (força de expressão, claro!) para saber mais e descobri uma insuspeitada e imensa afinidade com a obra do poeta. Aliás, foi amor à primeira vista. Mas meu desconhecimento era tão gigantesco que ao ler o nome "Mia" pensei tratar-se de poeta do sexo feminino (ou poetisa). E por gostar tanto do que li, resolvi fazer uma espécie de brincadeira ao comparar-me com ele. Mas isso fica para outra ocasião. Ao dia de hoje bastam suas próprias preocupações (acho que errei a citação). Não importa, bom mesmo é ler um poema do Mia Couto. Melhor ainda se forem dois. Olha aí.

SER, PARECER

Entre o desejo de ser
e o receio de parecer
o tormento da hora cindida

Na desordem do sangue
a aventura de sermos nós
restitui-nos ao ser
que fazemos de conta que somos.


FUI SABENDO DE MIM

Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia

pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia

fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei

eu vi
a árvore morta
e soube que mentia

3 comentários:

  1. Rapaz, a velha memória está rateando, hein? Você comentou que só conheceu Mia Couto agora, por conta de um comentário anônimo. Porém, eu já publiquei esse mesmo poema em fevereiro do ano passado : e você até comentou na ocasião.
    Veja lá:
    https://amarretadoazarao.blogspot.com/2018/02/o-deus-cego-de-mia-couto.html

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    1. PUTA QUE PARIU! Não me lembrava de nada disso! A sensação que tive foi como se estivesse lendo seu post pela primeira vez! Por essas e outras é que eu preciso corrigir: não é "a velha memória", mas "a memória velha". Talvez seja uma boa ideia procurar um geriatra ou neurologista (falando sério!), pois estou assustado com isso. Valeu!

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    2. Acho que não é motivo para tanto alarme, não deve ser um começo de Alzhemeir - ainda.
      Aliás, ouvi uma muito boa dia desses, um diferencial entre o Alzheimer e o mero esquecimento, distração : se esquecemos onde colocamos as chaves de casa, do carro etc, é somente esquecimento, desatenção; porém, se encontrarmos as chaves e não nos lembrarmos do para que que elas servem, aí é Alzhemeimer.

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MARCADORES DE UMA ÉPOCA - 4