sábado, 26 de outubro de 2019

MERITOCRACIA E OUTRAS MUMUNHAS


Meu amigo virtual Marreta manifestou recentemente um certo alívio por eu não ter ainda "empacotado". E o motivo dessa preocupação foi o fato de ter ficado mais de uma semana sem postar nada, logo eu que fazia postagens diárias (nos áureos tempos, nos áureos tempos!). Agradeço constrangido o interesse, mas o motivo dessa "ausência" foi justamente a ausência de assunto (a repetição é proposital!). Já li em algum lugar que um sapo só enxerga quando há movimento. Dele próprio ou de algum lanche que passe voando mais perto. Se non è vero, è bene trovato

Quero dizer com isso que sou meio sapão, meio reativo, pois preciso ser cutucado para reagir. E não estou falando do Marreta, mas de uma "amiga de facebook". Essa jovem (é jovem) compartilhou um vídeo do Mário Sérgio Cortella sendo entrevistado no programa "Pânico". No trecho compartilhado ele aborda o tema meritocracia e faz os seguintes comentários (deu trabalho a transcrição!):

"Meritocracia é um tema que só tem presença válida quando todos partem no mesmo ponto de igualdade. Se todo mundo partir no mesmo lugar (provável corte do vídeo) Piscina. Saímos todos nós daqui agora e vamos para uma piscina fazer uma disputa de 100 metros. A piscina é a mesma, a temperatura da água é a mesma e nós vamos ter o mesmo tempo livre para fazer o percurso. Então você diz: “terá mérito quem chegar em primeiro e se esforçar mais”. Mas como é que a gente faz com quem não sabia nadar direito, nunca tinha entrado numa piscina, tá com uma dificuldade? Meritocracia funciona quando você parte de um ponto comum.  Igualdade de oportunidades significa equidade. Equidade é você não dar uma educação idêntica para necessidades diferentes. Numa democracia uma escola boa é aquela que não trata igualmente pessoas que tem condições desiguais. Trata igualmente no mérito, no respeito, na dignidade (...) Tratar igualmente os desiguais na condição é aprofundar a desigualdade".

Pois é, meu caro Cortella, até eu que sou uma besta quadrada já dizia coisa semelhante lá no início do Blogson. Aliás, até mesmo o Rui Barbosa já pensava assim! Segundo meu amigo Marreta, a "Águia de Haia" (ou Cabeção) teria dito que "A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade... Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real."

Minha visão sobre isso foi registrada no post "Citius Altius, Fortius" e em outros menos votados (a propaganda é a arma do negócio). Por isso, para mim está OK que o Cortella diga o que disse, pois ele é foda. Aliás, a melhor palestra que já ouvi até hoje foi justamente dada por ele no auditório da empresa pública onde trabalhei. Mesmo assim, ainda que não tenha sua cultura, relevância e didatismo, vou me atrever a comentar o mesmo tema, só que jogando na defesa (se o Lula usava imagens futebolísticas em suas lenga-lengas, por que eu não poderia? Isso sem falar no Bolsonaro, que prefere imagens "matrimoniais").

O lance é o seguinte: Parece ser uma lei natural o fato de que quando não se gosta de alguma coisa, situação ou pessoa, é quase sempre possível arranjar argumentos razoáveis para embasar essa aversão. Da mesma forma, quando se está em sintonia com alguma ideia, comportamento ou atitude, também é razoavelmente fácil arranjar argumentos ou exemplos que corroborem essa identificação. No caso da “meritocracia” é a mesma coisa. 

O Cortella é um fenômeno, mas deixou de dizer que em algum momento deverá existir uma linha de corte, um ponto de partida que valha para todos.  Caso contrário, precisaremos recuar até à maternidade ou, de forma radical, aos espermatozoides ou até mesmo aos primeiros organismos que surgiram na Terra, pois "Tratar igualmente os desiguais na condição é aprofundar a desigualdade"

Isso é bastante óbvio, pois ninguém de bom senso espera ver uma disputa entre o Cesar Cielo e Jotabê numa prova de 100 metros de crawl. Mas isso não invalida a ideia de se valorizar e premiar o mérito pessoal. Aparentemente, a valorização do mérito não é uma ideia muito simpática para o pessoal da Esquerda...

Sou favorável a direitos e oportunidades fundamentais iguais para todo mundo: homem ou mulher, rico ou pobre, preto ou branco, hetero ou gay, velho ou novo e por aí vai. Mas não aceito que desiguais sejam tratados como iguais só para que se promova a "justiça social". Inteligente é diferente de "burro", trabalhador é diferente de preguiçoso, honesto é diferente de ladrão, estudioso é diferente de malandro.

Por isso mesmo, uma linha de corte é necessária. Juntar meia dúzia de gatos pingados em variados graus de intimidade com o nado livre em uma prova de natação é bastante diferente de uma competição olímpica que reúna os melhores atletas do mundo. É nas olimpíadas ou nos torneios de futebol, basquete ou vôlei que o mérito individual fica mais visível. Desqualificar a meritocracia com exemplos em que dessemelhantes são tratados de forma igual é um comportamento muito simplista. Obviamente, longe de mim pensar que esse é o pensamento do Cortella (a quem admiro muito). Além do mais, a meritocracia não é medida apenas em um instante, pois é parte e consequência de um processo longo e continuado.

Acho louvável que a moçada adepta do "Lula Livre" sonhe com uma sociedade igualitária, mas, como disse o grande poeta (e ex-comunista) Ferreira Gullar, "a natureza é injusta. A justiça é uma invenção humana. Um nasce inteligente e o outro burro. Um nasce inteligente, o outro aleijado. Quem quer corrigir essa injustiça somos nós".

Para não ficar só na divagação, vamos tratar de casos reais: quando fiz vestibular para engenharia, havia mais de três mil candidatos disputando uma das quinhentas vagas existentes. Por ter estudado pra caramba, passei em vigésimo sétimo lugar. Infelizmente, não tive maturidade nem bom senso durante o curso. O resultado foi terminar o curso em um dos últimos lugares (quatrocentos e cacetada). Se isso acontecesse com duas pessoas distintas, o mérito de cada um ficaria totalmente visível. Ponto para o jovem sonhador que passou no vestibular e ferro para o idiota que se formou aos trancos e barrancos.

Outro caso curioso é o de um casal muito humilde que conheço. Moram na favela e têm três filhos. O marido é super gente fina e trabalhou de servente aqui em casa. O filho mais velho era uma criança falante e esperta, mas hoje está preso por tráfico de drogas; enquanto isso, o segundo acaba de passar no vestibular de direito. Se ambos tiveram a mesma educação familiar, as mesmas condições iniciais, como deixar de pensar no mérito de cada um?

Esta é a mensagem da resposta que dei à minha amiga de facebook. Devemos valorizar o mérito sempre, mesmo que precisemos ajustar e calibrar os “instrumentos de aferição”. E para terminar, só um jogo de palavras, uma brincadeira ao estilo Jotabê.

Talvez algumas pessoas se oponham à meritocracia por sua terminação arrogante (cracia), pois Kratos em grego significa “poder, domínio” (Jotabé também é cultura!). Por isso, para maior aceitação e reconhecimento do mérito, poderiam ser criadas novas designações a partir de sufixos gregos conhecidos. Por exemplo:
De Sophos (“sabedoria, conhecimento”) surgiria “Meritosofia”. Bacana, não? De Philos (“apreço, amor”) sairia “Meritofilia”. Para evitar injustiças e erros de avaliação, de Nomos (“método, lei, regra”) surgiria a severa “Meritonomia”. Mas deveria ser evitada a todo custo a utilização do sufixo Phobos (“medo”). “Meritofobia” não, nem pensar.


2 comentários:

  1. Muito simples a questão da meritocracia : o melhor vence e pronto. Muito complicada a questão da meritocracia em tempos de politicamente correto. Para você ter uma ideia, eu trabalho com um professora de física cujo marido também é físico, tem dois pós-doutorados no exterior e vive a prestar concursos públicos para universidades federais. Você sabia que mesmo nesses concursos, em que os concorrentes têm que ter pelo menos doutorados, existem cotas raciais? Se houver três ou quatro finalistas e um for negro, independente do currículo, a vaga será dele.
    Agora eu pergunto : ainda que tenha havido uma desvantagem inicial para o concorrente negro, isso lá em sua "fase embrionária" de estudante, ela já não foi nivelada, uma vez que ele chegou a ter título de doutor? Com que razão, ou desculpa, manter a cota?
    Como professor, conheci vários casos como o que relatou. Em um deles, dois irmãos, mesmos pais, mesma criação, mesmo ambiente escolar, de vizinhança etc; um também se envolveu com tráfico e vive entrando e saindo da cadeia; o outro, no ano que vem se forma em oficial pela academia militar do Barro Branco.
    Gostei da citação do Ferreira Gullar, eu não conhecia.

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    1. Pois é, à medida que "evoluímos", fomos perdendo o impacto da velha e boa seleção natural.

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