Com tanto escritor bom por aí, repetir o Veríssimo
pode parecer sacanagem ou confissão de ignorância.
Talvez seja isso mesmo, mas o fato é que sou fã total do Veríssimo, total
mesmo. E a crônica transcrita hoje, além de ser
hilariante, é uma aula de como criar um texto de humor (bom, nem todo mundo
consegue). Não tinha como não “bi-reverenciar” seu autor. Por isso, som na
caixa!
Uma boa maneira de começar um conto é imaginar uma situação rigidamente formal
— digamos, um recital de quarteto de cordas — e depois começar a desfiá-la,
como um pulôver velho. Então vejamos. Um recital de quarteto de cordas.
O quarteto entra no palco sob educados
aplausos da seleta platéia. São três homens e uma mulher. A mulher, que é
jovem e bonita, toca viola. Veste um longo vestido preto. Os três homens estão
de fraque. Tomam os seus lugares atrás das partituras. Da esquerda para a
direita: um violino, outro violino, a viola e o violoncelo. Deixa ver se não
esqueci nenhum detalhe. O violoncelista tem um grande bigode ruivo. Isto pode
se revelar importante mais tarde, no conto. Ou não.
Os quatro afinam seus instrumentos. Depois,
silêncio. Aquela expectativa nervosa que precede o início de qualquer concerto.
As últimas tossidas da platéia. O primeiro violinista consulta seus pares com
um olhar discreto. Estão todos prontos, o violinista coloca o instrumento sob o
queixo e posiciona seu arco. Vai começar o recital. Nisso...
Nisso, o quê? Qual a coisa mais insólita que
pode acontecer num recital de um quarteto de cordas? Passar uma manada de zebus
pelo palco, por trás deles? Não. Uma manada de zebus passa, parte da platéia
pula das suas poltronas e procura as saídas em pânico, outra parte fica
paralisada e perplexa, mas depois tudo volta ao normal. O quarteto, que
manteve-se firme em seu lugar até o último zebu — são profissionais e, mesmo,
aquilo não pode estar acontecendo — começa a tocar. Nenhuma explicação é pedida
ou oferecida. Segue o Mozart.
Não. É preciso instalar-se no acontecimento,
como a semente da confusão, uma pequena incongruência. Algo que crie
apenas um mal-estar, de início e chegue lentamente, em etapas sucessivas, ao
caos. Um morcego que pousa na cabeça do segundo violinista durante um pizzicato.
Não. Melhor ainda. Entra no palco um homem carregando uma tuba.
Há um murmúrio na platéia. O que é aquilo? O
homem entra, com sua tuba, dos bastidores. Posta-se ao lado do violoncelista. O
primeiro violinista, retesado como um mergulhador que subitamente descobriu que
não tem água na piscina, olha para a tuba entre fascinado e horrorizado. O que
é aquilo? Depois de alguns instantes em que a tensão no ar é como a corda de um
violino esticada ao máximo, o primeiro violinista fala:
— Por favor...
— O quê? — diz o homem da tuba, já na
defensiva. — Vai dizer que eu não posso ficar aqui?
— O que o senhor quer?
— Quero tocar, ora. Podem começar que eu
acompanho.
Alguns risos na platéia. Ruídos de
impaciência. Ninguém nota que o violoncelista olhou para trás e quando deu com
o tocador de tuba virou o rosto em seguida, como se quisesse se esconder. O
primeiro violinista continua:
— Retire-se, por favor.
— Por quê? Quero tocar também.
O primeiro violinista olha nervosamente para
a platéia. Nunca em toda a sua carreira como líder do quarteto teve que
enfrentar algo parecido. Uma vez um mosquito entrou na sua narina durante uma
passagem de Vivaldi. Mas nunca uma tuba.
— Por favor. Isto é um recital para quarteto
de cordas. Vamos tocar Mozart. Não tem nenhuma parte para a tuba.
— Eu improviso alguma coisa. Vocês começam e
eu faço o um-pá-pá.
Mais risos na platéia. Expressões de
escândalo. De onde surgiu aquele homem com uma tuba? Ele nem está de fraque.
Segundo algumas versões veste uma camisa do Vasco. Usa chinelos de dedo. A violista
sente-se mal. O violinista ameaça chamar alguém dos bastidores para
retirar o tocador de tuba a força. Mas ele aproxima o bocal do seu instrumento
dos lábios e ameaça:
— Se alguém se aproximar de mim eu toco pof!
A perspectiva de se ouvir um pof naquele
recinto paralisa a todos.
— Está bem — diz o primeiro violinista. —
Vamos conversar. Você, obviamente, entrou no lugar errado.
Isto é um recital de cordas. Estamos nos preparando para tocar Mozart. Mozart
não tem um-pá-pá.
— Mozart não sabe o que está perdendo — diz o
tocador de tuba, rindo para a platéia e tentando conquistar a sua simpatia.
Não consegue. O ambiente é hostil. O tocador
de tuba muda de tom. Torna-se ameaçador:
— Está bem, seus elitistas. Acabou.
Onde é que vocês pensam que estão, no século XVIII? Já houve 17 revoluções
populares depois de Mozart. Vou confiscar estas partituras em nome do povo.
Vocês todos serão interrogados. Um a um, pá-pá.
Torna-se suplicante:
— Por favor, só o que eu quero é tocar um
pouco também. Eu sou humilde. Não pude estudar instrumento de cordas. Eu mesmo
fiz esta tuba, de um Volkswagen velho. Deixa...
Num tom sedutor, para a violista:
— Eu represento os seus sonhos secretos. Sou
um produto da sua imaginação lúbrica, confessa. Durante o Mozart, neste
quarteto anti-séptico, é em mim que você pensa. Na minha barriga e na minha
tuba fálica. Você quer ser violada por mim num alegro assai, confessa...
Finalmente, desafiador, para o violoncelista:
— Esse bigode ruivo. Estou reconhecendo. É o
mesmo bigode que eu usava em 1968. Devolve!
O tocador de tuba e o violoncelista
atracam-se. Os outros membros do quarteto entram na briga. A platéia agora
grita e pula. É o caos! Simbolizando, talvez, a falência final de todo o
sistema de valores que teve início com o iluminismo europeu ou o triunfo do
instinto sobre a razão ou ainda, uma pane mental do autor. Sobre o palco, um
dos resultados da briga é que agora quem está com o bigode ruivo é a violista.
Vendo-a assim, o tocador de tuba pára de morder a perna do segundo violinista,
abre os braços e grita: "Mamãe!"
Nisso, entra no palco uma manada de zebus.
Crônica extraída do
livro "O Analista de Bagé", L & PM Editores Ltda - Porto Alegre,
1981, pág. 58.