sábado, 1 de maio de 2021

NOITES DA INFÂNCIA

Faz algum tempo que deixei minhas memórias de lado, mas algumas já estão registradas e programadas. Como existem alguns que gostam de ler os "causos" que eu conto, resolvi contar um pequenininho, só porque está intimamente ligado a meu pai. Quem lê o que escrevo sabe que não sou nada condescendente com "Seu Amintas" (forma de tratamento usada por mim depois que me casei) e que falo o que penso dos seus defeitos e temperamento irascível.

Falar de forma pouco elogiosa sobre ele não significa que eu não amasse Seu Amintas (tenho certeza que gostava dessa minha descontração). Pelo contrário! Ele não era meu ídolo, nem eu tinha dele uma visão idealizada. Ele era apenas o pai que eu amava, um pai que nos amava sem meias medidas e que me ensinou, pelo exemplo, a amar nossos filhos da mesma forma. Se já escrevi alguma coisa semelhante ao que vou contar, peço que me perdoem, pois é difícil me lembrar de tudo o que já saiu aqui no Blogson. Dito isso, vamos às lembranças.

Morávamos na casa de minha avó materna, junto com oito tios e tias, minha avó e meu avô. Duas crianças e doze adultos. Nessa época não havia ainda televisão em Belo Horizonte. Depois da "janta" (não consigo me lembrar do que comíamos à noite), ficávamos pentelhando por ali enquanto os adultos conversavam, até nossa mãe nos mandar dormir. Como não tínhamos outra opção, obedecíamos. Eu, meu irmão e nossos pais dormíamos no mesmo quarto, em um barracão (edícula) nos fundos da casa. A cama de casal ficava entre a minha e a de meu irmão.

Para nos manter deitados ou por outro motivo qualquer (saco cheio dos cunhados, por exemplo), nosso pai nos contava histórias. Começou com suas lembranças de infância, das empregadas de nossa avó, das traquinagens e peraltices (isso é só para dar um tom de antiguidade) cometidas por ele, seus irmãos e pelo primo Odilon. Falou também dos doidos mansos de Oratórios e Ponte Nova, dentre eles uma mulher meio desaforada e talvez já um pouco idosa, conhecida por "Sá Maria me Atende", que às vezes ia à casa de minha avó pedir esmola ou comida, se não me engano. Finalmente, falou das galinhas garnisés de pescoço pelado que eram para ele o suprassumo da beleza animal (apesar de serem uma das coisas mais feias). E, claro, contou sobre um carrinho ou charretinha que teve, puxada por um bode branco a que deu o nome de Cabritito.

Para nós, meninos presos, criados em cidade grande, aquelas histórias eram magníficas, melhores que qualquer conto das mil e uma noites ou coisa parecida. Assim, contrariando seu desejo provável de que dormíssemos logo, sempre pedíamos mais histórias. Até que as lembranças se esgotaram, pois já tinha contado tudo que poderia nos contar.

Foi aí que teve início a fase ficcional. Começou a inventar histórias com dois personagens de quadrinhos que eram publicados na revista "O Tico Tico" (é, moçada, sou velho pra caramba!): Faustina e Zé Macaco. Creio que eram histórias estilo bang bang ou filmes de caratê bem no estilo "filmes mudos do Carlitos", sempre com algumas porradas, chutes na bunda e bandidos sendo atirados longe depois de rodar sobre as cabeças, seguros pela heroína Faustina apenas por uma perna ou braço. Creio que o Zé Macaco não deu muito ibope e logo foi abandonado.

Mas as coisas ficaram realmente empolgantes quando essa dupla foi substituída pelo Cabritito e pela Sá Maria me Atende. Aí o delírio tomou conta das histórias (e ele nem bebia!), pois logo, logo o bode branco casou-se com a Sá Maria me Atende. E o mais bacana é o fato de ser ela a primeira super-heroína brasileira! Uma super-heroína desconhecida, caipira, louca, casada com um bode e que, além da força física descomunal, voava! E só eu e meu irmão sabíamos de sua existência.

Bom, aqui cabe um parêntese: na época d' O Pasquim, o Jô Soares escreveu um artigo divertidíssimo sobre os super-heróis criados pelo Stan Lee & companhia, lembrando que, ao contrário do Super-Homem, que voava sem nenhuma explicação plausível, toda a turma de super-heróis da Marvel tinha seus truques, a saber: o Homem-Aranha não voava, mas deslocava-se pendurado em uma teia fixada em algum canto dos quadrinhos; o Thor arremessava seu martelo (ou marreta, não é, Azarão?); o Capitão América jogava seu escudo como se fosse um bumerangue; o Surfista Prateado tinha uma prancha de matar de inveja os brothers; o Homem de Ferro tinha foguetes na armadura, o Namor tinha asas nos pés, o Hulk pulava a grandes distâncias e por aí afora.

Pois é, a primeira super-heroína brasileira voava, graças a um artifício bem funcional: batata-doce. Na iminência de pegar algum criminoso que tinha fugido (e que seria atirado longe depois de orbitar em volta dela, agarrado por um braço ou perna), a louca comia batata-doce e logo começava a peidar. Primeiro, um po po po contido, para logo pegar aceleração (Pruuum!) e Fium!!! - sair voando a jato (sem brincadeira, eu escrevi isso agora até chorando de rir!). Era quase impossível dormir depois dessas emoções!


Alguns anos antes de meu pai morrer, lembrando-me dos casos que ele nos contava, perguntei por que não escrevia aquelas lembranças de sua infância. Ele deu um sorriso entre surpreso e irônico e comentou que meu irmão tinha pedido a ele a mesma coisa. Aí eu insisti para que fizesse isso, mas ele comentou: - "Quem iria querer ler essas coisas?” E a resposta foi - “Eu (lógico!), meus filhos, meus irmãos, meus sobrinhos”!". Mas ele não se convenceu ou nunca quis fazer isso. Sinceramente, creio que naquela época, quando já havia perdido quase todos os irmãos, revolver e reviver suas lembranças seria como arrancar a casca de uma ferida que custou a cicatrizar e que ainda doía.

Aqueles casos tão saborosos, aquelas histórias ingênuas que embalaram meu sono de criança hoje estão cada vez mais esmaecidos na minha memória e, talvez, na de meus irmãos. Minha irmã, onze anos mais nova que eu, teve a gentileza de me enviar o registro de alguns dos casos reais (que ela também ouviu um dia), mas imagino que nunca soube das sensacionais aventuras de Cabritito e Sá Maria me Atende.

Olha ele aí, um híbrido de Stan Lee caboclo com Lewis Carroll caipira, em foto tirada na época de vacas gordas, quando eu nem tinha nascido ainda).



Sua benção, meu Pai, a benção, Seu Amintas!

(13/02/2016)

19 comentários:

  1. Só pra não perder o costume de perturbar gostaria que tivesse uma foto do Seu Amintas pra ilustrar. Agora, cá entre nós, cê tá ficando cada dia mais "nojento" nessa categoria Memória, zulivre einhh. Sensacional, mesmo e mesmo.
    "J"

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    1. Agoraaaaaaaaaaaaaaaaaaaa e não é que ele tinha pinta! Quase um Carlos Galhardo http://www.kboing.com.br/fotos/imagens/4c920e0062ee3.jpg
      "J"

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    2. Ele ficou bem na foto, apesar da "cabeça de pião", como ele se definia. E o estilo era o usual da época, bigodinho fino e cabelo gomalinado.

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  2. Seu Amintas (não seria Amynthas?), o precursor da fanfiction :-)

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    1. Essa foi na veia! Apesar de todos os protestos dele, o nome passou a ser Amintas mesmo, inclusive na CI. E o tratamento que eu dava a ele era, na verdade, "Sò" Amintas. Valeu!

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  3. Não só você, seus filhos, seus irmãos e seus sobrinhos : eu também leria com muito prazer as Aventuras de Cabritito e Sá Maria me Atende. O cabritito seria uma espécie de gato guerreiro da Sá Maria? Uma chita? Um capeto?
    Vou dar meu pitaco aqui também. Acho que seu pai parecia muito o Carlos Chagas, famos médico sanitarista, que ganhou até estampa na antiga nota de dez mil cruzados.
    https://www.bsecbh.com.br/peca.asp?ID=7410660

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    1. O Cabritito era seu ideal de beleza animal. Seria um bode branco cavanhacudo, mas era só "esposo" da Sá Maria, ela sim a verdadeira super-heroina. Quanto às histórias da dupla, como éramos crianças, imagino que seriam mais ao estilo do Super Pateta ou Super Pato, nada da magnificência dos Heróis Marvel. O que eu pedi a ele para escrever eram suas lembranças de menino do interior, menino de pé descalço morando no cu do mundo. A sorte é que minha irmã, onze anos mais nova que eu e morando com ele até sua morte teve tempo de ouvir e lembrar de alguns casos. Mas o grosso da "obra" se perdeu. Mudando de assunto, meu pai era médico, mas um médico que se recusou a exercer a profissão (escolhida só para agradar a minha avó).

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    2. Vi agora a imagem. A cabeça (segundo ele próprio dizia) tinha mais um formato de pião (cabeção). Fiz um post com as fotos de todos os filhos da "Vovó Vita" e do Seu Augusto, mas não me lembro que título tem.

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    3. Nunca exerceu a medicina? E se dedicou a que ofício?
      Talvez se na época dele houvesse blogs, a obra dele teria ficado registrada, feito a sua. Feito a minha. Mas não sei se eu quero algum possível futuro neto lendo a herança do avô.

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    4. Na época em que ele se formou o médico também podia ser farmacêutico, profissão que exerceu até os negócios da família irem para o brejo. Em um dos governos do Getúlio houve um esforço para industrialização do país. Aí liberaram os farmacêuticos para exercer a função de químico. No frigir dos ovos ele era médico, farmacêutico e químico. Antes de se aposentar, trabalhou uns quinze anos como químico de uma fábrica de cimento. Da "obra" não posso falar, pois foi meu irmão que se incumbiu de limpar o que deixou. Ele guardava uma papelada incrível que recortava de jornais, revistas. Anotava muitq coisa, escreveu outro tanto, mas não sei o que meu irmão deixou preservado. Talvez tenha feito o que meus tios fizeram antes de morrer: queimaram tudo.

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    5. E meu irmão pode ter feito o mesmo com a papelada de meu pai. Sei que ele guardava os rótulos dos produtos farmaceuticos produzido pelo laboratório que a família teve. Meu irmão disse que me daria uma cópia dessas relíquias, mas como não conversamos mais a coisa ficou por aí. Mas, tudo bem.

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  4. "é difícil me lembrar de tudo o que já saiu aqui no Blogson" - cria um sistema mnemônico, tipo associar caso caso que escreveu a uma década da sua vida (são 7 décadas até agora) e procura fotos da internet das coisas dessa época para ativar a memoria

    abs!

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    1. É uma boa, mas resolvi de outra forma: não sei se notou, tenho publicado listas (inspirado em quem?) separando os posts por marcador predominante.

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    2. São quatorze listas ao todo. Mas estou focado mesmo é nos e-books. Só que eu já esqueci o caminho das pedras.

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    3. listas são legais, mas vc consegue associá-las às memórias da sua cabeça semelhante à maneira que vc ativa tais memórias quando olha álbuns de fotos da sua família?

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    4. É que você não captou a intenção. As listas foram feitas para os leitores, não para mim. Na última ou penúltima você entenderá o motivo. Mas tenho tentado colocar algumas figuras, o problema é que às vezes eu acho estar prostituindo o texto com imagens que não sintetizam bem o assunto.

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    5. E se vc fizesse listas para vc?

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    6. E se a imagem servir como massagista do texto ao invés de prostituta?

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    7. Não pensei em uma imagem sexualizada, pensei em um desvio de sentido, tal como transformar uma piada em texto aparentemente sério ou o inverso disso. Quanto às listas para mim, como disse estou de olho nos e-books. Por isso, estou selecionando material. Neese caso, seleciono marcador por marcador, copio os posts correspondentes a cada um e depois vou descartando. Está divertido, mesmo que meus "e-books" sejam encaminhados apenas a meus filhos. Se der certo, bem se não der, OK também. Abraços.

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MARCADORES DE UMA ÉPOCA - 4