sexta-feira, 8 de maio de 2015

IDENTIDADE CULTURAL

Um dia, estávamos conversando fiado – como sempre – quando eu disse a meu amigo "Digão" (não era esse seu apelido real) alguma coisa como "a gente precisa..." (não sei como é em outros lugares, mas em BH, pelo menos, é comum usar-se a expressão "a gente" como sinônimo de "nós"). Com uma falsa impaciência, meu amigo retrucou:
- A gente, não. Você precisa! Fui claro, James?
Diante do comentário, perguntei o que significava o "James" na história. E ele explicou:
- É como aquela história do nobre inglês e seu mordomo. Um dia, pela manhã, o mordomo entra no quarto do patrão, abre as cortinas e diz: - "Parece que teremos um belo dia hoje, milord". Ao que o nobre responde - "Errado, James. Eu terei o meu belo dia e você terá o seu belo dia!".

Talvez os politicamente corretos abominem e condenem o elitismo contido nessa piada -  que eu acho ótima. E falei dela para tratar de um assunto que me incomoda: sempre tem alguém falando em "identidade latino-americana" como se isso fosse real. Recentemente, no canal a cabo GLOBOSAT eu vi um trecho de um documentário chamado "Nosotros", onde um brasileiro fala coisas como "um tour pela identidade do nosso povo". E aí surge a pergunta: qual povo?

Embora às vezes me considere um pouco elitista, não me considero xenófobo em hipótese nenhuma. Isso não significa que me identifique com os traços culturais dos países da América hispânica. E o motivo é simples: o Brasil foi colonizado por Portugal, não pela Espanha; a língua falada é o português, não o espanhol. A cultura brasileira é uma salada feita com ingredientes de várias outras culturas (italiana, japonesa, alemã, etc.), mas, até onde enxergo, não tem quase nenhuma influência latino-americana. Por isso, com que identificar-me? Só porque estamos no mesmo continente?

Independente da política praticada e da ideologia adotada em cada país, tenho o maior respeito e admiração pela maioria deles. Apesar disso,  não consigo me identificar culturalmente com esses países nem com seus habitantes - embora lamente os equívocos cometidos na Venezuela, Bolívia, Equador, Argentina e Cuba e me solidarize com a população de cada um.

Também não me identifico com os países não hispânicos das Américas Latina e Central - Haiti, Suriname, etc. Ampliando um pouco mais o raciocínio, acredito e sinto que meus valores, minha cultura e visão de mundo têm origem no Ocidente. Por isso, mesmo que respeite e os admire muito, não consigo me identificar com a cultura e valores praticados nos países asiáticos ou africanos.

Para finalizar, conto outro caso que explica muito bem meu sentimento em relação a essa "identidade latino-americana":

Na mesma empresa onde eu e meu amigo "Digão" trabalhávamos, trabalhavam dois engenheiros brasileiros naturalizados, de origem russa, que eram pai e filho. Ou Pawel e Victor. O Victor – também conhecido como "Vitão" – era super gente fina e, por ter chegado ao Brasil ainda criança, falava português sem nenhum sotaque. O pai, extremamente formal e respeitoso, era conhecido por todos como “Dr. Pawel” e era também super gente boa.  Só uma coisa o aborrecia no comportamento do filho: ele dirigia-se ao Victor em russo e recebia a resposta em português. Segundo o Vitão, o pai ficava puto com isso. Perguntei o porquê da resposta em português e a explicação é que ele, Victor, era brasileiro e não tinha motivo nenhum para falar russo. Sabia falar, compreendia tudo o que o pai falava, mas recusava-se a usar a língua paterna. A identificação dele era com o Brasil, não com a Rússia.

Um dia ele contou um caso que me deixou estupefato, boquiaberto: seu pai, Dr. Pawel, tinha lutado na Segunda Guerra como soldado russo (lógico, né?). Foi ferido, aprisionado e levado a um campo de concentração (ou de prisioneiros) alemão. Em determinado momento, uma epidemia de tifo, difteria ou outra doença qualquer atingiu os prisioneiros. Não havia remédio nem enfermaria para todo mundo. A solução foi escolher aqueles que tinham chance de sobreviver e trabalhar no campo. Um médico alemão olhava superficialmente os prisioneiros enfileirados e ia escolhendo na base do – "Você, passe para o lado de cá; você aí do lado, pode ficar onde está". E essa divisão definia os que seriam salvos e os que seriam deixados para morrer por falta de tratamento.

Não precisa dizer que o Pawel, por ser grandão, forte e atarracado, foi mandado para a enfermaria, onde recuperou a saúde, atendido pelo tal médico alemão.

A guerra acabou, os prisioneiros foram libertados e, depois de algum tempo, o engenheiro russo veio parar no Brasil, mais precisamente em Belo Horizonte, mais precisamente ainda na Rua Leopoldina, localizada no bairro Santo Antonio.

O médico alemão também veio para o Brasil, mais precisamente para Belo Horizonte, mais precisamente ainda para a Rua Leopoldina, localizada no bairro Santo Antonio (a repetição foi proposital). Morando na mesma rua, acabaram se reencontrando (ou apenas se reconhecendo).  

Ao final dessa história, totalmente fascinado pela coincidência "cósmica", perguntei ao Victor se seu pai e o médico conviviam, se tinham ficado amigos - afinal, um tinha salvado a vida do outro! E a resposta do Vitão, surpreendente para mim, definiu a questão da identificação cultural:

- Lógico que não! Meu pai é russo e ele é alemão!


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