Achei que tinha perdido para sempre um arquivo em Word do livro “200 Crônicas Escolhidas” de Rubem Braga, mas estava enganado. Graças à minha capacidade de desorganização e sabe Deus por qual motivo, encontrei uma cópia em pdf desse livro em uma pasta onde nunca deveria estar. Pois bem, agradecendo a mim mesmo pela zona que faço com meus arquivos, descolei uma deliciosíssima crônica para encantar leitoras e leitores deste blog. Queria escrever assim!
Ciro dos Anjos escreveu, faz pouco tempo, uma de suas páginas mais belas sobre as antigas fazendas mineiras. Ele dá os requisitos essenciais a uma fazenda bastante lírica, incluindo, mesmo, uma certa menina de vestido branco. Nada sei dessas coisas, mas juro que entendo alguma coisa de arquitetura urbana, embora Caloca, Aldari, Jorge Moreira e Ernani, pobres arquitetos profissionais, achem que não.
Assim vos direi que a primeira coisa a
respeito de uma casa é que ela deve ter um porão, um bom porão com entrada pela
frente e saída pelos fundos. Esse porão deve ser habitável porém inabitado; e
ter alguns quartos sem iluminação alguma, onde se devem amontoar móveis
antigos, quebrados, objetos desprezados e baús esquecidos. Deve ser o cemitério
das coisas. Ali, sob os pés da família, como se fosse no subconsciente dos
vivos, jazerão os leques, as cadeiras, as fantasias do carnaval do ano de 1920,
as gravatas manchadas, os sapatos que outrora andaram em caminhos longe.
Quando acaso descerem ao porão, as crianças
hão de ficar um pouco intrigadas e como crianças são animais levianos, é
preciso que se intriguem um pouco, tenham uma certa perspectiva histórica,
meditem que, por mais incrível e extraordinário que pareça, as pessoas grandes
também já foram crianças, a sua avó já foi a bailes, e outras coisas
instrutivas que são um pouco tristes mas hão de restaurar, a seus olhos, a
dignidade corrompida das pessoas adultas.
Convém que as crianças sintam um
certo medo do porão; e embora pensem que é medo do escuro, ou de aranhas
caranguejeiras, será o grande medo do Tempo, esse bicho que tudo come, esse
monstro que irá tragando em suas faces negras os sapatos das crianças, sua
roupinha, sua atiradeira, seu canivete, as bolas de vidro, e afinal a própria
criança.
O único perigo é que o porão faça da criança,
no futuro, um romancista introvertido, o que se pode evitar desmoralizando
periodicamente o porão com uma limpeza parcial para nele armazenar gêneros ou
utensílios ou mais facilmente tijolos, por exemplo; ou percorrendo-o com uma
lanterna elétrica bem possante que transformará hienas em ratos e cadafalsos em
guarda-louças.
Ao construir o porão deve o arquiteto obter um certo grau de
umidade, mas providenciar para que a porta de uma das entradas seja bem fácil
de arrombar, porque um porão não tem a menor utilidade se não supomos que
dentro dele possa estar escondido um ladrão assassino, ou um cachorro raivoso,
ou ainda anarquistas búlgaros de passagem pela cidade.
Um porão supõe um alçapão aberto na sala de
jantar. Sobre a tampa desse alçapão deve estar um móvel pesado, que fique
exposto ao sol ao menos duas horas por dia, de tal modo que à noite estale com
tanto gosto que do quarto das crianças dê a impressão exata de que o alçapão
está sendo aberto, ou o terrível meliante já esteja no interior da casa.
Não preciso fazer referência à varanda, nem
ao caramanchão, nem à horta e jardim; mas se não houver ao menos um cajueiro,
como poderá a família viver com decência? Que fará a família no verão, e que
hão de fazer os sanhaços, e as crianças que matam sanhaços, e as mulheres de
casa que precisam ralhar com as crianças devido às nódoas de caju na roupa?
Imaginem um menino de 9 anos que não tem uma só mancha de caju em sua camisinha
branca. Que honras poderá esperar essa criança na vida, se a inicia assim sem a
menor dignidade?
Mas voltemos à casa. Ela deve ter janela para
vários lados e se o arquiteto não providenciar para que na rua defronte passem
bois para o matadouro municipal ele é um perfeito fracasso. E o piso deve ser
de tábuas largas, jamais enceradas, de maneira que lavar a casa seja uma das
alegrias domésticas. Depois de lavado o assoalho, são abertas as portas e
janelas, para secar. E quando a madeira ainda estiver um pouco úmida, nas
tardes de verão, ali se devem deitar as crianças, pois eis que isso é doce.
O
que é essencial em uma casa – e entretanto quantos arquitetos modernos
negligenciam isso, influenciados por ideias exóticas! – é a sala de visitas.
Seu lugar natural é ao lado da sala de jantar. Ela deve ter móveis incômodos e
bem envernizados e deve permanecer rigorosamente fechada através das semanas e
dos meses. Naturalmente se abre para receber visitas, mas as visitas dessa
categoria devem ser rigorosamente selecionadas em conselho de família.
As
crianças jamais devem entrar nessa sala, a não ser quando chamadas
expressamente para cumprimentar as visitas. Depois de apertar a mão da visita,
e de ouvir uma pequena referência ao fato de que estão crescidas (pois em uma
família honrada as crianças estão sempre muito crescidas), devem esperar ainda
cerca de dois minutos até que a visita lhes dirija uma pilhéria em forma de
pergunta, por exemplo: se é verdade que já tem namorada. Devem então sorrir com
condescendência (podem utilizar um pequeno ar entre a modéstia e o desprezo) e
se retirar da sala.
Não desejo me alongar, mas não posso deixar de corrigir uma
omissão grave.
Trata-se de uma gravura, devidamente emoldurada, com o retrato
do Marechal Floriano Peixoto. Essa gravura deve estar no porão, não pregada na
parede, mas em todo caso visível mediante a lanterna elétrica, em cima de um
guarda-comida empoeirado, apoiado à parede. Pois é bem inseguro o destino de
uma família que não tem no porão, empoeirado, mas vigilante, um retrato do
Marechal de Ferro, impertérrito, frio, a manter na treva e no caos, entre
baratas, ratos e aranhas, a dura ordem republicana.
Outubro, 1946
Outubro, 1946
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