quinta-feira, 28 de julho de 2022

MENINOS, EU VI


Meninos, eu vi. Se alguém conhece esta frase escrita aqui propositalmente sem aspas, está de parabéns, sinal de que teve aulas decentes de português e algumas noções de literatura brasileira. Se não conhece, relaxe, pois é a frase final de I-Juca Pirama, um poema longo e chato pra caramba escrito por Gonçalves Dias. Além do mais não estou aqui para falar de literatura, pois o marcador de hoje é “Memória”.
 
Pois é, meninos, eu vi. A vantagem de ter duzentos anos de idade é a chance de ter visto ao vivo e a cores coisas e fatos que a maioria das leitoras e leitores do velho Blogson mal ouviu falar. E que seria tão impactante que merecesse um post mal escrito e sem graça? Isto: em 1985, quando o José Sarney assumiu a presidência da república, a economia estava uma zona e a inflação anual lá na casa do caralho, para mais de 200%, por aí.
 
O ministro da economia era Dilson Funaro, dono da fábrica de brinquedos Trol. Apesar de gente boa e bem intencionado, acabou "trolando" o Brasil inteiro.  Para conseguir dar uma “chave de arrumação” no país, lançou o Plano Cruzado, que congelou todos os preços e criou nova moeda, o “Cruzado”, resultante da divisão por mil do antigo Cruzeiro.
 
Esse congelamento pareceu ser uma boa para a população e para a economia, agora livre da hiperinflação. Mas só aparentemente, pois não demorou muito para que vários produtos sumissem dos supermercados. Lembro-me de que não havia mais carne nos açougues, pois os criadores recusavam-se a vender carne mais barata do que estava custando para produzir. Assim, multiplicaram-se os abates clandestinos. O açougueiro perto de nossa casa batia a campainha e nos entregava a carne que previamente havíamos encomendado a ele, pagando um preço bem superior ao que estava congelado.
 
Apesar disso, tive a “brilhante” ideia de entrar em um consórcio de automóvel. Nunca tinha conseguido comprar um carro zero e o congelamento me levou a acreditar que o medo que sentia dos consórcios com seus sucessivos aumentos não tinha mais razão de ser. Daí a tentar entrar em um foi vapt vupt. Mas todos os grupos de todos os consórcios já estavam completos, sinal de que muita gente tinha pensado o mesmo que eu, só que com mais agilidade.
 
Acabei descobrindo um grupo que iria ser aberto, mas só de carros bacanas, top de linha. Fiquei meio cabreiro, mas embarquei nessa canoa. No primeiro mês já comecei a sentir os efeitos de uma mensalidade que consumia 25% da minha renda líquida. E a canoa só enchendo de água.
 
Foi aí que aconteceu a trolagem do dono da Trol. O congelamento de preços foi mantido até as eleições para governador, deputados e senadores. Essa jogada fez com que o PMDB elegesse 22 governadores e mais da metade dos deputados federais. Seis dias depois das eleições novo plano econômico foi lançado e decretado o fim do congelamento. As mensalidades já pagas do consórcio que eu estava bufando para honrar praticamente viraram pó: o reajuste aplicado foi de 70 ou 80%.
 
Como esse aumento provocaria uma inadimplência gigantesca, o governo autorizou uma autêntica operação caracu (é claro que você sabe o que isso significa!): a mensalidade subiu “apenas” 40% e a diferença foi aplicada ao prazo dos consórcios. No meu caso, o prazo original de 24 meses passou para 32 meses, com mensalidade reajustada em 40%. Resultado: corri para vender minha participação pelo mesmo preço que já havia pagado. Consegui, mas teve gente que vendeu com deságio de 20%.
 
Durante alguns meses eu me divertia ligando para o consórcio só para saber qual o valor da mensalidade daquele mês. Lembro-me de que chegou a 80% da minha renda líquida. E eu ria igual a uma hiena, imaginando os apuros do comprador (que tinha comprado para dar de presente para uma amante).
 
Essa lembrança começou a voejar no meu cérebro como pirilampos em volta de uma lâmpada, por culpa das manobras do atual governo para tentar reeleger nosso imbroxável presidente, com descontinhos aqui, agrados ali e todo tipo de jogadas eleitoreiras cujo provável efeito em futuro próximo será jogar a economia do país na sarjeta.
 
Em 1986/1987 o povo confirmou ou descobriu tardiamente que não há almoço grátis. As recentes medidas econômicas adotadas me fazem pensar que em 2022/2023 os filhos e netos daqueles que celebraram o contrato caracu também serão chamados a entrar com sua cota de sacrifício. Eu disse “cota de sacrifício”? Para mim está bem assim. Só sei que o governo continuará entrando com a cara.

 

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