sábado, 9 de julho de 2022

MANSO DE GAIOLA

 
Minha mulher detesta e evita ao máximo atender ao telefone que toca. Há vários motivos para isso, cada um de acordo com a época ou momento. Pode estar preparando o almoço, vendo o final da novela ou pressentir que deve ser alguma amiga que não se importa de conversar durante mais de uma hora. Há mais tempo, tinha receio de atender e saber que um familiar tinha morrido. Hoje, a melhor explicação é que está escutando pouco, fato que eu confirmo por também estar.
 
Só posso dizer que por essa idiossincrasia acabei me convertendo em uma espécie de mordomo, pois basta o telefone tocar para que eu saia de forma estabanada de onde estiver para atender quem está do outro lado da linha. E faço isso por entender que se o telefone existe e se ele toca é ilógico ignorar seu chamado irritante.
 
Nesta época de messengers e zaps os filhos e outros parentes raramente ligam. Mesmo assim, sempre corro para atender ligações interrompidas assim que eu aperto a tecla “talk” ou para recusar um pacote fabuloso de internet que a operadora “X” está oferecendo, desculpar-me por não poder fazer doações para alguma associação de que nunca ouvi falar ou até mesmo para agradecer a oferta de um plano coletivo de jazigos ou funerais.
 
Pouco importa o motivo ou a hora da ligação. Atendo a todas com a máxima cortesia e educação; ouço os dez ou vinte segundos iniciais, peço desculpas por interromper quem está falando, deixo claro que não estamos interessados ou que não podemos assumir mais nenhum compromisso financeiro, pois “sou aposentado” ou, como último recurso, aviso que “meu nome está no Serasa”. Se a pessoa ainda insiste em se fazer ouvida, aviso que não pretendo ser grosseiro ou deselegante, reitero meu desinteresse e digo que desligarei o telefone.
 
O problema é que às vezes nem consigo terminar de falar, pois a ligação é bruscamente interrompida, sinal de que nos tempos atuais a cortesia e a boa educação nem sempre são qualidades cultivadas por quem tem a má sina de precisar trabalhar em call centers ou telemarketing. Mesmo assim continuo a exercer diligentemente a função de mordomo ou telefonista.
 
Foi assim que recebi a notícia da morte do Fernando, um parente de minha mulher. Fiquei realmente triste, consternado ao saber disso. Aos poucos fui sabendo que precisava fazer uma cirurgia no coração, que estava morrendo de medo disso, que tinha sessenta e cinco anos e que morreu em consequência de um infarto fulminante alguns dias antes de fazer a tão temida operação. Meu filho comentou que isso foi bom para as finanças da família e para o cirurgião que o operaria, pois correria o risco de levar a culpa pelo falecimento durante ou após a cirurgia.
 
 
Meu relacionamento com ele poderia ser classificado de “sui-generis”, pois passei a maior parte da vida sentindo algum desprezo por ele, alguma impaciência para tolerar seu sorriso constrangido, sua aparência balofa e uma ironia triste que sempre percebi em tudo o que falava. Isso mudou quando fomos convidados a ir a uma festa em sua casa.
 
O motivo da minha má vontade e até desprezo pelo Fernando aconteceu no dia em que fomos apresentados. Minha mulher, suas irmãs e eu fomos à casa de seus pais onde ainda morava (horrendamente decorada com peixes voadores empalhados que seu excêntrico pai tinha comprado). E aqui cabe um parêntese.

Seu pai era médico e tão excêntrico que fazia as coisas mais inesperadas sem se preocupar em avisar a família. Como quando sumiu de casa por dois dias, durante a visita do Papa João Paulo a BH. Católico fervoroso, acampou na praça hoje conhecida como "praça do papa", à espera do pontífice, só para vê-lo de perto e assistir a missa que seria celebrada no lugar. Seus familiares só souberam disso ao vê-lo sentado na grama, pela televisão.  Antes desse episódio já tinha "dado um perdido" para lá de bizarro, pois simplesmente desapareceu por vários dias. A esposa, já meio desesperada ligou para um de seus colegas, tentando obter alguma notícia do marido. Só assim ficou sabendo que o fujão estava na Europa participando de um congresso de medicina. Curiosamente, morreu imediatamente após uma cirurgia no coração, creio que a mesma que seu filho temia fazer.

Voltando ao dia em que conheci o Fernando, ver aqueles peixes pendurados na parede da sala da casa, aquele mau gosto -  mesmo que não fosse culpa sua -, já me deixou incomodado. Fiquei sabendo que tocava piano e pedi que tocasse alguma coisa. Sorriu constrangido e disse que o piano estava desafinado.
 
Minhas cunhadas insistiram para que ele tocasse, ele tornou a dizer que estava desafinado, mas elas continuaram a insistir. Por isso – e esse foi seu erro – sentou-se ao piano (que estava mesmo desafinado) e começou a tocar. O som era tão horrível que ele logo parou com a exibição. Aquilo me deixou perplexo, pois eu jamais admitiria tocar violão se ele estivesse desafinado ou com alguma corda arrebentada, mesmo se o papa João Paulo me pedisse de joelhos!
 
Essa era a nossa diferença, nossa dessemelhança: eu sempre fui presunçoso, um pouco arrogante e vaidoso em relação a meus limitados dotes musicais, enquanto ele comportou-se de modo tímido, contido, humilde, totalmente diferente do meu modo de ser. E isso gerou minha pouca simpatia por ele.
 
Assim, quando chegava o Natal e ele aparecida na casa de minha sogra vestido de Papai Noel e distribuindo balas para as crianças, o máximo que eu fazia era sorrir de forma condescendente e comentar com alguém que "só mesmo o Fernando!” Mas isso não era elogio.
 
 
Sua casa era uma construção simples, dessas pré-fabricadas que se compra a prestação, mas extremamente funcional, graciosa e acolhedora. Foi construída (ou montada) em um loteamento novo, com urbanização correta e honesta, localizado em uma cidade da região metropolitana de BH. O terreno que comprou, localizado no final do condomínio, ficava exatamente ao lado de uma mata, de uma reserva florestal da companhia de abastecimento de água de BH, dela separado por uma rua calçada que circunda o condomínio.
 
Essa localização, o cheiro agradável de mato, o silêncio e os passarinhos que vinham em bandos comer o alpiste e sementes generosamente colocados por ele em pratos suspensos longe da casa foram os motivos para mudar meus sentimentos em relação a ele.
 
Fiquei tão encantado e surpreso com o que encontrei, com seu jeito sereno de receber os convidados, seu jeito bonachão, sem os costumeiros espasmos de falsa surpresa dos anfitriões, que comecei ali a sentir por ele uma simpatia genuína, sincera. Comemorava-se ali alguma coisa de que não consigo me lembrar. Só sei que foi um almoço agradabilíssimo, não pela qualidade do alimento, mas pelo local onde construiu sua casa.
 
Em lugar de comprar um apartamento de dois ou três quartos para ele, a segunda esposa e uma filha, optou por morar em um lugar que combinava com sua personalidade calma, cortês e amistosa; um lugar silencioso, longe do frenesi, do burburinho provocado pelo vai e vem de muitos carros, ônibus e gente.
 
Só ao descobrir que ele morava em um paraíso urbano, em uma casa sem gaiolas, sem viveiro, sem aves aprisionadas e que compartilhava o quintal de sua casa com os passarinhos da mata da Copasa é que eu finalmente percebi que ele era uma pessoa boa para se ter como amigo - cortês, dócil e amistoso e que viveu sua vida de professor universitário de um modo calmo, contido e tranquilo, manso como se fosse um passarinho criado em gaiola.

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