Minha mulher detesta e evita ao máximo atender
ao telefone que toca. Há vários motivos para isso, cada um de acordo com a
época ou momento. Pode estar preparando o almoço, vendo o final da novela ou
pressentir que deve ser alguma amiga que não se importa de conversar durante
mais de uma hora. Há mais tempo, tinha receio de atender e saber que um
familiar tinha morrido. Hoje, a melhor explicação é que está escutando pouco,
fato que eu confirmo por também estar.
Só posso dizer que por essa idiossincrasia acabei
me convertendo em uma espécie de mordomo, pois basta o telefone tocar para que
eu saia de forma estabanada de onde estiver para atender quem está do outro
lado da linha. E faço isso por entender que se o telefone existe e se ele toca
é ilógico ignorar seu chamado irritante.
Nesta época de messengers e zaps os
filhos e outros parentes raramente ligam. Mesmo assim, sempre corro para
atender ligações interrompidas assim que eu aperto a tecla “talk” ou para recusar um pacote fabuloso de internet que a
operadora “X” está oferecendo, desculpar-me por não poder fazer doações para
alguma associação de que nunca ouvi falar ou até mesmo para agradecer a oferta
de um plano coletivo de jazigos ou funerais.
Pouco importa o motivo ou a hora da ligação.
Atendo a todas com a máxima cortesia e educação; ouço os dez ou vinte segundos
iniciais, peço desculpas por interromper quem está falando, deixo claro que não
estamos interessados ou que não podemos assumir mais nenhum compromisso
financeiro, pois “sou aposentado” ou,
como último recurso, aviso que “meu nome
está no Serasa”. Se a pessoa ainda insiste em se fazer ouvida, aviso que
não pretendo ser grosseiro ou deselegante, reitero meu desinteresse e digo que
desligarei o telefone.
O problema é que às vezes nem consigo
terminar de falar, pois a ligação é bruscamente interrompida, sinal de que nos
tempos atuais a cortesia e a boa educação nem sempre são qualidades cultivadas
por quem tem a má sina de precisar trabalhar em call centers ou telemarketing.
Mesmo assim continuo a exercer diligentemente a função de mordomo ou
telefonista.
Foi assim que recebi a notícia da morte do
Fernando, um parente de minha mulher. Fiquei realmente triste, consternado ao
saber disso. Aos poucos fui sabendo que precisava fazer uma cirurgia no
coração, que estava morrendo de medo disso, que tinha sessenta e cinco anos e
que morreu em consequência de um infarto fulminante alguns dias antes de fazer a tão temida operação. Meu filho comentou que isso foi bom para as finanças da família e para o cirurgião que o operaria, pois correria o risco de levar a culpa pelo falecimento durante ou após a cirurgia.
Meu relacionamento com ele poderia ser
classificado de “sui-generis”, pois passei a maior parte da vida sentindo algum
desprezo por ele, alguma impaciência para tolerar seu sorriso constrangido, sua
aparência balofa e uma ironia triste que sempre percebi em tudo o que falava. Isso
mudou quando fomos convidados a ir a uma festa em sua casa.
O motivo da minha má vontade e até desprezo
pelo Fernando aconteceu no dia em que fomos apresentados. Minha mulher, suas
irmãs e eu fomos à casa de seus pais onde ainda morava (horrendamente decorada com peixes voadores empalhados que seu excêntrico pai tinha comprado). E aqui cabe um parêntese.
Seu pai era médico e tão excêntrico que fazia as coisas mais inesperadas sem se preocupar em avisar a família. Como quando sumiu de casa por dois dias, durante a visita do Papa João Paulo a BH. Católico fervoroso, acampou na praça hoje conhecida como "praça do papa", à espera do pontífice, só para vê-lo de perto e assistir a missa que seria celebrada no lugar. Seus familiares só souberam disso ao vê-lo sentado na grama, pela televisão. Antes desse episódio já tinha "dado um perdido" para lá de bizarro, pois simplesmente desapareceu por vários dias. A esposa, já meio desesperada ligou para um de seus colegas, tentando obter alguma notícia do marido. Só assim ficou sabendo que o fujão estava na Europa participando de um congresso de medicina. Curiosamente, morreu imediatamente após uma cirurgia no coração, creio que a mesma que seu filho temia fazer.
Voltando ao dia em que conheci o Fernando, ver aqueles peixes pendurados na parede da sala da casa, aquele mau
gosto - mesmo que não fosse culpa sua -, já me deixou incomodado. Fiquei sabendo
que tocava piano e pedi que tocasse alguma coisa. Sorriu constrangido e disse
que o piano estava desafinado.
Minhas cunhadas insistiram para que ele
tocasse, ele tornou a dizer que estava desafinado, mas elas continuaram
a insistir. Por isso – e esse foi seu erro – sentou-se ao piano (que estava
mesmo desafinado) e começou a tocar. O som era tão horrível que ele logo parou
com a exibição. Aquilo me deixou perplexo, pois eu jamais admitiria tocar
violão se ele estivesse desafinado ou com alguma corda arrebentada, mesmo se o papa João Paulo me pedisse de joelhos!
Essa era a nossa diferença, nossa dessemelhança:
eu sempre fui presunçoso, um pouco arrogante e vaidoso em relação a meus limitados dotes musicais, enquanto ele comportou-se de modo tímido, contido, humilde,
totalmente diferente do meu modo de ser. E isso gerou minha pouca simpatia por
ele.
Assim, quando chegava o Natal e ele aparecida
na casa de minha sogra vestido de Papai Noel e distribuindo balas para as
crianças, o máximo que eu fazia era sorrir de forma condescendente e comentar com alguém que "só mesmo o Fernando!” Mas
isso não era elogio.
Sua casa era uma construção simples, dessas pré-fabricadas
que se compra a prestação, mas extremamente funcional, graciosa e acolhedora.
Foi construída (ou montada) em um loteamento novo, com urbanização correta e
honesta, localizado em uma cidade da região metropolitana de BH. O terreno que
comprou, localizado no final do condomínio, ficava exatamente ao lado de uma
mata, de uma reserva florestal da companhia de abastecimento de água de BH,
dela separado por uma rua calçada que circunda o condomínio.
Essa localização, o cheiro agradável de mato,
o silêncio e os passarinhos que vinham em bandos comer o alpiste e sementes generosamente colocados por ele em pratos suspensos longe da casa foram os motivos para mudar meus
sentimentos em relação a ele.
Fiquei tão encantado e surpreso com o que
encontrei, com seu jeito sereno de receber os convidados, seu jeito bonachão, sem
os costumeiros espasmos de falsa surpresa dos anfitriões, que comecei ali a sentir por ele uma simpatia genuína, sincera. Comemorava-se ali alguma coisa de que não consigo me lembrar. Só sei que foi um almoço agradabilíssimo, não pela qualidade do
alimento, mas pelo local onde construiu sua casa.
Em lugar de comprar um apartamento de dois ou
três quartos para ele, a segunda esposa e uma filha, optou por morar em um
lugar que combinava com sua personalidade calma, cortês e amistosa; um lugar silencioso,
longe do frenesi, do burburinho provocado pelo vai e vem de muitos carros,
ônibus e gente.
Só ao descobrir que ele morava em um paraíso
urbano, em uma casa sem gaiolas, sem viveiro, sem aves aprisionadas e que compartilhava o quintal de sua casa com
os passarinhos da mata da Copasa é que eu finalmente percebi que ele era uma
pessoa boa para se ter como amigo - cortês, dócil e amistoso e que viveu sua
vida de professor universitário de um modo calmo, contido e tranquilo, manso como
se fosse um passarinho criado em gaiola.
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