domingo, 31 de julho de 2022

AULA DE CULTURA - VIVIAN CABRELI MANSANO


Um amigo de facebook compartilhou um texto tão interessante e instrutivo que eu não poderia deixar de publicá-lo aqui no velho Blogson, o permanente defensor dos frascos e comprimidos. Pensei em usar o título "aula de português", mas a "aula" é um pouco mais que isso, é uma aula de bom senso e  cultura (que tem andando em falta ultimamente). Curtam e aprendam.

"Não sou homofóbica, transfóbica, gordofóbica.

Eu sou professora de português.

Eu estava explicando um conceito de português e fui chamada de desrespeitosa por isso (ué).

Eu estava explicando por que não faz diferença nenhuma mudar a vogal temática de substantivos e adjetivos pra ser "neutre".

Em português, a vogal temática na maioria das vezes não define gênero.

Gênero é definido pelo artigo que acompanha a palavra.

Vou mostrar pra vocês:

O motorista. Termina em A e não é feminino.

O poeta. Termina em A e não é feminino.

A ação, depressão, impressão, ficção. Todas as palavras que terminam em ção são femininas, embora terminem com O.

Boa parte dos adjetivos da língua portuguesa podem ser tanto masculinos quanto femininos, independentemente da letra final: feliz, triste, alerta, inteligente, emocionante, livre, doente, especial, agradável, etc.

Terminar uma palavra com E não faz com que ela seja neutra.

A alface. Termina em E e é feminino.

O elefante. Termina em E e é masculino.

Como o gênero em português é determinado muito mais pelos artigos do que pelas vogais temáticas, se vocês querem uma língua neutra, precisam criar um artigo neutro, não encher um texto de X, @ e E.

E mesmo que fosse o caso, o português não aceita gênero neutro. Vocês teriam que mudar um idioma inteiro pra combater o "preconceito".

Meu conselho é: ao invés de insistir tanto na coisa do gênero, entendam de uma vez por todas que gênero não existe, é uma coisa socialmente construída.

O que existe é sexo.

Entendam, em segundo lugar, que gênero linguístico, gênero literário, gênero musical, são coisas totalmente diferentes de "gênero". Não faz absolutamente diferença nenhuma mudar gêneros de palavras. Isso não torna o mundo mais acolhedor.

E entendam em terceiro lugar que vocês podiam tirar o dedo da tela e parar de falar abobrinha, e se engajar em algo que realmente fizesse a diferença ao invés de ficar arrumando pano pra manga pra discutir coisas sem sentido."

 

sábado, 30 de julho de 2022

KIT BENGALA

 
“Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor”... Ops, errei a citação, pois eu estava buscando “a palavra mais certa, vê se entende o meu grito de alerta” (acho que agora acertei). E é isso que eu quero fazer: dar um “grito de alerta” para a juventude que inexplicavelmente se transformou em um grupo de doze amigas e amigos virtuais do Blogson (por quem sinto genuína e sincera simpatia mesmo sem conhecer.ninguém – exceto uma, que é amiga do mundo real).
 
Voltando um pouco no tempo, este blog está cheio de dicas, comentários e reflexões sobre o envelhecimento e suas peculiaridades. Mas essas dicas, esses posts - que fizeram meu amigo Marreta dizer que eu tratava o assunto de forma serena, tranquila, quase como se fosse um coach de envelhecimento – repetindo, essas dicas foram ficando cada vez mais desatualizadas à medida que a idade avançava.
 
Quando este blog foi criado eu tinha mimosos 64 anos e falava de coisas e preocupações surgidas a partir dos cinquenta anos. Hoje, o velho Blogson tem oito anos (já é um senhor!), eu tenho 72 anos e não falo nem penso mais como quando tinha cinquenta ou sessenta e quatro anos. Hoje a barra é totalmente diferente.
 
E nem adianta meu amigo Scant, um excelente coach de vida saudável e otimismo sugerir exercícios, leituras, meditação ou suplementos vitamínicos, pois nada mudará, nada fará o relógio do Tempo rodar ao contrário. E esse é o motivo do “grito de alerta”.
 
Hoje, sem nenhum aviso prévio, comecei a mancar da perna esquerda, graças à dor que sentia ao andar ou ao subir um mísero degrau. E aí pensei na dádiva que é ser jovem, ter juventude. Essa idade lembra um carro zero quilômetro onde tudo está na garantia, tudo funciona bem, tudo está zero bala. E tem cheiro de novo. Por isso me senti na obrigação de alertar “essa gente bronzeada” que lê as tranqueiras do Blogson.
 
Este texto é patético? Sim. É fruto de oportunismo devido à falta de assunto para publicar no blog? Em parte apenas, pois graças ao medo de cair e à dor que senti hoje com o simples ato de andar, cheguei até a pensar que está na hora de arrumar um “kit bengala” onde me apoiar, só para tentar minorar o desconforto que sentia.
 
Por isso, minha jovem amiga, meu jovem amigo, só posso te dizer: cuide-se, cuide de sua saúde física e mental, “carpe diem” sim, mas sem excessos sem exageros, pois a velhice é a porta de entrada do mundo das trevas, da saúde frágil, da depressão, da impossibilidade de corrigir os malfeitos da juventude.
 
Hoje é sábado, dia de festas, comemorações, baladas e motéis, um dia totalmente impróprio para que este post fosse publicado. Mas, quer saber? Foda-se, pois todos os dias para mim tem gosto de segunda-feira. Por isso, fica o lembrete: (enquanto é tempo) CUIDE-SE!

sexta-feira, 29 de julho de 2022

RECEITA DE CASA - RUBEM BRAGA

 
Achei que tinha perdido para sempre um arquivo em Word do livro “200 Crônicas Escolhidas” de Rubem Braga, mas estava enganado. Graças à minha capacidade de desorganização e sabe Deus por qual motivo, encontrei uma cópia em pdf desse livro em uma pasta onde nunca deveria estar. Pois bem, agradecendo a mim mesmo pela zona que faço com meus arquivos, descolei uma deliciosíssima crônica para encantar leitoras e leitores deste blog. Queria escrever assim!


Ciro dos Anjos escreveu, faz pouco tempo, uma de suas páginas mais belas sobre as antigas fazendas mineiras. Ele dá os requisitos essenciais a uma fazenda bastante lírica, incluindo, mesmo, uma certa menina de vestido branco. Nada sei dessas coisas, mas juro que entendo alguma coisa de arquitetura urbana, embora Caloca, Aldari, Jorge Moreira e Ernani, pobres arquitetos profissionais, achem que não.

Assim vos direi que a primeira coisa a respeito de uma casa é que ela deve ter um porão, um bom porão com entrada pela frente e saída pelos fundos. Esse porão deve ser habitável porém inabitado; e ter alguns quartos sem iluminação alguma, onde se devem amontoar móveis antigos, quebrados, objetos desprezados e baús esquecidos. Deve ser o cemitério das coisas. Ali, sob os pés da família, como se fosse no subconsciente dos vivos, jazerão os leques, as cadeiras, as fantasias do carnaval do ano de 1920, as gravatas manchadas, os sapatos que outrora andaram em caminhos longe.

Quando acaso descerem ao porão, as crianças hão de ficar um pouco intrigadas e como crianças são animais levianos, é preciso que se intriguem um pouco, tenham uma certa perspectiva histórica, meditem que, por mais incrível e extraordinário que pareça, as pessoas grandes também já foram crianças, a sua avó já foi a bailes, e outras coisas instrutivas que são um pouco tristes mas hão de restaurar, a seus olhos, a dignidade corrompida das pessoas adultas.

Convém que as crianças sintam um certo medo do porão; e embora pensem que é medo do escuro, ou de aranhas caranguejeiras, será o grande medo do Tempo, esse bicho que tudo come, esse monstro que irá tragando em suas faces negras os sapatos das crianças, sua roupinha, sua atiradeira, seu canivete, as bolas de vidro, e afinal a própria criança.

O único perigo é que o porão faça da criança, no futuro, um romancista introvertido, o que se pode evitar desmoralizando periodicamente o porão com uma limpeza parcial para nele armazenar gêneros ou utensílios ou mais facilmente tijolos, por exemplo; ou percorrendo-o com uma lanterna elétrica bem possante que transformará hienas em ratos e cadafalsos em guarda-louças.

Ao construir o porão deve o arquiteto obter um certo grau de umidade, mas providenciar para que a porta de uma das entradas seja bem fácil de arrombar, porque um porão não tem a menor utilidade se não supomos que dentro dele possa estar escondido um ladrão assassino, ou um cachorro raivoso, ou ainda anarquistas búlgaros de passagem pela cidade.

Um porão supõe um alçapão aberto na sala de jantar. Sobre a tampa desse alçapão deve estar um móvel pesado, que fique exposto ao sol ao menos duas horas por dia, de tal modo que à noite estale com tanto gosto que do quarto das crianças dê a impressão exata de que o alçapão está sendo aberto, ou o terrível meliante já esteja no interior da casa.

Não preciso fazer referência à varanda, nem ao caramanchão, nem à horta e jardim; mas se não houver ao menos um cajueiro, como poderá a família viver com decência? Que fará a família no verão, e que hão de fazer os sanhaços, e as crianças que matam sanhaços, e as mulheres de casa que precisam ralhar com as crianças devido às nódoas de caju na roupa? Imaginem um menino de 9 anos que não tem uma só mancha de caju em sua camisinha branca. Que honras poderá esperar essa criança na vida, se a inicia assim sem a menor dignidade?

Mas voltemos à casa. Ela deve ter janela para vários lados e se o arquiteto não providenciar para que na rua defronte passem bois para o matadouro municipal ele é um perfeito fracasso. E o piso deve ser de tábuas largas, jamais enceradas, de maneira que lavar a casa seja uma das alegrias domésticas. Depois de lavado o assoalho, são abertas as portas e janelas, para secar. E quando a madeira ainda estiver um pouco úmida, nas tardes de verão, ali se devem deitar as crianças, pois eis que isso é doce.

O que é essencial em uma casa – e entretanto quantos arquitetos modernos negligenciam isso, influenciados por ideias exóticas! – é a sala de visitas. Seu lugar natural é ao lado da sala de jantar. Ela deve ter móveis incômodos e bem envernizados e deve permanecer rigorosamente fechada através das semanas e dos meses. Naturalmente se abre para receber visitas, mas as visitas dessa categoria devem ser rigorosamente selecionadas em conselho de família.

As crianças jamais devem entrar nessa sala, a não ser quando chamadas expressamente para cumprimentar as visitas. Depois de apertar a mão da visita, e de ouvir uma pequena referência ao fato de que estão crescidas (pois em uma família honrada as crianças estão sempre muito crescidas), devem esperar ainda cerca de dois minutos até que a visita lhes dirija uma pilhéria em forma de pergunta, por exemplo: se é verdade que já tem namorada. Devem então sorrir com condescendência (podem utilizar um pequeno ar entre a modéstia e o desprezo) e se retirar da sala.

Não desejo me alongar, mas não posso deixar de corrigir uma omissão grave.

Trata-se de uma gravura, devidamente emoldurada, com o retrato do Marechal Floriano Peixoto. Essa gravura deve estar no porão, não pregada na parede, mas em todo caso visível mediante a lanterna elétrica, em cima de um guarda-comida empoeirado, apoiado à parede. Pois é bem inseguro o destino de uma família que não tem no porão, empoeirado, mas vigilante, um retrato do Marechal de Ferro, impertérrito, frio, a manter na treva e no caos, entre baratas, ratos e aranhas, a dura ordem republicana.
Outubro, 1946
 

quinta-feira, 28 de julho de 2022

PERPLEXIDADE

 

Eu nunca imaginaria que um diagrama displicentemente publicado pudesse ter tantos e tão desconhecidos atrativos. Refiro-me ao desenho que pode ser visto no post “Blogsongrama”. Desde que foi publicado venho observando seu número crescente de acessos, fazendo com que tenha se tornado o post com maior visualização nos últimos doze meses! Quer saber quantas? 308 visualizações até agora.

 

O mais louco para mim é que ele serviria apenas para indicar as fontes de alimentação dos novos blogs temáticos que criei (e que vão muito bem, obrigado). Mal comparando, é a mesma coisa que alguém viajar para algum país da Europa e, em vez de tirar fotos das paisagens e monumentos, ficar fotografando as placas de trânsito locais. Mucho loco!

MENINOS, EU VI


Meninos, eu vi. Se alguém conhece esta frase escrita aqui propositalmente sem aspas, está de parabéns, sinal de que teve aulas decentes de português e algumas noções de literatura brasileira. Se não conhece, relaxe, pois é a frase final de I-Juca Pirama, um poema longo e chato pra caramba escrito por Gonçalves Dias. Além do mais não estou aqui para falar de literatura, pois o marcador de hoje é “Memória”.
 
Pois é, meninos, eu vi. A vantagem de ter duzentos anos de idade é a chance de ter visto ao vivo e a cores coisas e fatos que a maioria das leitoras e leitores do velho Blogson mal ouviu falar. E que seria tão impactante que merecesse um post mal escrito e sem graça? Isto: em 1985, quando o José Sarney assumiu a presidência da república, a economia estava uma zona e a inflação anual lá na casa do caralho, para mais de 200%, por aí.
 
O ministro da economia era Dilson Funaro, dono da fábrica de brinquedos Trol. Apesar de gente boa e bem intencionado, acabou "trolando" o Brasil inteiro.  Para conseguir dar uma “chave de arrumação” no país, lançou o Plano Cruzado, que congelou todos os preços e criou nova moeda, o “Cruzado”, resultante da divisão por mil do antigo Cruzeiro.
 
Esse congelamento pareceu ser uma boa para a população e para a economia, agora livre da hiperinflação. Mas só aparentemente, pois não demorou muito para que vários produtos sumissem dos supermercados. Lembro-me de que não havia mais carne nos açougues, pois os criadores recusavam-se a vender carne mais barata do que estava custando para produzir. Assim, multiplicaram-se os abates clandestinos. O açougueiro perto de nossa casa batia a campainha e nos entregava a carne que previamente havíamos encomendado a ele, pagando um preço bem superior ao que estava congelado.
 
Apesar disso, tive a “brilhante” ideia de entrar em um consórcio de automóvel. Nunca tinha conseguido comprar um carro zero e o congelamento me levou a acreditar que o medo que sentia dos consórcios com seus sucessivos aumentos não tinha mais razão de ser. Daí a tentar entrar em um foi vapt vupt. Mas todos os grupos de todos os consórcios já estavam completos, sinal de que muita gente tinha pensado o mesmo que eu, só que com mais agilidade.
 
Acabei descobrindo um grupo que iria ser aberto, mas só de carros bacanas, top de linha. Fiquei meio cabreiro, mas embarquei nessa canoa. No primeiro mês já comecei a sentir os efeitos de uma mensalidade que consumia 25% da minha renda líquida. E a canoa só enchendo de água.
 
Foi aí que aconteceu a trolagem do dono da Trol. O congelamento de preços foi mantido até as eleições para governador, deputados e senadores. Essa jogada fez com que o PMDB elegesse 22 governadores e mais da metade dos deputados federais. Seis dias depois das eleições novo plano econômico foi lançado e decretado o fim do congelamento. As mensalidades já pagas do consórcio que eu estava bufando para honrar praticamente viraram pó: o reajuste aplicado foi de 70 ou 80%.
 
Como esse aumento provocaria uma inadimplência gigantesca, o governo autorizou uma autêntica operação caracu (é claro que você sabe o que isso significa!): a mensalidade subiu “apenas” 40% e a diferença foi aplicada ao prazo dos consórcios. No meu caso, o prazo original de 24 meses passou para 32 meses, com mensalidade reajustada em 40%. Resultado: corri para vender minha participação pelo mesmo preço que já havia pagado. Consegui, mas teve gente que vendeu com deságio de 20%.
 
Durante alguns meses eu me divertia ligando para o consórcio só para saber qual o valor da mensalidade daquele mês. Lembro-me de que chegou a 80% da minha renda líquida. E eu ria igual a uma hiena, imaginando os apuros do comprador (que tinha comprado para dar de presente para uma amante).
 
Essa lembrança começou a voejar no meu cérebro como pirilampos em volta de uma lâmpada, por culpa das manobras do atual governo para tentar reeleger nosso imbroxável presidente, com descontinhos aqui, agrados ali e todo tipo de jogadas eleitoreiras cujo provável efeito em futuro próximo será jogar a economia do país na sarjeta.
 
Em 1986/1987 o povo confirmou ou descobriu tardiamente que não há almoço grátis. As recentes medidas econômicas adotadas me fazem pensar que em 2022/2023 os filhos e netos daqueles que celebraram o contrato caracu também serão chamados a entrar com sua cota de sacrifício. Eu disse “cota de sacrifício”? Para mim está bem assim. Só sei que o governo continuará entrando com a cara.

 

quarta-feira, 27 de julho de 2022

SIM - "ELA"

 
Outro dia, remexendo em uma caixa cheia de papeis antigos, minha mulher encontrou uma folha de caderno com algumas anotações rascunhadas. Nela, um poema escrito quando devia ter uns vinte anos. Sem nenhum entusiasmo, entregou-me a folha e disse para rasgar e jogar fora depois que lesse – se eu quisesse ler. Não rasguei nem joguei fora, sentei-me em frente ao velho desktop e copiei os versos tratados com tanto desinteresse, já pensando em publicá-los no Blogson, pois gostei demais de sua aparente simplicidade (além disso, creio que o “ele” era eu). Como não havia um título, escolhi o que me pareceu mais coerente. E ela continuou com a iidentidade preservada.
 
 
Sim, amar é complicado
Sim, amar exige cuidados
Sim, amar é um dilema
Será que vale a pena?
 
Sim, amar é um perigo
Sim, se ele não é seu amigo
Sim, amar é perigoso
Se ele é enganoso
 
Você se dá, se entrega inteira
Ele acha isso besteira
Fingimento é um castigo
Você não sabe se isso é aquilo
 
Chega de besteira
Você é tão maneira
Se ele não está com nada
Você tem que estar centrada

 

 

segunda-feira, 25 de julho de 2022

ARQUEOLOGIA SENTIMENTAL

Nesse final de semana, à falta de coisa melhor para fazer, dediquei-me a tentar organizar uma pasta de fotos digitalizadas de meus avós, tios e primos. Com elas vieram também imagens digitais de alguns desses parentes, obtidas mais recentemente com os onipresentes smartphones. Hoje, minha mãe, dois tios e um primo são apenas lembranças.
 
Sempre digo não sentir saudade de minha infância ou juventude, mas não consegui ficar imune à saudade de pessoas já falecidas. Dois retratos merecem destaque: a irmã mais velha de minha mãe ainda está viva e aparece em um deles em plena juventude, com olhos de atriz de cinema mudo; na segunda, uma velhinha está sentada aos 103 anos em uma cadeira de rodas, curvada, alquebrada, frágil, com um olhar meio vago e sem saber que perdeu um de seus dois filhos para a Covid.
 
 
A boa emoção sentida ao rever imagens de pessoas queridas me fez visitar novamente o site de genealogia dos mórmons, onde comecei a “escavar” mais informações dos parentes já falecidos. E encontrei o registro de sepultamento e a causa mortis de meus pais, alguns tios e avós maternos. O registro que mais me encantou foi o de um tio nascido na Itália. Sabia que ele veio ainda criança para o Brasil e que não falava italiano, mas o dialeto de sua cidade natal. E lá estava ela, identificada no “Registro de Falecimento”: Cotignola, Ravenna, Emilia-Romagna, Itália. O próximo passo será procurar esse lugar no Google Maps.
 
 
Esses retratos em preto e branco antigos, escaneados, comparados com os mais recentes, coloridos, mostram o efeito impiedoso da passagem do tempo nessas pessoas. Além disso, provocaram em mim uma reação estranha e inesperada, a sensação de que as fotos antigas é que eram as reais, elas é que mostravam a essência de cada retratado, uma essência cheia de magia e encantamento, provocando em mim talvez o mesmo tipo de emoção que um arqueólogo sente ao fazer nova descoberta, antes guardada e escondida sob camadas e mais camadas de solo.

domingo, 24 de julho de 2022

O SALVADOR

 
Minha mulher já vinha a algum tempo reclamando da lentidão de seu notebook, que demorava uma eternidade para inicializar, arquivos grandes gastavam vários minutos para ser salvos, etc. Já exasperada com o desempenho de seu computador, deu a cantada:
 
- Você bem poderia me dar de presente um notebook novo. Presente de aniversário, de dia do nosso casamento e dia dos namorados!
 
Não tinha como recusar aquela “oferta”, pois sou a pior pessoa do mundo para comprar presentes. Como já contei aqui no blog, desde o início do namoro, devo ter comprado para ela quase quinhentos presentes, computados todos os aniversários, Dias dos Namorados, Natal, Dias das Mães e aniversários de casamento. Essa é uma estimativa bastante razoável, pois leva em consideração apenas um presente para cada pessoa (quantidade subdimensionada) e o efeito multiplicador provocado pelo nascimento dos filhos. E ainda dei um desconto de 20% no total encontrado (544)!
 
Agora, o atestado de incompetência: desse mundaréu de presentes comprados desde 1970, acertei apenas cinco, dois deles graças à ajuda de amigas de minha mulher. Por isso, a sugestão da compra de novo notebook foi recebida com alívio e entusiasmo.
 
Equipamento novo recebido, meu filho teve a “brilhante” ideia de limpar e formatar o antigo, passado agora para meus domínios. E o computador velho onde estou batucando este texto seria (será) levado por ele, pois é antigo, funciona com uma versão do Windows não mais atualizada pela Microsoft, etc.
 
Próximo passo (“Oh, Deus, por que me abandonastes?”): copiar para o novo notebook todas as fotos dos dois computadores. Só a cópia de um deles para um HD externo demorou quase um dia. E assim, foram transferidas umas dez mil fotos, algumas com mais de dez cópias iguais, pois minha mulher tem perfil acumulador e salva mais de uma vez em várias pastas, com medo de perder as imagens, qualquer imagem.
 
Esse desejo comprovou-se impraticável por ocupar todo o HD do “presente”. A solução foi eliminar as imagens iguais. Tentando ajudar, copiei umas três mil fotos divididas em oitocentos arquivos de imagens escaneadas, alguns com duas, três e até quatro fotos por página escaneada. Resultado final do meu trabalho: 925 retratos sem repetição (ela ainda está às voltas com outras seis mil imagens). Sinceramente, mais que programa de índio, fazer isso foi pura diversão.
 
Mas agora é que vem o motivo deste post: como eu passarei a usar um notebook mais novo e mais moderno que o desktop que estou usando agora, todos os seus arquivos foram copiados para o HD externo – pastas pessoais, arquivos do Blogson, “textos para ler”, poemas de diversos autores, letras de música, cifras de violão, fotos das famílias de meus pais, literatura das boas e um arquivo obtido em um site alemão, com a cópia integral em Word do livro “200 Crônicas Escolhidas” de Rubem Braga (de onde às vezes tirava um crônica para publicar no blog).
 
Ontem, conversando com minha mulher sobre as fotos, ela disse que poderia apagar tudo do desktop (as fotos!), pois já as tinha copiado. Beleza! Voltei para o computador, identifiquei a pasta das fotos, cliquei shift-del e tudo foi excluído, porque esse negócio de mandar arquivos para a lixeira é coisa de frouxo.
 
Sabe Deus por que (deve ser punição por orgulho, empáfia e irresponsabilidade), a pasta “Memória”, que guardava os “textos para ler”, poemas e textos de autores consagrados e o arquivo em Word do livro “200 Crônicas Escolhidas” de Rubem Braga foi também excluída, sumiu, escafedeu-se.
 
Com uma dor de corno impossível de cura, só me restou lembrar o que dizia um colega todas as vezes que eu perdia arquivos gigantescos por nunca fazer backup:
- Todo mundo salva arquivos, todo mundo! Até Jesus salva! Só o Botelho que não.

sexta-feira, 22 de julho de 2022

O PRIMATA ESCORPIÃO

 
Alguém já me disse que “a porção melhor que trago em mim agora” é a de contador de “causos”, de histórias. Se é verdade eu não sei. Como diriam os italianos, se non è vero, è ben trovato”. Com esse empurrão inicial (quem está empurrando sou eu, OK?), resolvi contar algumas estorinhas (ou historinhas).
 
A primeira delas é fruto de meu conhecimento enciclopédico de porra nenhuma e fala da Terra, “a nave nossa irmã”. As grandes mudanças geológicas e climáticas já sofridas pela Terra não são coisa para amador. Florestas viraram desertos, desertos transformaram-se em pastagens verdejantes, a temperatura global subiu, desceu, gigantescos terremotos e tsunamis aconteceram, placas tectônicas se chocaram, continentes se separaram, cataclismos cósmicos arregaçaram o planeta, a maior zona.
 
E quem mais sofreu com essas mudanças radicais foram os animais e plantas que existiam na época desses acontecimentos. Sabe Deus quantas espécies já foram extintas! Só nos últimos 400 mil anos aconteceram quatro ciclos glaciais e interglaciais alternadamente. Mas (até onde eu sei – e eu não sei nada de nada!) essas mudanças nunca foram provocadas pelos manos, pelos sapiens. Pelo menos até agora, pois a atividade industrial dos dois últimos séculos está mostrando que os manos conseguem foder com o clima do planeta de uma forma antes inimaginável.
 
A segunda historinha é uma fábula cuja autoria é atribuída por alguns a Esopo. Tentei confirmar, mas sabe como é a internet... E é a conhecida história da rã e do escorpião, devidamente reproduzida entre aspas:
 
“Um escorpião pediu para uma rã ajudá-lo a atravessar o rio, pois não sabia nadar. A rã disse que nem pensar, pois ele iria picá-la e ela morreria. O escorpião, aparentando estar muito ofendido, retrucou:
- ‘Caraca, moleque’, se eu te picar nós dois morreremos – você envenenada e eu afogado. E eu não quero morrer!
A rã ficou meio cabreira, mas acabou concordando. O escorpião subiu em suas costas e a dupla partiu. Mais ou menos na metade da travessia o escorpião feriu-a com seu ferrão. Já sentindo os efeitos do veneno, a rã exclamou desesperada:
 - Por que você fez isso, seu corno? Agora nós dois vamos morrer!
Já afundando, o escorpião respondeu cantando:
- Ferroar é minha sina, eu gosto mesmo é de ocê”. E a fábula termina num gloob gloob geral (sinceramente, esta versão ficou muito ridícula e patética!).
 
A terceira historinha fala de clima, de efeito estufa e, mais particularmente da China, o país que é o maior emissor de gases provocadores do efeito estufa do mundo. E tudo isso causado por sua “matriz energética”. Graças à abundância do material no país, a China gera cerca de 60% de sua energia com a queima de carvão fóssil. A consequência imediata é uma poluição atmosférica absurda, como aconteceu em 2021 na cidade de Pequim, quando a visibilidade chegou a menos de 200 metros, provocando a paralisação de várias atividades ao “ar” livre, fechamento de estradas, etc.
 
Quarta historinha: outro dia vi uma reportagem sobre uma espécie de formiga conhecida como “formiga legionária” (Eciton burchellii) que é o bicho, ou melhor, o inseto. O termo em inglês é ainda mais explícito - “army ant”. É nômade, seu ninho é formado por milhares de formigas que se agrupam em torno da rainha (devem ser muito educadas, pois imagine o trabalho para alimentar a rainha – “Dá licença? Preciso levar o rango para nossa mãe e suas pernas e antenas estão atrapalhando”). Essas formigas são do tipo “passa a régua”, pois vão comendo tudo o que encontram pela frente, inclusive pássaros e roedores que não conseguem fugir de seu caminho a tempo.
 
A última historinha, mais recente, é uma notícia quentíssima que saiu na mídia internacional (e põe quentíssima nisso!). A notícia de que foi estabelecido um novo recorde de temperatura no Reino Unido me deixou de queixinho caído (pois é, mesmo que eu não seja um Noel Rosa, não tenho propriamente um queixo para se esborrachar no chão).
 
Voltando à Inglaterra, novos recordes sempre são motivos de celebração e alegria, concordam? Só que não, pelo menos, não nesse caso. Como foi noticiado pela mídia, a temperatura no Reino Unido atingiu seu nível mais alto em toda a história, com os termômetros marcando 40,3 graus Celsius em Coningsby (Lincolnshire, Inglaterra).
 
40,3 graus Celsius! Alguém chamou a isso de “Apocalipse de calor”. Se alguém apresentar uma temperatura corporal desse nível, elefantes cor de rosa dançarão à sua frente, pois um estado febril assim pode provocar delírios e alucinações. Quando criança, peguei a chamada Gripe Asiática e a temperatura bateu nos 40 graus ou mais. Não me lembro de nada, mas minha mãe disse que eu tive delírios com a febre nesse nível.
 
 
Talvez as leitoras e leitores desta bagaça estivessem esperando uma reflexão extraída de tudo o que foi dito até agora, mas como minha mente está muito embaçada, não consigo refletir nada (piada velha!). O escritor Yuval Harari destaca em seu livro Sapiens uma curiosa coincidência: em quase todos os lugares aonde chegaram os homens a mega fauna foi extinta.
 
Por isso, vou concluir este post com uma conclusão (hoje a ironia, geralmente de má qualidade, está uma lástima, mas o humor, esse continua de quinta série): eu me entristeço em pensar no mundo em que minhas netinhas, os filhos e filhas dos Ricardos e das Majus e tantas outras crianças viverão sua fase adulta, um mundo onde os sapiens - verdadeiras formigas legionárias gigantes - não conseguem se descolar do presente e pensar no futuro, um mundo onde alguns acham normal cortar dezoito árvores por segundo na floresta amazônica e talvez nem acreditem no asfixiante aquecimento global.
 
“Um crescimento infinito é incompatível com um mundo finito. Quem acredita nisso ou é louco ou é economista”. Quem disse isso é Serge Latouche, sociólogo, antropólogo e... economista.
 
Talvez seja essa a nossa sina, pois na prática, agimos como se fossemos uma nova espécie de primata, um primata escorpião que ferroa e ferra sem dó o planeta e apressa a extinção de seus descendentes. Entendeu ou quer que desenhe?

quarta-feira, 20 de julho de 2022

GEMININIÑAS 08

 
Ouvir um palavrão dito em voz muito alta assusta e repugna os espíritos mais sensíveis, pois a referência a práticas sexuais não canônicas e a vulgaridade que o palavreado chulo carrega são características intoleráveis para pessoas muito tímidas e gentis.
 
Mas todos sabemos que o que hoje é palavrão já fez parte do vocabulário normalmente utilizado no passado por pessoas de bem. Talvez seja essa a explicação para o surgimento e uso frequente de expressões e vocábulos capazes de fazer corar e escandalizar os mais delicados.
 
Meus impacientes amigos e amigas virtuais já devem estar se perguntando onde pretendo chegar com isso, mas já explico.
 
Segundo a mãe das “gemini niñas” de três anos a ofensa máxima imaginada pelas filhas parece ser a palavra “eca” (com ou sem exclamação). Chamar alguém de “eca” é um insulto tão grave que poderia até desencadear uma quarta guerra mundial. Mas elas têm sabedoria e jogo de cinturinha para retrucar elegantemente e fulminar o agressor com esta resposta, dita por uma delas:
 
- “Eu não sou eca, eu sou gostosa!”
 
Esse é um claro sinal de que o empoderamento feminino pode surgir até na mais tenra e tchutchuca das idades.

 

sexta-feira, 15 de julho de 2022

EQUÍVOCO DA NATUREZA

 
Hoje surgiu uma ideia tão bizarra na minha cabeça que até mesmo minha dupla personalidade estranhou. Provavelmente nunca saberei a resposta a essa dúvida, a essa autêntica viagem na maionese (se alguém conhecer uma nova gíria que seja sinônimo de “viajar na maionese”, por favor, me avise).

Indo direto ao assunto: recentemente divulgou-se que a análise do nosso DNA indicou que alguns de nossos genes foram herdados dos Neandertais e dos denisovanos. Achei aquilo o maior barato, sinal de que em um passado remotíssimo rolou uma química entre alguns sapiens e nossos primos humanos.

Não temos mais “primos” vivos, todos foram extintos. Talvez a causa mais provável tenha sido um cataclismo de proporções bíblicas ocorrido na região onde viveram os Neandertais. Mas fiquei pensando na hipótese dos sapiens terem dizimado seus parentes. E o que me levou a pensar isso foram os acontecimentos recentes de selvageria política. Como disse alguém, "a raça humana é um equívoco da Natureza".

Não tenho hoje nenhuma ilusão sobre a agressividade atávica dos sapiens, vinda lá da “aurora da humanidade”. Com isso quero dizer que para mim o homem, o ser humano é intrinsecamente agressivo, cruel, sádico, rancoroso, traços que só mesmo um verniz sociocultural disfarçou.

Fiquei pensando na diferença entre os chimpanzés comuns e os bonobos, também conhecidos como chimpanzés anões. Os chimpanzés comuns são agressivos e capazes de organizar expedições e fazer emboscadas para trucidar rivais de outro bando. Já os bonobos “só pensam naquilo”, pois trocam qualquer desentendimento por uma boa trepada. Ou seja, são da paz e do amor, uma versão primata dos hippies que existiram no final do século XX.

E aí voltei aos Neandertais. Tinham cérebro maior que os sapiens, fabricavam ferramentas, conheciam o manejo do fogo, enterravam seus mortos, mas, mesmo assim foram extintos. E essa é a pergunta que surgiu na minha mente demente: seriam os Neandertais os bonobos humanos e, por isso mesmo presas fáceis para seus agressivos primos sapiens?

Não me interessei em procurar resposta para essa dúvida, pois ela só serviu para fechar um sábado à noite sem nada para fazer. Como, aliás, têm sido todos os sábados à noite dos últimos anos. Bon soir.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

GOLPE DO MESTRE

  
Fico feliz de jamais ter sido obrigado a trabalhar como empacotador de supermercado (aquele sujeito que embala as compras dos fregueses em sacolas plásticas impossíveis de ser abertas por gente normal). Eu gastaria dez minutos para cada sacola aberta, incompetência que me faria ser demitido no mesmo dia. E por justa causa.
 
Também nunca passou pela minha cabeça a ideia de ser professor. De qualquer coisa, de qualquer assunto. Ainda bem, pois eu seria um desastre de proporções quase iguais a um tsunami ou naufrágio do Titanic. Apesar disso, me vi um dia em uma sala de aula, à frente de umas vinte meninas, vinte adolescentes, falando sobre métodos contraceptivos, ou melhor, sobre um artigo que abordava esse assunto e que tinha lido na revista Seleções. Eu tinha apenas dezenove anos e essa “aula”, ideia de uma das alunas, foi quase surreal (creio que foi assim que surgiu minha versão Mr. High, renomeada depois para Jotabê).
 
Durante a faculdade até tentei levantar uns trocados dando aulas de violão e de matemática. O fracasso dessas duas tentativas me fez abandonar definitivamente a ideia de ensinar qualquer coisa a alguém, pois enquanto eu tentava ensinar para o aluno de violão noções básicas de formação de acordes e conceitos de tom maior ou menor, ele só queria aprender a fazer “quem quer pão, quem quer pão”.
 
A aluna de matemática até que se esforçou, mas a única coisa de que me lembro foi tentar ensinar a ela o mesmo conceito com abordagens diferentes (tipo assim: “Entendeu? Não? Vou explicar de outra forma”), fazendo com que se confundisse cada vez mais. Mas, pelo menos para mim o assunto lecionado ficou absurdamente claro e definitivamente bem entendido, pois percebi que a melhor forma de aprender algum assunto é explicá-lo para alguém (talvez eu devesse explicar a Teoria da Relatividade para alguém).
 
Sempre acreditei que o convívio com jovens em uma sala de aula é uma ótima forma de oxigenar o cérebro do mestre. Mesmo assim, nunca quis ser professor. E pensar que a humanidade nunca me agradeceu por isso!
 
Mas, se nunca consegui ensinar nada a ninguém, nem mesmo “jogo da velha”, casei-me com uma professora. Minha mulher era louca por francês e fez curso de Letras opção português-francês. Sua alegria durou pouco, pois logo depois de formada os colégios tiveram a indelicadeza de retirar de sua grade curricular o ensino da língua que permitiria aos aplicados alunos entender o significado dessa questão quase metafísica: “qu'est-ce qu'il y a avec ton dindon?”
 
Movida pela necessidade e por algum pragmatismo do tipo “já que não tem tu, vai tu mesmo”, começou a lecionar língua portuguesa. À maneira dos médicos recém-formados que correm para cá e para lá, arranjou emprego em três colégios. Tinha vinte e três anos na época e zero de experiência. Seus alunos eram quase tão “velhos” como ela e bastante agitados. Apesar disso, conseguiu o respeito de todos e foi escolhida por duas salas como paraninfa da turma, mas resolveu parar de lecionar quando nos casamos, pois não gostava de dar aulas de português.
 
Não sei como seria hoje, especialmente depois da aloprada experiência de “escola plural” que, de tão ruim, quase impediu que nossos filhos cursassem faculdade (pois tiveram de competir no vestibular com alunos bem preparados, egressos de escolas particulares de qualidade).
 
Na época dessa triste experiência nossos filhos estudavam em escola pública (a grana estava muito curta). Observando dentro de nossa casa aquela esculhambação pedagógica, um dia comentei com o diretor do colégio que a “escola plural” tinha proporcionado aos alunos uma grande modernidade, o “ensino virtual” - onde os alunos fingiam aprender, os professores fingiam ensinar e os pais fingiam acreditar nessa lorota. A resposta foi um sorriso constrangido.
 
Mas a ideia central da escola plural foi pressentida e aplicada muitos anos antes por dois professores do terceiro ano colegial do turno da noite, “onde por sorte ou castigo dei de parar”, pois no colégio da UFMG onde estudava não havia terceiro ano nos turnos da manhã ou tarde. A explicação é que todo mundo que queria mesmo estudar migrava para o “Colégio Universitário” também da UFMG, longe pra caramba da minha casa.
 
Eu estava começando a experimentar os efeitos da versão caipira de Dr. Jekyll and Mr. Hyde, vivenciando um Dr. Zeca e Mr. High caboclo (alguns dizem que seria Dr. Jeca ou Dr. Jegue), pois estava sempre com a cabeça nas nuvens e sem vontade de fazer porra nenhuma. E acordar ainda mais cedo não estava definitivamente nos meus planos. Por isso passei para o turno da noite.
 
A sala estava dividida ate´mesmo geograficamente entre os malandros saídos do turno da manhã (fundo da sala) e o pessoal que ralava, que trabalhava durante o dia (turma do gargarejo). O contraste e as brincadeiras daí surgidas eram muito, muito sem noção. Na verdade, era bullying o tempo todo em cima dos que trabalhavam. Pois bem, foi aí que o conceito de não reprovar ninguém se manifestou.
 
O professor de química avisou que ninguém precisaria se preocupar com nota, só não queria zona na sala. E realmente dava aula. No final do ano, deu uma prova e disse para a putada escrever alguma coisa, qualquer coisa. Eu não fazia a menor ideia dos assuntos que geraram as questões da prova. Assim, comecei a fazer contas.aleatoriamente e entreguei a prova, “corrigida” ali na hora. O professor (que tinha cara de cachaceiro) juntou a papelada toda sem nem tomar conhecimento do que cada aluno escreveu e foi distribuindo notas de acordo com o diário de classe, uma situação meio “bíblica”, onde cada um recebia a nota necessária para passar (os mais caxias recebiam alguns pontos a mais).
 
Mas craque mesmo foi o professor de física. Não sei se por perceber a “motivação” dos alunos ou por sua índole mesmo, avisou que quem daria aula seriam os alunos, todos os alunos. Cada aluno escolhia um tema, estudava, preparava a aula e apresentava para aquela gangue que estava pouco se lixando para o que estava sendo “ensinado”. Na aula seguinte outro aluno se apresentava, e assim, sucessivamente, todos os alunos foram cumprindo a obrigação de dar aula no lugar do professor coça-saco. Quer dizer, quase todos, pois o ano letivo estava próximo e eu nunca tinha dado nenhuma aula de nada.
 
A solução foi encarar a Lei de Hooke. As perguntas feitas por uns dois ou três alunos foram respondidas com um sincero “não sei”. Dias depois aconteceu a prova final. Eu precisava da quase totalidade dos pontos para não ser reprovado. E a escola plural me ajudou. O professor foi chamando um a um, informando quantos pontos precisava para ser aprovado e (o golpe de mestre!) quantos ele achava que merecia pelas aulas dadas. Os mais tímidos diziam merecer uma nota ligeiramente superior à necessária. E o professor cinicamente perguntava ao resto da classe: “Vocês acham que ele merece?” Os vagabundos vindos da manhã aprovavam o pleito de seus “comparsas” e os que sempre estudaram à noite aprovavam os pedidos de seus semelhantes. O que mais me surpreendeu foi a reação da sala quando chegou a minha vez.
 
Por ter sido um dos últimos a dar “aula” também fui um dos últimos a ser avaliado. Digamos que eu precisasse de 38 pontos em 40 para passar.E foi exatamente a nota que disse merecer. Lembro-me de que o professor me olhou com cara de quem tinha encontrado um cínico filho da puta à sua altura. Ao perguntar à classe se eu merecia aquela nota, para minha surpresa (e dele também), colegas dos dois grupos disseram que sim. Um deles chegou ao ponto de dizer que eu era muito estudioso e que minha aula tinha sido muito boa!
 
Hoje eu rio um riso de hiena quando me lembro dessas baixarias. Mas de uma coisa tenho certeza: se eu tivesse escolhido o magistério como profissão talvez nunca fosse paraninfo de nenhuma turma. O que não me impediria de ser ovacionado pelos meus alunos. Mas com ovos de granja (ou “ovos de grunge”) e ainda correndo o risco de ser chamado depois disso de “Omeletão”.

 

quarta-feira, 13 de julho de 2022

AULA DE INGLÊS - RUBEM BRAGA

 
Pode parecer escapismo ou falta de assunto publicar uma crônica escrita por Rubem Braga em 1945 depois de assistir um vídeo que mostra um anestesista colocando o pênis na boca de uma senhora anestesiada, depois de ver na TV o momento em que um radical atira e mata alguém que não comunga do seu credo político. Mas não é.
 
Quando você está respirando com dificuldade, com uma sensação de asfixia mesmo sem estar com Covid, é bom que você procure um lugar ou maneira de respirar melhor – para que possa depois voltar ao lugar onde estava e suportar mais um pouco viver nesse ambiente tóxico. Por isso, delicie-se com a leveza, o humor e a ironia delicada deste texto:


 
- Is this an elephant?
Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior atenção o objeto que ela me apresentava. Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa leviana poderia concluir às pressas que não se tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele de ser um elefante; mesmo que morra em consequência da brutal operação, continua a ser um elefante; continua, pois um elefante morto é, em princípio, tão elefante como qualquer outro. Refletindo nisso, lembrei-me de averiguar se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas patas, como costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui descobrir o pequeno rabo que caracteriza o grande animal e que, às vezes, como já notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça infantil. Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse convincentemente:
- No, it's not! 
Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente perguntou:
- Is it a book?
Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro a primeira vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras -- sejam quais forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo que houvesse livros encadernados em louça, aquilo não seria um deles: não parecia de modo algum um livro. Minha resposta demorou no máximo dois segundos:
- No, it's not!
Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita -- mas só por alguns segundos. Aquela mulher era um desses espíritos insaciáveis que estão sempre a se propor questões, e se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas.
- Is it a handkerchief?
Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade, não sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse hipoteca... Não, hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca? Handkerchief! Era uma palavra sem a menor sombra de dúvida antipática; talvez fosse chefe de serviço ou relógio de pulso ou ainda, e muito provavelmente, enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido:
- No, it's not!
Minhas palavras soaram alto, com certa violência, pois me repugnava admitir que aquilo ou qualquer outra coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief. Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez, porém, a pergunta foi precedida de um certo olhar em que havia uma luz de malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de desafio. Sua voz era mais lenta que das outras vezes; não sou completamente ignorante em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca eu já tinha a certeza de que se tratava de uma palavra decisiva.
- Is it an ash-tray?
Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o objeto que ela me apresentava, notei uma extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray. Era um objeto de louça de forma oval, com cerca de 13 centímetros de comprimento. As bordas eram da altura aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias curvas -- duas ou três -- na parte superior. Na depressão central, uma espécie de bacia delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de cigarro fumado (uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um palito de fósforos já riscado. Respondi:
- Yes!
O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora teve o rosto completamente iluminado por onda de alegria; os olhos brilhavam -- vitória! vitória! -- e um largo sorriso desabrochou rapidamente nos lábios havia pouco franzidos pela meditação triste e inquieta. Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde impedir de estender o braço e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito excitada:
- Very well! Very well!
Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão com que ela festejava minha vitória me perturbou; tive um susto, senti vergonha e muito orgulho. Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma loja,alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria:
- It's not an ash-tray!
E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês, pois deve ser sempre agradável a um embaixador ver que sua língua natal começa a ser versada pelas pessoas de boa-fé do país junto a cujo governo é acreditado.
Maio, 1945

terça-feira, 12 de julho de 2022

CITAÇÕES, RELEITURAS E REPUBLICAÇÕES

 
Como já comentei aqui, estou relendo o livro “200 Crônicas Escolhidas”, do Rubem Braga, pois tenho a mania de reler os livros que me fizeram babar de prazer quando lidos pela primeira vez. E esse livro do Rubem Braga é assim. Como eu gostaria que os textos que escrevo atingissem pelo menos dez por cento do lirismo, ironia e humor suave encontrados nas crônicas desse livro!
 
Preciso confessar que além de algumas crônicas que encontrei na internet não conheço nenhum outro livro de sua autoria, o que me faz parcialmente merecedor desta afirmação atribuída a São Tomás de Aquino: “Temo o homem de um livro só” (hominem unius libri timeo).
 
 Mas eu sou inofensivo, não represento ameaça para ninguém. Sou como aqueles passarinhos engaiolados que, privados de sua liberdade, acabam até comendo na mão de seus carcereiros ou, melhor, de seus criadores. Como dizia um antigo chefe, sou “manso de gaiola”. Além do mais, aprendi com o filósofo Heráclito de Éfeso que “Não podemos nos banhar duas vezes no mesmo rio porque as águas se renovam a cada instante”. A explicação para essa frase encontrada na internet (obrigado, Google!) é que “nem o homem nem as águas do rio são mais as mesmas quando se volta a mergulhar. A lógica pode ser aplicada à leitura: não se lê duas vezes o mesmo livro. Em essência, o livro é o mesmo. Mas o leitor não”.
 
Justamente por isso sinto-me confortável ao ler um livro duas vezes (já li três vezes um de que particularmente gostei), na certeza de que atendo o conselho de Mark Twain: “O homem que não lê bons livros não tem nenhuma vantagem sobre o homem que não sabe ler”.
 
Ensinamentos encontrados na internet como esses são bem mais saudáveis e úteis que as loas tecidas nas redes sociais a esse ou aquele candidato à presidência da república. Mas o que mais me espantou mesmo foi descobrir no livro que estou relendo (sinal de que não sou mais a pessoa que leu o livro pela primeira vez) uma autocrítica bastante jotabélica do Rubem Braga sobre uma crônica que escreveu, Logo ele, considerado o príncipe dos cronistas brasileiros! Olha a autocrítica bracarense do capixaba a propósito de uma crônica que resolveu republicar
 
É uma crônica de 1943 e não é tão inédita que não tenha sido publicada em duas revistas. Mas ambas circulavam quase às ocultas e foram fechadas logo depois pelo governo. A crônica pode ser má, e creio mesmo que está mal escrita, de um modo diferente do meu modo costumeiro de escrever mal. Mas naqueles temos já era uma grande coisa quando se conseguia escrever alguma coisa que não fosse louvaminha ao Senhor; e quando se escrevia era ao mesmo tempo com raiva e contensão; duas circunstâncias que atrapalham qualquer estilo, e ainda mais o meu, que se atrapalha à toa. Talvez por isso mesmo reli com uma espécie de carinho e resolvi publicar outra vez”.

E antes que eu me esqueça, "bracarense" é quem ou que é natural de Braga, Portugal. Perdoem-me a piada jotabélica (não resisti). 
 

segunda-feira, 11 de julho de 2022

THE STATE OF THE ART


“The term ‘state of the art’ is a concept used in the process of evaluating novelty that emerges in some field”.
 
Se esse é um dos significados para "estado da arte" e se esse conceito for aplicado para identificar o ápice do extremismo e para avaliar um comportamento radical, então parece que o "estado da arte" foi alcançado...
 



sábado, 9 de julho de 2022

MANSO DE GAIOLA

 
Minha mulher detesta e evita ao máximo atender ao telefone que toca. Há vários motivos para isso, cada um de acordo com a época ou momento. Pode estar preparando o almoço, vendo o final da novela ou pressentir que deve ser alguma amiga que não se importa de conversar durante mais de uma hora. Há mais tempo, tinha receio de atender e saber que um familiar tinha morrido. Hoje, a melhor explicação é que está escutando pouco, fato que eu confirmo por também estar.
 
Só posso dizer que por essa idiossincrasia acabei me convertendo em uma espécie de mordomo, pois basta o telefone tocar para que eu saia de forma estabanada de onde estiver para atender quem está do outro lado da linha. E faço isso por entender que se o telefone existe e se ele toca é ilógico ignorar seu chamado irritante.
 
Nesta época de messengers e zaps os filhos e outros parentes raramente ligam. Mesmo assim, sempre corro para atender ligações interrompidas assim que eu aperto a tecla “talk” ou para recusar um pacote fabuloso de internet que a operadora “X” está oferecendo, desculpar-me por não poder fazer doações para alguma associação de que nunca ouvi falar ou até mesmo para agradecer a oferta de um plano coletivo de jazigos ou funerais.
 
Pouco importa o motivo ou a hora da ligação. Atendo a todas com a máxima cortesia e educação; ouço os dez ou vinte segundos iniciais, peço desculpas por interromper quem está falando, deixo claro que não estamos interessados ou que não podemos assumir mais nenhum compromisso financeiro, pois “sou aposentado” ou, como último recurso, aviso que “meu nome está no Serasa”. Se a pessoa ainda insiste em se fazer ouvida, aviso que não pretendo ser grosseiro ou deselegante, reitero meu desinteresse e digo que desligarei o telefone.
 
O problema é que às vezes nem consigo terminar de falar, pois a ligação é bruscamente interrompida, sinal de que nos tempos atuais a cortesia e a boa educação nem sempre são qualidades cultivadas por quem tem a má sina de precisar trabalhar em call centers ou telemarketing. Mesmo assim continuo a exercer diligentemente a função de mordomo ou telefonista.
 
Foi assim que recebi a notícia da morte do Fernando, um parente de minha mulher. Fiquei realmente triste, consternado ao saber disso. Aos poucos fui sabendo que precisava fazer uma cirurgia no coração, que estava morrendo de medo disso, que tinha sessenta e cinco anos e que morreu em consequência de um infarto fulminante alguns dias antes de fazer a tão temida operação. Meu filho comentou que isso foi bom para as finanças da família e para o cirurgião que o operaria, pois correria o risco de levar a culpa pelo falecimento durante ou após a cirurgia.
 
 
Meu relacionamento com ele poderia ser classificado de “sui-generis”, pois passei a maior parte da vida sentindo algum desprezo por ele, alguma impaciência para tolerar seu sorriso constrangido, sua aparência balofa e uma ironia triste que sempre percebi em tudo o que falava. Isso mudou quando fomos convidados a ir a uma festa em sua casa.
 
O motivo da minha má vontade e até desprezo pelo Fernando aconteceu no dia em que fomos apresentados. Minha mulher, suas irmãs e eu fomos à casa de seus pais onde ainda morava (horrendamente decorada com peixes voadores empalhados que seu excêntrico pai tinha comprado). E aqui cabe um parêntese.

Seu pai era médico e tão excêntrico que fazia as coisas mais inesperadas sem se preocupar em avisar a família. Como quando sumiu de casa por dois dias, durante a visita do Papa João Paulo a BH. Católico fervoroso, acampou na praça hoje conhecida como "praça do papa", à espera do pontífice, só para vê-lo de perto e assistir a missa que seria celebrada no lugar. Seus familiares só souberam disso ao vê-lo sentado na grama, pela televisão.  Antes desse episódio já tinha "dado um perdido" para lá de bizarro, pois simplesmente desapareceu por vários dias. A esposa, já meio desesperada ligou para um de seus colegas, tentando obter alguma notícia do marido. Só assim ficou sabendo que o fujão estava na Europa participando de um congresso de medicina. Curiosamente, morreu imediatamente após uma cirurgia no coração, creio que a mesma que seu filho temia fazer.

Voltando ao dia em que conheci o Fernando, ver aqueles peixes pendurados na parede da sala da casa, aquele mau gosto -  mesmo que não fosse culpa sua -, já me deixou incomodado. Fiquei sabendo que tocava piano e pedi que tocasse alguma coisa. Sorriu constrangido e disse que o piano estava desafinado.
 
Minhas cunhadas insistiram para que ele tocasse, ele tornou a dizer que estava desafinado, mas elas continuaram a insistir. Por isso – e esse foi seu erro – sentou-se ao piano (que estava mesmo desafinado) e começou a tocar. O som era tão horrível que ele logo parou com a exibição. Aquilo me deixou perplexo, pois eu jamais admitiria tocar violão se ele estivesse desafinado ou com alguma corda arrebentada, mesmo se o papa João Paulo me pedisse de joelhos!
 
Essa era a nossa diferença, nossa dessemelhança: eu sempre fui presunçoso, um pouco arrogante e vaidoso em relação a meus limitados dotes musicais, enquanto ele comportou-se de modo tímido, contido, humilde, totalmente diferente do meu modo de ser. E isso gerou minha pouca simpatia por ele.
 
Assim, quando chegava o Natal e ele aparecida na casa de minha sogra vestido de Papai Noel e distribuindo balas para as crianças, o máximo que eu fazia era sorrir de forma condescendente e comentar com alguém que "só mesmo o Fernando!” Mas isso não era elogio.
 
 
Sua casa era uma construção simples, dessas pré-fabricadas que se compra a prestação, mas extremamente funcional, graciosa e acolhedora. Foi construída (ou montada) em um loteamento novo, com urbanização correta e honesta, localizado em uma cidade da região metropolitana de BH. O terreno que comprou, localizado no final do condomínio, ficava exatamente ao lado de uma mata, de uma reserva florestal da companhia de abastecimento de água de BH, dela separado por uma rua calçada que circunda o condomínio.
 
Essa localização, o cheiro agradável de mato, o silêncio e os passarinhos que vinham em bandos comer o alpiste e sementes generosamente colocados por ele em pratos suspensos longe da casa foram os motivos para mudar meus sentimentos em relação a ele.
 
Fiquei tão encantado e surpreso com o que encontrei, com seu jeito sereno de receber os convidados, seu jeito bonachão, sem os costumeiros espasmos de falsa surpresa dos anfitriões, que comecei ali a sentir por ele uma simpatia genuína, sincera. Comemorava-se ali alguma coisa de que não consigo me lembrar. Só sei que foi um almoço agradabilíssimo, não pela qualidade do alimento, mas pelo local onde construiu sua casa.
 
Em lugar de comprar um apartamento de dois ou três quartos para ele, a segunda esposa e uma filha, optou por morar em um lugar que combinava com sua personalidade calma, cortês e amistosa; um lugar silencioso, longe do frenesi, do burburinho provocado pelo vai e vem de muitos carros, ônibus e gente.
 
Só ao descobrir que ele morava em um paraíso urbano, em uma casa sem gaiolas, sem viveiro, sem aves aprisionadas e que compartilhava o quintal de sua casa com os passarinhos da mata da Copasa é que eu finalmente percebi que ele era uma pessoa boa para se ter como amigo - cortês, dócil e amistoso e que viveu sua vida de professor universitário de um modo calmo, contido e tranquilo, manso como se fosse um passarinho criado em gaiola.

sexta-feira, 8 de julho de 2022

UM IMPOSTOR SINDRÔMICO

 
“Eu não tenho o menor medo de que me descubram um impostor. Sabe por quê? Porque eu mesmo, há tempos, já me dei conta de que sou um. E continuo me arrastando nesse papel”.
 
Esse foi o comentário feito por meu amigo virtual Marreta (ou Azarão) no post “Síndrome do Impostor”, recentemente publicado aqui no Blogson Crusoe. Como toda resposta grande vira post nesta bagaça, sinal de oportunismo e falta de assunto (eu sou um impostor!), resolvi voltar a esse tema.
 
Segundo uma reportagem de 2021 que li no site da BBC, “Os 'impostores' têm tendências perfeccionistas, abrigando uma necessidade secreta de serem os melhores no que fazem. Quando são incapazes de atingir seus objetivos perfeccionistas, os 'impostores' muitas vezes se sentem oprimidos, decepcionados e se generalizam como fracassados".
 
Antes de continuar, preciso esclarecer que a proposta do post comentado era divertir, fazer humor, objetivo um pouco diferente deste post-resposta. Para começo de conversa, eu considero o comentário de meu amigo uma "impostura", pois ele é um mestre da ironia e do sarcasmo. Então, as aspas colocadas em suas palavras indicam não apenas tratar-se de outro autor como de deixar claro que não concordo com sua auto-avaliação, pois ele é um grande escritor e ótimo poeta. Por isso, transcreverei mais um trecho de um dos vários textos que encontrei na internet sobre a “síndrome do impostor”.
 
"Foi exatamente assim que a doutora Jaqueline Góes começou a se sentir em 2020, quando o trabalho dela passou a chamar a atenção de muita gente. A Jaqueline ficou conhecida no Brasil inteiro no início da pandemia, quando ela e a supervisora, Ester Sabino, integraram a equipe que fez o sequenciamento genético do Coronavírus em 48 horas. Na época, o procedimento levava em média 15 dias” (...) ‘Em muitos momentos eu tento me diminuir. E isso faz, por exemplo, com que eu fique muito envergonhada com alguns reconhecimentos, alguns prêmios que eu recebo E aos poucos eu estou tentando trabalhar essa aceitação de que ‘Olha, o prêmio já está aí, a homenagem já foi feita, não tem mais por que esconder’, diz Jaqueline”.
 
 “Uma pesquisa demonstrou que uma média de 70% de pessoas que estão no mercado de trabalho já sofreram desses sintomas, dessas sensações, como se a qualquer momento as pessoas fossem descobrir que elas não têm aquela capacidade, aquela habilidade”.
 
Mas vou parar com a transcrição de textos para contar dois casos que provavelmente já contei aqui no blog (devo ter contado, pois às vezes me sinto como o bagaço de uma laranja chupada, mais espremido que passageiro de metrô japonês). O gatilho para contar essas lembranças foi o comentário do Marreta, pois os dois casos guardam alguma semelhança com essa síndrome do impostor, apesar de cada um apontar em uma direção oposta à do outro – mesmo que tenham uma raiz comum (me ajuda aí, GRF!).
 
Minha mulher protagoniza o primeiro. Ela é linda, lindíssima. E isso não é conversa de marido apaixonado (eu sou). Na juventude ela possuía uma beleza de modelo das agências Ford ou Elite. Era considerada por seus conhecidos (que nunca disseram isso a ela) a menina mais linda do bairro. Apesar disso, mesmo que muitos tenham tentado namorar com ela, considerava-se feia, por sua irmã mais velha ter olhos azuis e ela não. Mas a cor única e o formato dos olhos da minha mulher sempre me fizeram dizer e pensar que ela tem os olhos mais lindos do mundo (e não sou o único a pensar assim). Hoje, já com mais de setenta anos, apesar do aumento de peso, dos cabelos brancos e das rugas surgidas com a idade ela continua linda. E essa é a conclusão: por um sentimento injustificável de inferioridade, ela sempre se julgou feia ou menos bonita do que sempre foi, apesar da beleza absurda que sempre exibiu.
 
O segundo caso caminha no sentido contrário. Trabalhei em uma empresa de engenharia onde pude conviver com engenheiros de altíssimo nível. Apesar de nunca poder me equiparar a eles (sou um impostor) eu fazia parte dessa equipe. Havia uma exceção a essa excelência profissional (além de mim), que era justamente o chefe. Sua maior qualificação profissional era ser filho de um dos donos da empresa; afora isso, era um grande contador de piadas, fazia comentários de fazer corar até o Bukowski, mas era fraco profissionalmente, visivelmente fraco. O problema é que ele não assumia sua incapacidade técnica; ao contrário, portava-se como se fosse o foda (ele era um impostor). O ponto máximo foi quando, em uma roda de feras, ao falar de um assunto de que não entendia absolutamente nada, usou um termo “técnico” que inventou na hora por não conseguir se lembrar da expressão correta (em lugar de "rigging" disse "jigert"). Ao explicar o que estava dizendo foi aquele silêncio constrangedor, todo mundo com cara de cachorro que peidou na igreja.

Juntando as quatro pessoas citadas neste post, poderia dizer que têm em comum uma avaliação equivocada sobre si mesmos, sobre suas qualidades ou defeitos. Minha mulher, uma perfeccionista em tudo o que faz, era (é) linda mas não conseguia se ver assim; o Marreta é um grande escritor, mas finge que não sabe disso; meu ex-chefe era tecnicamente uma toupeira mas tentava convencer os outros do contrário; e o descompensado Jotabê - ao criar cinco blogs de uma vez - “materializou” a fabulosa frase do Juca Chaves: “Querer ser mais do que valem é dos imbecis a praxe”.

E se quiser saber como uma menina linda apaixonou-se por um ogro como eu, a explicação está no post "Eu me odeeio!"

ESTRELA DE BELÉM, ESTRELA DE BELÉM!

  Na música “Ouro de Tolo” o Raul Seixas cantou estes versos: “Ah! Mas que sujeito chato sou eu que não acha nada engraçado. Macaco, praia, ...