sábado, 11 de dezembro de 2021

ISSO PRA MIM É SHAMALAHANA!

Creio que minha capacidade de assimilar e tomar conhecimento das notícias e novidades está cada vez mais parecida com minha performance em caminhadas, ou seja, devagar, quase parando. E digo isso pois só vários dias depois da manifestação de profunda fé que fiquei sabendo da “poliglotada” de Dona Michelle (que foi, não gostou de "poliglotada"? Prefere glossolalia? Talvez xenoglossia? Sirva-se à vontade, pois Jotabê também inventa palavras de línguas inexistentes).

Foi ouvindo no rádio do carro o programa “O É da Coisa”, do jornalista Reinaldo Azevedo, que tomei conhecimento do speech da primeira dama. Achei engraçadíssimo o comentário de que os cultos eletrônicos sempre apresentam alguém bradando ou balbuciando shamalahana ou coisa parecida - desde que haja microfones e câmeras a postos. Segundo ele, seria o Espírito Santo manifestando-se com dia e hora marcados!

Voltando à poliglotada de Madame Bolsonaro (provocada pela aprovação para ministro do STF do terrivelmente evangélico André Mendonça), confesso que só fiquei sabendo desse fenômeno depois que virou motivo de memes, chacotas, piadinhas e preconceitos (afinal, alguém tem que se divertir neste país!). Não tenho opinião formada sobre essa manifestação (mentira, tenho sim, acho isso tudo uma grande bobagem, alucinação ou pura má fé). Mas no livro dos Atos dos Apóstolos pode ser lido este trecho:
 
Chegando o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar.  De repente, veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. Apareceu-lhes então uma espécie de línguas de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar em línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem.
Achavam-se então em Jerusalém judeus piedosos de todas as nações que há debaixo do céu. Ouvindo aquele ruído, reuniu-se muita gente e maravilhava-se de que cada um os ouvia falar na sua própria língua. Profundamente impressionados, manifestavam a sua admiração:
– Não são, porventura, galileus todos estes que falam? Como então todos nós os ouvimos falar, cada um em nossa própria língua materna? Partos, medos, elamitas os que habitam a Macedônia, a Judéia, a Capadócia, o Ponto, a Ásia,  a Frígia, a Panfília, o Egito e as províncias da Líbia próximas a Cirene peregrinos romanos, judeus ou prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los publicar em nossas línguas as maravilhas de Deus!
 
Assim está bom para vocês? Só para lembrar: nos “Atos dos Apóstolos” os discípulos falam nas línguas usadas por árabes, cretenses e judeus “de várias nações”. Em outras palavras, ninguém ali falou na língua dos anjos nem do planeta Marte. E esse negócio de shalalalala é trecho da música “Baby, it’s you”, uma das primeiras músicas que os  Beatles gravaram.
 
Mas, digamos que ela tenha mesmo recebido esse dom do Espírito Sonso. Que pecado há nisso? Afinal, segundo as boas línguas, um espírito de porco teria depositado 89 pilas em sua conta bancária. Espírito por espírito, nada a reclamar, tá de boa.

Bem que eu queria postar no blog o lero-lero do Reinaldo, pois gostei tanto do que ouvi que tentei buscar na internet a versão escrita desses comentários precisos e irônicos para publicar aqui no Blogson, mas só encontrei o link do programa. Embora esse jornalista seja um mala sem alça, seus comentários são sempre muito inteligentes. Por isso, sugiro ou recomendo que os leitores desta bagaça gastem um tempinho ouvindo suas precisas e irônicas ponderações. O link é este:
https://www.youtube.com/watch?v=Nxihui3qHZE&t=60s
 
Descobri também um artigo do jornalista e filósofo Hélio Schwartsman publicado na Folha de São Paulo, que trata da performance da primeira dama. Como não sou assinante, deu um trabalhinho copiar o trecho transcrito a seguir:
 
“Há histórias de missionários que partiram para terras longínquas imaginando que conseguiriam miraculosamente se expressar no idioma ali falado. Mas, como mostra Robert Mapes Anderson, eles acabavam voltando, abatidos e desiludidos. Foi ganhando corpo então, entre os crentes, a ideia de que a sequência de balbucios era a própria língua dos anjos”. (Robert Mapes Anderson é autor do livro Vision of the Disinherited: The Making of American Pentecostalism).
 
Caso este post terminasse aqui, embora muito atrasado, ainda estaria perfeito. Mas se os malucos e desocupados que acessam este blog continuam com o fígado em boas condições, vamos continuar só mais um pouquinho (para estragar de vez o apetite). Nos tempos atuais, ficar dependendo de um espírito para balbuciar e enrolar a língua como se estivesse bêbada é um tremendo vacilo. Pensem bem, se, em vez de falar, a madame quisesse ler alguma coisa em línguas desconhecidas, bastaria jogar o texto no Google Translator, escolher em qual língua não quereria ser entendida e pimba! Tradução instantânea.
 
Para mim, o Google Translator é a versão escrita e moderna do espírito santo, pois todo mundo pode se expressar em trocentas línguas diferentes, com ou sem inspiração (mais ou menos como estou agora). Justamente por isso, resolvi (mais uma vez) testar a inspiração divina do Google Translator. Para tanto, rascunhei um texto meia boca e o traduzi para língua desconhecidas, a saber: samoano e javanês. Mas o efeito estético obtido não me agradou. Por isso, parti para outra maluquice. Eis aí o esboço de texto que rascunhei:
 
Não duvido que existam pessoas de boa fé que acreditam ser um balbucio a verbalização de uma língua que só Deus entende, mas eu sinto cheiro de picaretagem nessa história. Ah, sinto sim!

A segunda idiotice que me ocorreu foi pegar esse texto-teste, meia boca, mambembe e sair substituindo as letras isoladas por grupos de duas, três ou quatro letras escolhidas. Para tornar a leitura mais fluida, optei por excluir todos os "erres" e misturar as vogais com sh, h, l, m e n. Rapaz, ao ver o resultado final me senti falando com os anjos! Depois, passado esse "furor criativo”, fiquei com vergonha de publicar o resultado. Eu sei, está visível que eu perdi totalmente a noção de ridículo, mas foi divertido tentar ler um trechinho daquela maluquice.

Mas não quero terminar esta gororoba deixando a impressão de ser mais idiota do que realmente sou (para ser sincero, a diferença é imperceptível). Por isso, deixo um aviso de inutilidade pública: se quiserem ler um conto jotabélico sobre alguém que começa a falar em línguas desconhecidas, fica o convite para que acessem o link
Até Dona Bolsonaro adoraria ler (talvez ficasse com um pouco de inveja!).


Música incidental (Blogson também é cultura), gravada em 1963, no primeiro álbum dos Beatles



 

2 comentários:

  1. a unica coisa q me incomoda nessa estória é o esquecimento do conceito de estado laico.
    mas aqui é brasil, entao tá tudo normal.

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    1. Rapaz, você tem razão. Esse "esquecimento" me deixa muito puto!

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