quinta-feira, 23 de setembro de 2021

ATROCIDADES MÉDICAS NA GUERRA E NO CONSULTÓRIO – CARLOS ORSI

 

Um de meus filhos enviou-me o link de um artigo interessantíssimo publicado em 18/09/2021 na revista “Questão de Ciência” - que eu não conhecia.
( https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/).
Imagino que talvez seja também o caso de alguns dos escassos leitores do blog. Por isso, resolvi transcrevê-lo na íntegra, tal como o que recebi - sem revisão de ortografia nem nada. Mesmo que possa trazer certo incômodo para alguns, é uma boa leitura. E a razão está nas informações históricas relatadas (que eu desconhecia).
 
À medida que vêm à tona, as atrocidades médicas e sanitárias cometidas durante a pandemia no Brasil, tanto por agentes públicos quanto por agentes privados mancomunados com o governo federal, começam a ser comparadas aos experimentos conduzidos por médicos nazistas nos campos de concentração e de extermínio da 2ª Guerra Mundial.
O paralelo é talvez inevitável, mas há uma importante diferença: os prisioneiros nos campos nazistas, em geral, tinham alguma ideia do que estava acontecendo; testemunhavam a ignomínia a que eram submetidos, e muitas vezes sentiam seus efeitos imediatos, como as vítimas expostas a radiação por Horst Schumann (1906–1983) em seus “estudos” de Auschwitz sobre fertilidade humana, que culminavam com a remoção dos ovários e testículos dos “pacientes” – daqueles que não sofriam queimaduras graves por radiação. Esses últimos, descartados, eram mandados para as câmaras de gás.
No Brasil, ao contrário, tudo indica que as vítimas dos experimentos sequer sabiam que eram “voluntários involuntários” em algum esquema de pesquisa incompetente e megalomaníaco. Nesse aspecto, se formos estabelecer um paralelo com algo que ocorreu dentro da mais recente conflagração global, o melhor talvez seja a Unidade 731 do exército japonês, ativa na China a partir de 1937.
Além de conduzir experimentos dantescos em prisioneiros de guerra, essa unidade, sob o comando do médico Shiro Ishii (1892–1951) também atacou populações civis, espalhando deliberadamente agentes patogênicos na água e no ar. Segundo a enciclopédia “Human Medical Experimentation”, editada pela psiquiatra e pesquisadora Frances R. Frankenburg, as operações bacteriológicas conduzidas pela 731 causaram em torno de 400 mil mortes – coincidentemente, estimativa idêntica à do total de óbitos por Covid-19 que poderiam ter sido evitados no Brasil.
Diferentemente dos médicos que atuaram nos campos nazistas, muitos dos quais ou caíram na clandestinidade ou foram julgados – e os condenados, presos ou executados –, Shiro Ishii e outros responsáveis pelos crimes da Unidade 731 viveram suas vidas no pós-guerra com impunidade; alguns desenvolveram carreiras de sucesso.
 
Guerra Fria
Mas talvez a 2ª Guerra Mundial não ofereça o melhor paralelo para o que se passa no Brasil. Na história da (falta de) ética médica, o momento brasileiro atual talvez se assemelhe mais ao clima de paranoia e vale-tudo que predominava nos Estados Unidos nas décadas iniciais da Guerra Fria. Período, aliás, onde a mentalidade do presente governo e de seus apoiadores mais rábidos parece congelada.
Pode-se argumentar que, embora a disseminação deliberada de microrganismos nocivos num ambiente onde eles antes não estavam presentes (o método da Unidade 731) e a sabotagem deliberada de medidas de prevenção e contenção num ambiente pandêmico (a atitude geral do governo Bolsonaro) sejam, na prática, equivalentes, há uma diferença fundamental entre usar armas contra um inimigo que se deseja eliminar e pôr em risco parcelas do próprio povo, em nome do “bem maior da nação”. Um exemplo que vem à mente são os ataques simulados de armas biológicas conduzidos em populações americanas (todos “voluntários involuntários”) pelas forças armadas dos Estados Unidos entre 1949 e 1969. Foram mais de 200 “ataques”, em 80 dos quais utilizaram-se bactérias vivas. Casos pitorescos incluem a liberação de bactérias inócuas (Bacillus subtilis) nos túneis do metrô de Nova York em 1966.
Mas o mais famoso foi a lançamento, em setembro de 1950, pela Marinha americana, de bactérias dos gêneros Bacillus sp e Serratia sp nos céus de San Francisco, uma cidade então de 775 mil habitantes. As bactérias haviam sido escolhidas por serem, supostamente, inócuas – o objetivo do experimento era rastrear sua dispersão – mas alguns dias depois, 12 pessoas foram hospitalizadas, e uma morreu, com suspeita de infecção rara por Serratia marcescens.
Quando os experimentos foram expostos pela mídia, nos anos 70, as forças armadas negaram responsabilidade pelos casos de doença e morte em San Francisco, atribuindo-os a infecção hospitalar.
Mas nem todos os experimentos conduzidos em grupos populacionais – sem que os envolvidos fossem informados ou dessem consentimento – no pós-guerra tiveram o cuidado de, ao menos, tentar garantir que a intervenção fosse inofensiva. No Canadá, estudos nutricionais conduzidos entre 1942 e 1952 entre populações indígenas (incluindo centenas de crianças) mantiveram parte dos envolvidos deliberadamente subnutridos, para que servissem de “controles”. Nenhum participante, adulto, criança ou pai, foi informado de que havia uma pesquisa em andamento ou deu autorização.
 
Ética
A produção de leis e normas éticas explícitas sobre experimentação médica em seres humanos precede a 2ª Guerra Mundial. Em 1900, por exemplo, o governo da Prússia (Estado europeu que depois viria a ser parte da Alemanha) emitiu regras determinando que experimentos não poderiam ser conduzidos em populações vulneráveis, ou sem o consentimento dos envolvidos. Mas foi o choque dos crimes de guerra nazistas que levou às normas hoje mais conhecidas, o Código de Nuremberg de 1947 e seu herdeiro espiritual, a Declaração de Helsinque, originalmente de 1964, atualizada várias vezes desde então.
Consentimento informado e minimização dos riscos impostos aos voluntários envolvidos são princípios fundamentais. A qualidade do estudo e a transparência dos resultados também são preocupações, além de técnicas, éticas: não é correto expor seres humanos aos riscos, mesmo que mínimos, inerentes a um teste de tratamento se o teste não tiver uma chance robusta de gerar dados úteis, relevantes, confiáveis e que ficarão disponíveis para a comunidade científica.
O Código de Nuremberg, por exemplo, dispõe que “o experimento [em seres humanos] deve ser tal que gere resultados frutíferos para o bem da sociedade, que não seriam obtidos por outros métodos ou meios de estudo, e jamais de natureza aleatória ou desnecessária”. Já a Declaração de Helsinque determina que “os pesquisadores têm o dever de tornar públicos os resultados de suas pesquisas em seres humanos e serão responsabilizados pela precisão e integralidade de seus relatórios”. E também: “a pesquisa médica envolvendo sujeitos humanos deve ser (...) baseada num conhecimento minucioso da literatura científica e de outras fontes relevantes de informação”.
Mesmo com esses princípios gerais publicados, e a despeito das várias legislações nacionais estabelecidas a partir deles, uma minoria significativa de médicos, no entanto, sempre pareceu acreditar quer seus insights terapêuticos e suas curiosidades idiossincráticas estariam acima da mera “burocracia”; e que paciente existe para ser passivo, senão teria outro nome.
A primeira grande denúncia a respeito veio na Inglaterra em 1967, com a publicação do livro “Human Guinea Pigs” (“Cobaias Humanas”), do médico e professor de Medicina Maurice Pappworth (1910–1994), descrevendo mais de 200 experimentos realizados sem consentimento dos pacientes, muitas vezes testes de novas tecnologias, como cateteres, por meio de procedimentos, do ponto de vista da saúde do paciente, desnecessários e, ocasionalmente, danosos.
Pappworth notou que os periódicos científicos da área médica de sua época aceitavam, sem muitos escrúpulos, publicar os resultados desses experimentos, e comparou a complacência dos médicos que toleravam os colegas que cometiam procedimentos antiéticos à do povo alemão diante das atrocidades nazistas. Segundo Frances Frankenburg, a reação da comunidade médica britânica foi de indignação – com o livro. Como Pappworth “ousava” criticar o que outros médicos faziam, assim, em público? E compará-los a nazistas? Absurdo!
Muita coisa mudou, e para melhor, nas últimas décadas, mas a pandemia revelou que bolsões da insensibilidade autoritária diagnosticada na Inglaterra em 1967 seguem existindo, e muito bem, obrigado, aqui no Brasil – onde, para piorar, esse autoritarismo assume ares de patriotada messiânica.

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