Um dia, já faz muito tempo, surgiu a vontade
de fazer um “testamento afetivo”,
para dividir entre meus filhos os objetos que têm ou tiveram algum valor
sentimental para mim. Era um pensamento que lembrava o comportamento dos
cometas, pois de tempos em tempos surgia em minha cabeça, dava uma voltinha e
depois se afastava. Agora, depois do recente falecimento de minha sogra, esse
pensamento-cometa entrou em rota de colisão com minha mente, pois creio que meu
tempo também está se acabando.
Teoricamente, descontadas as mazelas
decorrentes da idade, não há nada de errado com minha saúde. Mas há um dado que
merece ser lembrado: uma pesquisa feita na terra
do Mickey identificou um padrão estatístico entre os aposentados - a
possibilidade de uma pessoa morrer doze anos após sua aposentadoria. Como eu me
aposentei em 2009, meu ano de "abate"
seria (ou será) 2021. Aí...
Se, por outro lado, eu atingir a idade com
que morreu meu pai, viverei até os oitenta e cinco anos. Como estou hoje com 69
anos, terei mais 16 anos para exalar todos os arrependimentos, rancores e
frustrações. Assim, mesmo que nada ainda seja alarmante, para o bem e para o
mal (talvez o correto fosse dizer para o mal e para o mal), já vivi a maior
parte da duração da minha vida, pouco importando se terei dezesseis ou apenas
dois anos a mais de vida. E foi com esse raciocínio que resolvi registrar meu
testamento afetivo.
Foi aí que encarei o primeiro
"quebra-molas". Quais objetos teriam realmente algum significado
sentimental para mim a ponto de querer identificá-los para meus quatro filhos? Um
violão Di Giorgio "Autor 3"
que custou três meses de salário de minha então namorada? Os discos de vinil dos Beatles? Ou seriam talvez os CDs que os substituíram? Uma palheta que minha
cunhada ganhou em 1986 do B.B. King? A coleção completa da revista de
quadrinhos "Grilo"? Os três
primeiros LPs do João Gilberto? Os oito números da revista "O Bicho"? A coleção incompleta das revistas do "Fradim"? A bolinha de gude
vermelha que a avó de meus primos ricos trouxe da Itália? Jornais e revistas
alternativas do final da década de 1960 e início de 1970? Todos os mais de
quinhentos vinis que fui comprando, ganhando de presente ou herdando? Um
porrilhão de livros já lidos e esquecidos nas prateleiras?
Examinando com mais atenção esse pacote de
inutilidades guardadas há tanto tempo, resolvi separar o violão, a coleção
completa do "Grilo", os
vinis dos Beatles e a bolinha de gude vermelha. E surgiu o segundo
quebra-molas. Mesmo que a ideia fosse deixar um testamento sentimental, não há
como negar que esses objetos possuem algum valor monetário no "mundo
real".
Provavelmente, o item mais valioso do ponto
de vista financeiro seria o violão. Se não estivesse com um quebradinho
provocado por um acesso de fúria e com o braço empenado em decorrência de ter
sido guardado com as cordas tensionadas por 49 anos, poderia valer uns
R$1.500,00 (segundo o "Mercado
Livre"). O segundo item seria o pacote de vinis dos Beatles que, se
não estivessem arranhados de tanto ser tocados, talvez valesse uns R$500,00. A
coleção da revista Grilo viria em
seguida (48 números a R$10,00 cada) e o quarto objeto seria a bolinha de gude.
Quanto valeria? Nada. O motivo de ter sido escolhida é o fato de tê-la ganhado
por volta de 1957, enquanto via vários brinquedos espetaculares italianos sendo
entregues a meus primos. Essa bolinha é, talvez, o objeto de maior significado,
justamente por simbolizar o fosso sempre visível que me separava da vida
confortável dos meus primos.
Identificado o valor comercial dos itens
selecionados, precisava agora superar o maior de todos os obstáculos. Não mais
um quebra-molas, mas um muro de causar inveja ao Donald Trump: o que deixar a
cada um dos filhos? Ou melhor, quem ganharia o quê? Como ser justo ao fazer a partilha
de itens tão desiguais? Aliás, supondo que já guardem objetos ligados à sua
própria memória afetiva, quem me garante que desejariam ficar com objetos que
nada significam para eles?
Foi aí que me dei conta - mais uma vez! - de
que tenho mania de querer controlar tudo, até mesmo o pós-vida (e pensar que não consigo
controlar nem a língua portuguesa!). Tentei duas vezes com o Blogson e estaria
agora fazendo um upgrade desse comportamento, como se conseguisse
"ver" meu último desejo satisfeito. Com o blog isso até parecia fácil
(mesmo não tendo conseguido). Mas, até onde sei, os mortos são muito vivos,
pois estão pouco se lixando para quem ainda respira e se preocupa com idiotices
como esta. Por isso, resolvi me fingir de morto e não fazer nada. E eles que
dividam entre si como quiserem, se quiserem, meus fetiches
afetivo-sentimentais. Talvez resolvam doar tudo para um bazar de igreja ou coisa semelhante ou, até, tal como fizeram os filhos do personagem do conto "O sentido da Vida" (publicado neste blog), resolvam jogar tudo fora, pois talvez nada do que foi guardado tenha algum
valor para eles ou mereça sua atenção.
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