sábado, 1 de julho de 2017

"INOCENTE, PURO E BESTA"

Meu irmão é quase três anos mais velho que eu. Até ele se casar (casou-se um ano antes de mim), fomos sucessivamente companheiros de quarto, parceiros de brincadeiras, amigos, confidentes, companheiros de programas de índio e, no final, apenas amigos e companheiros de quarto. Nos 23 anos de convívio diário, ele foi simultânea ou sucessivamente meu mentor, tutor, ídolo, líder, incentivador e, em certos aspectos, até rival.

Sendo mais velho, mais proativo e recusando-se a viver uma vida de merda que a nossa indigência financeira asseguraria tranquilamente, sempre me chamava e estimulava a fazer coisas que ele considerava interessantes, benéficas ou necessárias. Como, por exemplo, sair do do bairro onde morávamos e frequentar outros lugares. Convenceu-me também a aprender a nadar, a ficar sócio contribuinte de um clube que tinha uma piscina infecta, a fazer curso de inglês, a fazer terapia e a não fazer faculdade de teologia (“você pensa em viver de quê? Quer virar padre?”).

Como ele estudava engenharia química, escolhi também fazer esse curso. Quando resolveu trocar para engenharia civil (perdendo um ano de estudo nessa brincadeira), mudei-me de “mala e cuia” para o mesmo curso. Hoje, não nos falamos mais - e nunca mais nos falaremos -, mas continuo sentindo o mesmo carinho e amor fraterno que sempre tive por ele, continuo a incluí-lo em minhas orações. Mas o assunto não é terapia, o assunto é sleeping bag, ou memórias relacionadas a isso.

A partir dos anos cinquenta (no século XX, lógico) os alunos da Faculdade de Medicina da Federal começaram a fazer um show anual com o título óbvio de “Show Medicina”. Como nunca fui a nenhum deles, sempre acreditei que esses espetáculos amadores teriam surgido no final da década de 1960. Na provinciana BH eram apresentações badaladas e concorridas, divulgadas nos jornais, talvez com sketches humorísticos ou paródias musicais focadas na profissão de médico. Certamente eram desfiles de egos inflados, de vaidades exacerbadas e de canastrice indiscutível. Mas isso não importa.

O que importa mesmo é saber que em 1970 algum lunático do Diretório Acadêmico (muito provavelmente) ou da diretoria da escola (pouco provável) entendeu ser interessante ou necessário que os alunos de engenharia também fizessem um show (talvez para “marcar território”), um espetáculo que atestasse a importância da profissão, ou outra razão qualquer - um “Show Engenharia”.

Só fiquei sabendo que meu irmão estava envolvido nesse projeto no final do mês de junho, quando comunicou que iria participar do Festival de Inverno em Ouro Preto. Aliás, ele e mais alguns alunos, que fariam cursos de teatro, cinema ou qualquer outra coisa que pudesse ser aplicada ao futuro show. E lá se foi ele.

Quando faltava uma semana para o festival acabar, meu irmão ligou perguntando se eu não queria ir para Ouro Preto e aproveitar esses últimos dias. Diante da minha surpresa e recusa inicial, comentou que já tinha tudo esquematizado: eu dormiria na república de um sujeito que tinha conhecido e almoçaria no bandejão da UFOP usando os vales-alimentação de participantes que já estavam deixando a cidade. Se topasse o convite, era só descolar um sleeping bag emprestado, juntar alguma roupa e comprar a passagem.

Fazia apenas três meses que eu e minha mulher estávamos novamente namorando (depois de ficar separados durante um ano muito dolorido para mim). Eu estava no máximo da paixão por ela, mas resolvi mesmo assim aceitar o convite. Peguei um saco de dormir emprestado e me mandei para lá. Não me lembro mais de alguns detalhes, de como encontrei meu irmão (ou ele a mim). Creio que cheguei perto da hora do almoço e fiquei na porta do refeitório à sua espera, provavelmente já com fome. Mas tudo ocorreu como ele imaginara e aí foi só ficar na agradável vagabundagem que a cidade e o festival proporcionavam e estimulavam.

Como ele estava fazendo seu curso durante todo o dia, eu ficava perambulando pela praça central tentando descobrir algum evento de que pudesse participar sem ser aluno. Vi filmes de arte, uma aula-concerto com o maestro Sérgio Magnani e assisti ao ator global Paulo Goulart interpretando o monólogo "", sobre um sujeito que fica preso no banheiro da empresa. Conversei também com todo tipo de maluco-beleza (ou não) que ficava ali pela praça.

Sobre a aula-concerto, lembro-me que foi dada em uma das igrejas da cidade e tratava da evolução da música. Ao teclado do órgão da igreja, o maestro foi mostrando a crescente complexidade dos acordes, enquanto falava de dissonâncias, de música dodecafônica, atonal e sei lá mais o que. Como sempre gostei de música, aquilo foi uma festa para mim. E de graça!

Só nos horários das refeições é que me encontrava com meu irmão, já enturmado com seu grupo. Ele era tão careta quanto eu e, até onde sei, nunca experimentou nenhuma droga, exceção feita às meninas que namorou. Embora fosse um sujeito bem aparentado e de olhos azuis (ao contrário de mim, mal acabado e magricela), só pegava tranqueira, meninas sistematicamente feias ou barangas. Mas essas, apesar de não recomendáveis, eram lícitas.

Pois bem, à noite, eu tinha de me virar por conta própria para encontrar alguma diversão. Eu não queria e nem pensava em trair minha namorada. Por isso, quando não havia nada para assistir, restava-me ir aos bares convencionais e boates de república para passar o tempo. Como não tinha dinheiro nenhum, ficava só olhando e conversando com gente estranha e/ou alternativa, divertindo-me em ouvir e falar aqueles papos-cabeça da moçada solitária como eu mesmo.

Quando me cansava daquilo tudo, já tarde da noite, ia solitariamente caminhando para a tal república onde estava dormindo. Passava por ruas absolutamente desertas, com seus muros de pedra centenários cobertos de musgo, de onde às vezes se via água minando por entre as juntas, lindamente iluminadas por lampiões envoltos em um halo provocado pela neblina da madrugada. Pegava a chave escondida em algum lugar perto da porta, entrava, abria o saco de dormir em algum canto do chão, enfiava-me dentro dele e dormia, às vezes ouvindo vozes e risos femininos vindos de algum quarto onde a diversão ainda acontecia.

Se alguém quiser saber, fiquei uma semana sem tomar banho, pois não tinha levado toalha e nem sei se trocava de roupa. O "casaco de general" que usava, tenho certeza de só tirá-lo para dormir. Isso responde a uma pergunta do Marreta, se eu fui hippie. Não fui, não no significado exato da palavra. No máximo, hippie por uma semana.

Em um dessas noites aconteceu um fato constrangedoramente ridículo, que serve para encerrar este post. Estava de bobeira do lado de fora de um bar muito cheio, quando uma jovem de óculos, obscenamente gorda e tremendamente feia aproximou-se e começou a conversar. Deve ter contado que estava fazendo algum curso e banalidades do gênero. Enquanto conversávamos, chegou um sujeito muito afetado (fresco mesmo), falou com ela qualquer coisa e saiu. Fiquei sabendo que era seu irmão, também ele participante do festival. Lá pelas tantas, depois de jogar mil indiretas e de ficar dando mole, foi direta ao assunto.

Com uma cara de "eu preciso tanto!": perguntou-me se eu queria ser seu cáften.  O quê? Eu? Cáften? Eu conhecia "cafetão", "gigolô", mas cáften era novidade para mim, um sujeito "inocente, puro e besta", como definiria o Raul Seixas. Devo ter agradecido meio constrangido o convite feito mais de uma vez e a gorda se mandou, provavelmente pensando que eu era tão viado quanto seu irmão.

Voltei de Ouro Preto antes de meu irmão, que ficou lá até o encerramento oficial. Quando ele chegou, em sua bagagem havia um cinto de couro semi-artesanal que teria ganho de um ainda desconhecido Ney Matogrosso. Não sei dizer se isso é verdade, pois meu irmão (assim como nosso pai) sempre foi mau fisionomista. Além do mais, os Secos e Molhados só explodiram em 1973, três anos depois daquele festival. Teria meu irmão conseguido se lembrar disso? Pode ser. Talvez tenha até ganho um anel junto com o cinto, mas isso eu nunca saberei. Nem quero.

Mas eu nunca imaginaria que, passados alguns meses, eu também estaria envolvido no primeiro e único, no mambembe, bizarro e de triste lembrança Show Engenharia. Mas essa história eu não conto nem a pau.







6 comentários:

  1. Muito legal a sua história. Com certeza, escondeu muito podre que aprontou por lá, Ouro Preto é famosa... Um dia ainda tomaremos umas cervejas juntos, JB, e aí arrancarei toda a verdade de você...
    Olha, não sei, não, não posso afirmar nada, mas pelo que narrou, acho que o seu irmão passou a vara no Ney Matogrosso!!!

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  2. Não teve podre nenhum, pode acreditar! No máximo, o cheiro da falta de banho. Quanto ao meu irmão, aquilo do anel foi só um comentário malicioso, pois nem sei se era mesmo o Ney Matogrosso. O cara deu o cinto, mas não sei se deu o anel. Meu irmão era boa pinta e vaidoso pra caralho, mas daí a sair pescando, sei não. Mas deixo uma frase do Stanislaw Ponte Preta: "não ponho minha mão no fogo porque eu não quero ficar com o apelido de maneta".

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    1. Se você fizesse, como eu, as palavras cruzadas Coquetel Nível Difícil, saberia na hora o que era cáften. Hoje, mesmo, coincidentemente, completei uma onde a palavra apareceu. Se bem que com essa gorda, pelo que relata, você ficaria no prejuízo, pois a cáften ganha por comissão, ou, nesse caso, por "começão".

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    2. Rapaz, modéstia às favas (como diria o Gilmar Mendes), eu sou o rei das palavras cruzadas. Mas naquela época não seria "de bom tom" uma palavra dessas utilizada justamente em uma "cruzada". E eu era mesmo inocente, puro e besta (acho que continuo ainda).

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    3. Opa! Isso me soou como um desafio. Fica combinado : um dia competiremos em uma grande maratona de cruzadas. Uma Cruzada de cruzadas.

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    4. Não foi nunca um desafio, mas eu mando bem. Agora, entretanto, deixo as cruzadas para minha mulher e encaro o sudoku (que às vezes me deixa enfurecido, de tão difícil pode ficar), desde que fiquei sabendo que é um bom exercício para evitar ou retardar o alzheimer. Deve ser mesmo, pois conhecemos uma senhora de 97 anos que faz. O engraçado é que ela não fala sudoku. Para ela, é "sudôco". Como se vê, o ku ou cu é sempre um assunto tabu (rimou sem querer).

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