quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

UMA CONFRARIA DE TOLOS - JOHN KENNEDY TOOLE


Tive um amigo, já citado várias vezes neste blog, que era leitor voraz e um compulsivo comprador de livros. Comprava tanto e com tanta frequência que tinha “caderneta” em uma excelente livraria localizada próximo à empresa onde trabalhávamos.

Às vezes me chamava para acompanhá-lo nessas “expedições”. Em um desses dias, encontrei logo na entrada da loja algumas pilhas de livros em oferta, com preços "mais baratos que banana em fim de feira", extremamente convidativos. Não havia nenhum clássico, nenhum “mais vendido”, mas custavam uma ninharia, o equivalente talvez a uns cinco merréis hoje.

Diante dessa pechincha, liguei para minha mulher e perguntei se gostaria de comprar alguns. Respondeu-me que comprasse os que eu achasse interessantes (“no máximo, uns vinte”). Não deu outra, tive que voltar umas duas vezes para levar tudo para o carro. Isso aconteceu na década de 1980.

Creio ter lido a maioria, mas um em especial justificou a compra. A capa era meio brega, mas o título era bacana: "Uma confraria de tolos". Comecei a ler meio sem interesse e deu-se em mim a mesma transformação relatada pelo autor do prefácio do livro. Gostei tanto que li duas vezes. Meu Amor leu e adorou, meu filho mais velho achou sensacional (tanto, que comprou uma edição lançada recentemente). Curiosamente, a única pessoa que não gostou foi uma amiga de minha mulher, uma senhora que tinha um filho esquizofrênico. Sintomático, talvez.

Pois bem, a minha homenagem hoje vai para o autor dessa obra. Como é um romance, optei por transcrever o prefácio, deixando para os eventuais interessados o prazer e a surpresa de ler um excelente livro. 

PREFÁCIO
Talvez a melhor maneira de apresentar este romance — que na terceira leitura me surpreende ainda mais que na primeira — seja relatando meu primeiro contacto com ele. Quando eu era professor em Loyola, em 1976, andei recebendo telefonemas de uma senhora desconhecida. O que ela me propunha era absurdo. Não que ela tivesse escrito alguns capítulos de um livro e quisesse assistir às minhas aulas. Era seu filho, já falecido, que escrevera um romance na década de 60, um romance inteiro e ela queria que eu o lesse. Porque lê-lo?, perguntei-lhe. “Porque é um grande romance” respondeu-me ela.

Com o passar dos anos, desenvolvi uma brilhante capacidade de me desvencilhar de tarefas indesejáveis. E se havia alguma coisa indesejável, sem dúvida era isto: envolver-me com a mãe de um romancista morto e, pior de tudo, ter que ler o original do que ela achava um grande romance, que, na verdade, não passava de uma cópia a carbono, pouco legível.

Mas a senhora era persistente, e acabou conseguindo chegar ao meu escritório para me entregar o volumoso manuscrito. Não havia como escapar, mas ainda restava uma esperança: ler as primeiras páginas, que seriam ruins o bastante, e, com a consciência tranquila, não prosseguir a leitura. Em geral, faço apenas isso. De fato, basta às vezes o primeiro parágrafo. Meu único temor era que este não fosse tão ruim assim, ou fosse até bonzinho, e eu tivesse que continuar a lê-lo.

Neste caso, continuei lendo. E lendo. De início, com a impressão de que não era tão ruim para ser posto de lado, depois com uma ponta de interesse, com estímulo crescente, e afinal com incredulidade: não era mesmo possível que fosse tão bom. Vou resistir à tentação de contar o que primeiro me deixou boquiaberto, o que me fez sorrir, o que me fez dar uma gargalhada, ou balançar a cabeça, maravilhado. O melhor é deixar ao próprio leitor a descoberta.

De qualquer modo, temos aqui Ignatius Reilly, sem ascendência em qualquer literatura que eu conheça — extraordinário paspalhão, Oliver Hardy louco, Dom Quixote gordo, Tomás de Aquino teimoso, dentro da mesma embalagem —, profundamente revoltado contra a Idade Moderna como um todo, em seu camisolão de flanela, num quarto de fundos em Nova Orleans, que, entre gigantescos acessos de flatulência e eructações, preenche dezenas de cadernos com suas invectivas.

A mãe acha que ele precisa de trabalho. E estes se sucedem. Cada tarefa se transforma rapidamente em proeza doida, em desastre acabado; e, mesmo assim, cada uma, como as de Dom Quixote, tem lógica própria e espantosa.

A namorada, Myrna Minkoff, do Bronx, acha que ele precisa de sexo. O que acontece com Myrna e Ignatius é diferente de tudo o que já ouvi contar em termos de encontro amoroso.
 (...)
Mas a maior conquista de Toole é o próprio Ignatius Reilly, intelectual, ideólogo, malandro, simplório, glutão, que provocaria repulsa no leitor com seus excessos pantagruélicos, sua obstinação tonitruante e sua luta solitária contra todos: Freud, os homossexuais, os heterossexuais, os protestantes, e os variados excessos dos tempos modernos. Imaginem um Tomás de Aquino arruinado, transposto para Nova Orleans, de onde parte para uma feroz incursão pelos pântanos até a Universidade do Estado da Louisiana em Baton Rouge, onde seu casaco de couro é roubado no banheiro do corpo docente enquanto ele lá está sentado absorto em seus avassaladores problemas gastrointestinais. Sua válvula pilórica se contrai periodicamente em protesto pela ausência de “geometria e teologia adequadas" no mundo moderno.

Eu hesitaria em usar o termo "comédia" — embora se trate de comédia —, pois implica apenas um livro engraçado, e este romance é muito mais do que isso. Uma farsa retumbante, nas dimensões de um Falstaff, talvez o definisse melhor.

É triste, também. Nunca se sabe ao certo de onde vem a tristeza: se da tragédia existente por trás da ira gasosa de Ignatius e suas alucinadas aventuras, ou da tragédia inerente ao próprio livro.

A tragédia do livro é a tragédia do autor: seu suicídio em 1969, aos trinta e dois anos. Outra tragédia está no corpo da obra que vínhamos rejeitando.

É mesmo uma pena que John Kennedy Toole não esteja vivo e escrevendo. Mas, já que não está, só podemos trabalhar para que esta pantagruélica e tumultuada tragicomédia humana pelo menos esteja ao alcance de um mundo de leitores.


Walker Percy


2 comentários:

  1. Caramba, o cara se matou, dá uma abalada esse tipo de coisa. Mas não só sua jornada comprando um monte de livros foi interessante de ler (eu faria a mesma coisa). Dei uma olhada na Amazon, os comentários são extremamente positivos sobre esse livro! Me deixou ainda mais lisonjeado pela sua comparação.

    Aos poucos... Estou começando a escrever outra coisa, que pelo visto vou demorar muito mais pra terminar. Mas acho que o importante é achar a motivação em algum lugar.

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    1. Realmente, essa é a parte triste da história. Tristíssima, para ser exato. Eu torço para que você consiga ir adiante, ter a motivação para desenvolver um enredo mais longo como o "Era só um dinossauro" (mais, muito mais longo!). Textos longos dão um trabalho do cão mas são uma maravilha para os leitores quando saem redondinhos. Eu tive a pretensão de escrever um livro, mas desisti. Se quiser conhecer mais detalhes, olha este link: https://blogsoncrusoe.blogspot.com/2018/02/norton-antivirus-versao-do-diretor.html Abraços.

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