domingo, 12 de novembro de 2017

VOO CEGO

Para mim, a Realidade é sempre mais divertida que a ficção mais delirante. A prova disso é a história que ouvi depois de publicar o post “Plantão Médico”. O “causo”, acontecido há muitos anos, é o seguinte:

Já mais idoso, um médico ortopedista continuava a operar normalmente, até que começou a perder a visão. Mal comparando, seria como um pintor ou fotógrafo que começasse a enxergar menos a cada dia. Ou, em caso extremo, como o Beethoven com sua surdez progressiva. Como exercer sua profissão, como fazer o que gostava de fazer? Porque, imagino, ele devia amar sua profissão, talvez acima de quase tudo - e, principalmente, - acima do bom senso. Porque continuou a fazer cirurgias simples, mesmo não enxergando quase nada.

Para isso contava com a ajuda de residentes (médicos já formados, mas ainda fazendo especialização em ortopedia). Com a ajuda desses jovens médicos e graças à imensa experiência adquirida, ia só no “piloto automático”, num autêntico “voo por instrumentos”. Apalpava o local da cirurgia, identificava o tendão ou coisa semelhante, e orientava o residente: “- Corta!”.

O corte (ou incisão) era então feito e, provavelmente, examinado por ele graças a um método “braille-cirúrgico”. Vinha nova orientação: “- Corta!”.

E assim a cirurgia ia se desenrolando. Mas às vezes acontecia de o residente alertar:

- Doutor, isso aí é o nervo!
- Então não corta! Então não corta!

Em outra ocasião, diante de uma situação que se prenunciava mais complexa, o residente que iria auxiliar na cirurgia teve uma atitude extremada: pegou alguns biscoitos e os esmagou em volta da cama do paciente que seria operado. Em seguida, procurou o cirurgião e deu a notícia:

- Doutor, não vai ser possível fazer a cirurgia hoje!
- Por que não?
- O paciente se alimentou.
- Quem deixou o paciente comer?
- Ah, não sei não, mas a cama dele está cheia de farelo de biscoito...

E a cirurgia foi remarcada para outro dia, sendo realizada por outro médico. Nesse caso, os "dedos" do paciente e o “anel” do residente de bom senso ficaram preservados.

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