terça-feira, 11 de outubro de 2016

NO VELÓRIO

Era um cachorro de porte médio, vira-lata, preto e com jeito de nunca ter sido escovado ou penteado. Não vi quando chegou, mas estava deitado exatamente no meio do espaço que separa os dois velórios. Não parecia estar doente nem ter ido ali para despedir-se de um amigo. Era apenas um cachorro preto de porte médio e vira-lata.

Aparentemente, estava apenas descansando ou fugindo do sol quente da tarde.
Apesar de ser o único cachorro que ali estava, ninguém ligava para sua presença. Alguns contavam piadas, outros procuravam saber das novidades, rever parentes e amigos e só os muito próximos do morto expressavam sua tristeza.

Como disse, era apenas um cachorro de porte médio e vira-lata ali deitado, indiferente à dor de alguns e à movimentação das pessoas à sua volta. Exceto pelo fato de ser um cachorro preto e estar deitado no chão, mostrava-se tão indiferente quanto indiferentes eram as pessoas que ali estavam apenas para cumprir uma obrigação social.

Pouco antes de o caixão ser levado para a sepultura, levantou-se, alongou o corpo e saiu, talvez definitivamente incomodado com aquele zum-zum e trança-trança que o impediam de tirar uma soneca ou porque não tinha nenhuma dúvida metafísica sobre a finitude da vida.

Era apenas um cachorro preto, de porte médio e vira-lata. 

Um comentário:

  1. Zé tenho uma tese sobre este cachorro = ele era preto porque deveria estar de luto. Que você acha? Abraços. Maluco:)

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MARCADORES DE UMA ÉPOCA - 4