quarta-feira, 24 de setembro de 2014

GALO DAS TREVAS - PEDRO NAVA

A minha ideia para esta seção era transcrever trechos de obras que me marcaram, de autores que admiro. Deu tudo certo com os cronistas, com os poetas, com os articulistas e com os letristas de música. Foda foi enquadrar nessa homenagem os biógrafos, os romancistas e os memorialistas. Como escolher um trecho impactante de um romance, biografia ou memória que se desenrola em um livro de mais de quinhentas páginas? Muito difícil.

Dei sorte com o reverenciado desta semana, pois encontrei um texto incrível extraído do livro "Galo das Trevas", quarto livro de memórias de Pedro Nava.  Infelizmente, só tive oportunidade de ler os dois primeiros. Talvez um dia consiga ler o resto. 


Depois de aposentar-se como médico, Pedro Nava publicou seis livros de memórias e deixou o sétimo incompleto (publicado postumamente), pois suicidou-se antes de terminá-lo, com oitenta anos.


Uma frase de sua autoria talvez dê uma ideia da personalidade de quem resolveu se matar, já velho: "não é que eu não perdoe, o problema é que eu não esqueço". 


O texto encontrado é  como toda a sua obra  literatura da melhor qualidade. Olhaí.

“Passo então à inspeção. O vidro me manda a cara espessa dum velho onde já não descubro o longo pescoço do adolescente e do moço que fui, nem seus cabelos tão densos que pareciam dois fios nascidos de cada bulbo. (...)

Hoje o pescoço encurtou, como se a massa dos ombros tivesse subido por ele, como cheia em torno de pilastra de ponte. Cabelos brancos tão rarefeitos que o crânio aparece dentro da transparência que eles fazem. (...)

Olhos avermelhados, escleróticas sujas. Sua expressão dentro do empapuçamento e sob o cenho fechado é de tristeza e tem um que da máscara de choro do teatro. (...)

Par de sulcos fundos saem dos lados das ventas arreganhadas e seguem com as bochechas caídas até o contorno da cara. (...)

Dolorosamente encaro o velho que tomou conta de mim e vejo que ele foi configurado à custa de uma espécie de desbarrancamento, avalanche, desmonte – queda dos traços das partes moles deslizando sobre o esqueleto permanente. Erosão.”



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