Para a reverência de hoje eu precisaria até
de genuflexório, pois o sujeito era fera demais. Ele escrevia com uma classe,
com uma elegância, com um lirismo e humor de deixar qualquer um babando. Antes
do texto escolhido para reverenciar Rubem Braga – um dos meus ídolos máximos –,
vou transcrever uma frase sua que me fascina, pela síntese de tudo o que eu
gostaria de conseguir nas bobagens que escrevo – lirismo e humor. Olhaí:
Sempre tenho confiança de que não
serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro
tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser
em voz baixa:
"Eu sou lá de Cachoeiro..."
Estou com a sensação de que alguém deve estar
mais feliz e com um sorriso meio bobo no rosto, depois de ler essa frase. E se você
quiser agradar e impressionar um ou uma aniversariante de bom gosto e que goste
de ler, dê a ele ou ela o livro “200 Crônicas Escolhidas”, de onde o
texto a seguir foi tirado:
 Vizinho,
Quem fala aqui é o homem do 1003.
Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em
que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua
própria visita pessoal - devia ser meia-noite - e a sua veemente reclamação
verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O
regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao
seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso
noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no
1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como
não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois
números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a
Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo
1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses
números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos
algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos
e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar,
depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul.
Prometo. Quem vier à minha casa (perdão; ao meu número) será convidado a se
retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8:15
deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde
ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço
que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o
respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e
prometo silêncio.
...Mas que me seja permitido sonhar
com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e
dissesse: "Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa.
Aqui estou". E o outro respondesse: "Entra, vizinho, e come de meu
pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos
que a vida é curta e a lua é bela".
E o homem trouxesse sua mulher, e os
dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para
agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o
dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.
Janeiro, 1953
18/06/2014
Sensacional. Rubem Braga é o grande mestre, apesar de eu gostar mais do Fernando Sabino, pelo estilo. Eu tenho vários livros desses nossos grandes cronistas. O último que comprei foi "Os Sabiás da Crônica".
ResponderExcluirO Rubem Braga é meu ídolo máximo. Quem dera eu conseguisse ter um décimo de seu lirismo e humor. E fica a dica: todo post que tiver em seu final uma data (como este, 18/06/2014) é postagem que foi movida do início do blog para os dias atuais. E a data indicada é a em que foi originalmente publicada.
Excluircaptei
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