quinta-feira, 1 de maio de 2025

DIZEDELAS E GALIMATIAS

 
No post-agradecimento “Meu Desafeto Predileto” eu publiquei o texto da capa do livro Bíblia do Caos, de Millôr Fernandes. Deu um trabalhinho lascado copiar cada uma das sessenta e duas palavras que formam o que eu chamei de “humor de saturação”. Eu só não precisava ter tido esse trabalho se imaginasse que o Millôr tinha feito no final do livro um pequeno dicionário com elas, comentando seu significado (outra forma de fazer humor). Talvez ninguém se interesse em ler esse tipo de coisa, mas para mim o Millôr foi aquele tipo de sujeito que você diz –“quando eu crescer quero ser igual a ele”. Então, quem quiser, que leia.
 
CAPA EXPLICAÇÃO DESNECESSÁRIA Para que o leitor não corra aos dicionários, com risco de acidente físico-cultural, e pra que não pense que algumas palavras da capa são invencionices filológicas, tipo fi-lo porque qui-lo, o autor desvenda aqui os significados:
 

PENSAMENTOS – função cerebral. Reflexão que envolve todos os sentidos e atos do ser humano. Lupicínio Rodrigues achava: “O pensamento parece uma coisa à toa mas como é que a gente voa quando começa a pensar.”;

PRECEITOS – princípios, prescrições, tentativa de impor aos outros aquilo que assumimos como certo e que, possivelmente, nunca nos serviu pra nada;

MÁXIMAS – basicamente de caráter moral, comumente popular, sempre com aparência de verdade definitiva. Isso não existe; a máxima é uma mentira absoluta, quase sempre conservadora ou reacionária;

RACIOCÍNIOS – constante esforço humano para provar a si próprio uma impossibilidade – a de que é um animal racional. Só isso já prova a irracionalidade humana, sem a feliz, porque completa, irracionalidade dos outros animais;

CONSIDERAÇÕES – jeito de refletir que acaba por nos trazer respeito pelos outros pobres diabos como nós e levar a tratá-los com a devida...consideração;

PONDERAÇÕES – espécie de reflexão tão detalhista e lenta, que leva o ponderador a ser devagar;

DEVANEIOS – fantasia cerebral, própria de pensadores amadores;

ELUCUBRAÇÕES – passar longo tempo ponderando, pensando, antigamente à luz de velas bruxuleantes. Edgar Poe quando lucubrava em suas madrugadas drogadas acabava dialogando com corvos inexistentes. Dizem que inicialmente era um papagaio;

CISMAS – preocupação, reflexão tendente à desconfiança e à suspeita. Cisma-se com tudo e com todos;

DISPARATES – o sentido vem de um jogo de salão em que ouvindo uma coisa (nome, substantivo) segredada num ouvido e uma definição aleatória segredada no outro, o ouvinte revelava aos circunstantes os dois enunciados juntos, provocando gargalhadas;

IDÉIAS – Augusto dos Anjos: “Vem do encéfalo absconso que a constringe”. Uma coisa de que as pessoas geralmente são meras repetidoras. Quando alguém tem duas idéias por semana, como acreditava Shaw, é considerado um gênio;

INTROSPECÇÕES – mergulho que o cavalheiro faz em si mesmo numa busca de verdades interiores, já que aqui fora estamos em falta. Psicanálise sem psicanalista;

TRESVARIOS – desvario potenciado;

OBSESSÕES – Idéia fixa: o que dá ao obsessivo o conforto de não ter que mudar de idéia;

MEDITAÇÕES – concentração profunda e prolongada do espírito. Espremido bem, o cara acaba confessando: estava era mesmo pensando em sacanagem;

APOTEGMAS – dito econômico sentencioso, curto e grosso;

DESPROPÓSITOS – coisa inteiramente deslocada da realidade ou do que se está falando, dita fora de hora, de lugar, de meio. Sempre divertido de usar, sobretudo em velórios;

APODOS – zombaria, apelido, dito depreciativo. Quem usa apodos não tem recalques. Ou se livra deles ao usar os apodos;

DESVARIOS – parente do tresvarios, já citado;

DESCOCOS – descaramento, puro e simples;

COGITAÇÕES – essa é fácil por causa do Descartes que a popularizou: “cogito, ergo sum.” O cara que cogita é cogitabundo;

PLÁCITOS – Achar bom, aprovar; donde beneplácito. Simples, no, mamita?

DITOS – Mexerico e também obscenidade. Se você não encontrar essas definições em seus dicionários, dê o dito pelo não dito;

SANDICES – parvoíce, coisa de maluquete;

ESPECULAÇÕES – considerar minuciosamente, para errar com absoluta certeza;

CONCEITOS – avaliação de atitude ou pronunciamento;

GNOMAS – afirmativa de caráter moral. Geralmente é conservadora, proclamada há tantos anos que pode ser considerada imoral. O mundo já girou, a Lusitana rodou e o gnoma permaneceu o mesmo;

MOTES – divisa, lema de brasão, afirmativa altaneira de cavalheiros templários, hoje reduzida à tema pelos cantadores de feira: “Me dá o mote”;

PROPOSIÇÕES – pensamento com caráter provisório, proposto para ser confirmado ou negado; muito comum é a proposta indecorosa. Quase sempre tentadora. Geralmente aceita;

ARGUMENTOS – indícios com que se procura provar (defender) alguma coisa;

FILACTÉRIOS – espécie de breve ou amuleto usado pelos judeus pendurado no pescoço, ou no braço, contendo sentenças da lei mosaica. Dito, portanto, irretorquível, xiíta;

REFLEXÕES – o pensamento deixando de ser reflexo do exterior e voltando-se sobre o próprio refletidor. Em física a modificação da propagação de uma onda, fazendo-a voltar ao ponto inicial. Não ficou mais claro?;

ESCÓLIOS – explicação de um texto clássico. Ou a complicação de um texto novo a fim de que ele se torne clássico;

CONCLUSÕES – é isso aí, e não se toca mais no assunto. Falei, tá falado;

AFORISMOS – conceito, em geral de caráter moralístico. Donde preconceito;

ABSURDOS – que foge à qualquer convívio com o raciocínio de pessoas dignas e bem pensantes. Pior só o abmudo. Ou, ainda mais, o absurdomudo;

MEMÓRIAS – geralmente aquilo que se esquece;

ESTULTILÓQUIOS – palavrório, discurso estulto, tolo, néscio, imbecil, insensato, inepto, estúpido; espera aí vocês vieram pra me ler ou pra ofender?;

ALOGIAS – contra-senso, incapacidade de expressão por lesão dos centros nervosos ou por falta de lógica pura e simples;

DESPAUTÉRIOS – besteira sem tamanho, asneira desmedida. Dizem que a palavra vem de Van Pauteren, filósofo flamengo do século XV, famoso por formulação de teorias lingüísticas idiotas. A gente conhece o tipo;

AQUELAS – você conhece aquela do Antônio Houaiss?;

INSULTOS – ofensa, injúria que as vezes ataca a própria pessoa, e se chama insulto cerebral;

NECEDADES – pacovice, barbaquice, bertoldice, bernardice; pronto, ficaram na mesma;

DISLATES – asneira pura e simples, sem mais enfeites;

PARADOXOS – ir contra o senso comum, contra a própria lógica aparente, contradizer se contradizendo. Não é bom?;

PRÓTASES – depois da prótase, como ninguém ignora, vem a epítase e logo depois, como qualquer menino sabe, a catástase. Ou vocês, na gramática, não aprenderam também a prótese, a epêntese e a parágoge?;

SOFISMAS – argumento que parte de premissas corretas para conclusões perfeitamente mentirosas, mas irrefutáveis. Tipo silogismo crítico; “Todo bom e barato é raro. Todo raro é caro. Logo todo bom e barato é caro.”;

SINGULARIDADES – como me afirmou Camilo Castelo Branco: “Ora, o senhor Millôr está a dizer coisas que parecem de doudo.”;

MIOPIAS – estreiteza de opinião que leva fatalmente à estreiteza de visão;

ESTULTÍCIAS – aquilo em que se compraz o estulto;

SILOGISMOS – forma filosófica de duas premissas e uma conclusão para embatucar todos nós: “Nenhum homem é perfeito. Todo prefeito é homem. Logo nenhum prefeito é perfeito.”;

TERGIVERSAÇÕES – subterfúgios, fuga aos compromissos, explicações pra brochuras.

ENORMIDADES – Absurdo sem tamanho. “O Millôr nesse livro só disse enormidades”;

PARANÓIAS – afirmativas que revelam mania de grandeza, ambições suspeitas, ou mesmo insuspeitas, por que não?;

LEVIANDADES – ligeireza, irresponsabilidade, incapacidade de levar o leitor a sério, mesmo quando ele compra um livro de 500 páginas;

IMPRUDÊNCIAS – falar o que não deve, ou o que deve em momento indevido, uma forma de firmeza de caráter desconhecida por políticos;

INCOERÊNCIAS – em física a propriedade de um ciclo de ondas com fases que não guardam relações constantes entre si. É por aí;

DESABAFOS – quando a pessoa mente ou conta vantagens a isso se chama bafo. Desabafo é exatamente o contrário;

GALIMATIAS – palavras incompreensíveis, como se fossem pronunciadas em Babel, em todas as línguas;

HERESIAS – qualquer coisa de que a gente não gosta e da qual não consegue se defender;

HIDROFOBIAS – os latidos precursores da mordida.

DIZEDELAS – Ditos.

3 comentários:

  1. ESPECULAÇÕES – considerar minuciosamente, para errar com absoluta certeza...

    Millor era o cara. Gostava de ver aqueles desenhos toscos que ele publicava no Pasquim e na Veja.
    Um dos grandes.

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    1. Para mim, um gênio, provavelmente com um QI pra lá de Bagdá. Se ele escrevesse apenas textos "sérios" talvez fosse
      considerado um filósofo ou coisa parecida. O foda é que ele possuía um senso de humor desgraçado, capaz de demolir qualquer um, sem escolher lado, crença ou partido. Gênio.

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  2. Jotabê homem de Deus!
    Acabei de vir lá do Edu
    cheia de informações e
    e aqui também me enriqueço
    mais um bom bocado.
    Aliás tenho um livro aqui
    do Millôr que vou até
    reolhar.
    Hoje só dei uma lida aqui,
    mas vou voltar e conversar
    com essas valiosas informações.
    Ah sim, já ia esquecendo de
    avisar que estou esperando você
    lá na ConVersa no Espelhando.
    Bjins
    CatiahôAlc.

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PRECISAR, NÃO PRECISAVA.

Sempre que sobra um tempinho (quase nunca sobra), corro ao computador para continuar a leitura do livro MILLÔR DEFINITIVO – a Bíblia do Caos...