domingo, 11 de novembro de 2018

SONHOS DE UM ESCREVINHADOR

Este texto fazia parte de um post mais antigo, mas, depois de relido, achei que deveria ter vida própria.


Um de seus sonhos mais caros que acalentava era o de ser um escritor. Não um escritor qualquer. O que queria mesmo, o que sonhava era ser um bom, um grande escritor. Por isso, escrevia sempre, escrevia muito. Mas não dominava os fundamentos teóricos da língua. Por isso mesmo, agredia a concordância e a regência, atropelava a gramática e todas as demais regras e normas necessárias a uma linguagem culta, conhecimentos que se exigiriam de um escritor de verdade, sabedor do seu ofício.

Mostrava seus textos capengas, inexpressivos e sem inspiração, suas frases desconexas e mal formuladas, seus assuntos banais e vulgares
 a qualquer um que conseguisse encurralar, sempre esperando receber elogios e cumprimentos. Nunca publicou nada e o máximo que conseguia era ser discretamente ignorado e evitado pelos conhecidos e parentes, que se esquivavam de ficar sozinhos com ele em festas caseiras e eventos familiares.

A mudança só aconteceu quando - finalmente! - deu-se conta de que não era o escritor que imaginava e queria ser. Demorou, mas um dia percebeu que era apenas um escrevinhador medíocre, um vândalo da palavra escrita. A partir daí, primeiro ressabiadamente, meio constrangido, começou a abusar de clichês. Depois, desassombrada e desafiadoramente, passou a inventar palavras, a criar neologismos que nem ele sabia para que serviriam. 

Começou também a fazer experiências bizarras utilizando o Google Tradutor. Para isso, pegava um texto de sua autoria e traduzia para uma língua qualquer. Repetia a operação para uma nova língua, usando texto já traduzido. E assim, fazia até voltar ao português, depois de duas, três ou mais traduções sucessivas. O resultado assim obtido era um amontoado de frases sem sentido e quase sem nenhuma relação com o texto original, fato que o divertia muito.

Sempre vandalizando a língua, a estética e a lucidez, passou a abusar de cores, fontes e tamanhos variados, despreocupado com a ordem lógica, como se o texto original fosse apenas um jogo de montar, um brinquedo de encaixe, como se quisesse criar uma nova linguagem ou forma de expressão - que só para ele teria sentido e valor. Os textos assim obtidos passaram a ser apenas imagens, grafismos, sem necessidade de revisão.

Acreditava estar criando uma nova forma de arte, quando era apenas vandalismo contra o idioma, contra as palavras e frases. Longe de ser arte, era só artesania, artesanato, arteirice, artifício para esconder sua permanente falta de criatividade e valor literário. Inconsciente disso, seguiu vandalizando a língua, para ver até onde seu delírio poderia chegar.

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